Lenine lança novo álbum acompanhado de filme: ‘Fiz as pazes comigo mesmo’
Após quase dez anos, Lenine volta com disco de estúdio, filme e toda a liberdade criativa que sempre quis
Kadu Soares (@soareskaa)
Você abre a geladeira e encontra aquela sobremesa que achava que tinha acabado. Eita! Recebe a notícia de que alguém que você ama muito está vindo te visitar de surpresa. Eeeeita! Descobre que seu time virou um jogo impossível nos acréscimos. Eitaaa!
Agora imagina descobrir que Lenine, após quase dez anos sem disco de estúdio, voltou não apenas com um álbum completo de 11 faixas inéditas, mas também com um filme, tendo toda a liberdade criativa que sempre quis. Eita!
É exatamente sobre essa multiplicidade de sentidos — espanto, encanto, celebração — que trata Eita (2025), nono disco de estúdio do cantor, lançado em 28 de novembro. E é sobre esse retorno, sobre fazer as pazes consigo mesmo e sobre o Nordeste que ele falou em entrevista exclusiva à Rolling Stone Brasil.
O hiato, a pandemia e o neto
Foram quase dez anos desde o último disco: “Esse hiato abrangeu a pandemia, a idade média que a gente passou”. E teve mais: o nascimento do neto Otto, filho de Bruno Giorgi (produtor musical e também filho de Lenine), que nasceu prematuro. “Foram três meses de internação. Isso mobilizou a família”. Tudo isso contribuiu para a demora. Mas havia algo mais profundo acontecendo.
“Eu passei por um longo período em que não conseguia acessar a diversão do processo criativo”, confessa Lenine. Era um bloqueio existencial, não técnico. Ele continuava fazendo participações — com Ana Vitória, Angra, Tuyo, Paco Malasca —, mas estava sem estímulo para entrar no estúdio como artista principal. E aí entrou Bruno.
“Eu devo isso muito ao Bruno“, diz Lenine. “Ele me mostrou muito rapidamente que era uma concepção completamente errônea que eu tinha, que eu poderia viver sem o que eu faço na música”.
Por causa da demanda de tanta gente pedindo participação de Lenine, Bruno instituiu uma quarta por semana para se encontrarem no estúdio. Foi uma decisão simples que mudou tudo.
“Na primeira sessão que tivemos de uma quarta dessa, ele me mostrou o ‘proto-eita’, que era o primeiro esqueleto que eu tinha montado antes da pandemia”— Lenine já estava pensando em fazer um disco novo. Geralmente fazia disco a cada dois anos e meio, três anos. “Esse é um tempo que, se você me perguntar por quê, eu tenho impressão que era o tempo que eu precisava para viajar por todos os lugares que eu queria rever e outros que eu queria conhecer com um projeto”.
Mas dessa vez demorou um pouquinho mais. E quando Bruno mostrou aquele esqueleto embrionário, algo começou a se desbloquear. “Mais que isso, eu fiz as pazes comigo mesmo”, resume Lenine. E o que isso significa? “Descobri o lance da mecânica artesanal do fazer. Sempre foi uma coisa que estava presente na minha vida em todos os momentos. E no Eita, eu fiz as pazes com isso”.
É um disco profundamente pessoal. Mas Lenine faz questão de pontuar: sempre foi assim. “Sempre ficou evidente nos meus trabalhos essa familiaridade, essa intimidade e essa pessoalidade. Sempre esteve impregnado de uma autoralidade. Porque eu sou ‘cantautor’ — eu canto e componho. Está associado à minha maneira de cantar, à minha maneira de criar uma melodia, à minha expressão com um instrumento”.
Então o que mudou em Eita? “Só acho que ele é mais pessoal por causa dessas pazes que fiz comigo mesmo e por descobrir essa mecânica artesanal do fazer”.
Seria o álbum um manifesto de liberdade?
Quando perguntado sobre Eita ser descrito como um “manifesto de liberdade”, Lenine dá uma risada. “Que pergunta receptiva, cara. Porque eu sempre produzi meus discos, então eu nunca fiz o que eu não gostei. Nunca fiz. Eu gosto muito do que faço e só faço o que eu gosto”.
A liberdade não é novidade. É aprofundamento. “Isso tudo tem a ver com uma autoralidade. Eu sempre busquei na maneira de fazer, na maneira de cantar, na maneira de tocar”. E as pessoas reconhecem. “Tem muitas pessoas: ‘Ah, antes de você cantar, já sei que é você, por causa do violão que você toca’. E sim, isso é verdade, embora nunca foi uma procura, mas isso aconteceu”.
Nos materiais do disco, há uma frase reveladora: “Empoderei-me de todos os meios, todos os caminhos, todas as etapas”. Lenine assumiu criação, gravação, som, imagem. Tudo. “E o Eita está repleto dessa expressão autoral e pessoal”.
Mas houve uma novidade no processo. Uma que até surpreendeu Bruno.
“Todos os meus discos anteriores, eu sempre defini a voz no que a gente chama voz guia. Eu não fazia voz guia, eu fazia voz valendo”. Mesmo sabendo que quando se faz uma única vez, da primeira vez, pode haver defeitos, “em compensação a entrega é profunda. Emocionalmente, sentimentalmente, toda a primeira gravação vem cheia de novidades porque está sendo a primeira”.

Sempre foi assim. Até agora. “Com Eita, por causa desse tempo, eu pude rever algumas coisas”. E fez uma descoberta: “Se eu pegasse essa voz e botasse num lugar mais íntimo, ao invés de ser tão explícitas as palavras e as locuções que eu uso, se eu fizesse mais íntimo, eu ia ganhar outra coisa na interpretação”.
Então voltou ao estúdio. “Foi uma novidade para ele também, porque ele sabia que para mim não é…” Mas Lenine pôde fazer isso porque teve a oportunidade de ouvir e pensar: “Ah, eu posso achar um caminho que vai ser mais benéfico para a canção”.
Eita tem essa novidade: vocais regravados, intimidade encontrada depois da primeira tomada.
Eita, eeita ou eitaa
“Eita já estava dentro da minha coleção de títulos de disco”, revela Lenine. “Uma coleção de palavras que podem ser títulos interessantes e instigantes de projeto”.
E Eita estava lá. “Como uma interjeição muito especial, como uma interjeição conhecida no Brasil inteiro, mas que no Nordeste — o protagonista no meu disco, o grande homenageado no meu disco — tem um significado mais sutil”.
Essa variedade, “essa gama muito grande de possibilidades de entendimento me deixou claro que eita é um bom título”.
Mas como traduzir esse vínculo com o Nordeste sem cair em clichês? “Na hora que eu tô fazendo, eu não me preocupo muito com isso, Ricardo. É muito intuitivo o processo todo”. O que muda é a tentativa de descobrir caminhos diferentes. “É natural, depois de tanto tempo fazendo o que eu faço, você parar e pensar: ‘Tô me repetindo. Tô fazendo de novo a mesma coisa’. E eu fico querendo descobrir outras maneiras, sabe? Descobrir processos que sejam intrigantes para mim. Como descobertas mesmo do fazer”.
DNA Nordestino
Eita é dedicado a Dominguinhos, Hermeto Pascoal, Letieres Leite e Naná Vasconcelos. Quatro gigantes. E não por acaso, todos pernambucanos.
“É o que eu chamo de MCP: música contemporânea brasileira”, explica Lenine. “É um outro nível de uma música que ela não está querendo juntar a raiz da gente com a antena de fora. O nascimento botou a música brasileira no patamar do divino, do planetário, do global. Começa com ele a música contemporânea brasileira”.
Esses quatro são alicerces. “Todos eles chegaram numa hibridagem sonora muito particular, cada um deles. E muito moderno cada um deles. Muito contemporâneo cada um deles e todos muito globais, muito planetários. Qualquer lugar do planeta ouvir um Dominguinhos vai se emocionar com o que ele faz”.
É sobre essa tradição que Lenine se apoia. Uma tradição que nunca foi apenas local, mas sempre foi mundo.
“Confie em Mim” abre o disco com uma dedicatória: “A um futuro de afeto”: “Depois de a gente passar por toda essa desconstrução da realidade por parte dessa extrema-direita fascista que tomou conta do Brasil durante uma época, deixou tudo muito estranho, cara. Muito sem cor. A primeira coisa que perdemos foi confiança no próximo. A gente passou a desconfiar. Se eu não te conheço, eu desconfio de você”. Mas Lenine foi criado diferente. “Eu fui criado para: se eu não te conheço, eu confio em você justamente por isso”.
Confiança como mola propulsora. Como base para reconstruir. Como aposta no futuro.
Já na faixa-título, é possível perceber isso por meio dos vários “eitas” de artistas nordestinos. Djavan (Alagoas), Alcione (Maranhão), Ivete Sangalo (Bahia) e, pausa para efeito, Luiz Inácio Lula da Silva (Pernambuco).
“Eu podia ter chamado outros quatro ou outros oito ou outros 16 nomes nordestinos que significavam o que eu queria que significasse”, conta Lenine. “Era um eita de nordestinos que subiram o sarrafo da história. Essa foi a condição”.
E como foi o processo? “Eu fui descarado a ponto de pegar o telefone e ligar e dizer: ‘Ô fulano, eu tô querendo um eita seu. Você manda para mim um eita?'” Simples assim. Djavan, Alcione, Ivete — todos mandaram.
No caso do presidente, foi diferente. “Eu liguei para Janja. Eu precisava que no caso do Lula, diferentemente dos outros três colegas de profissão, o Lula é um épico, ó. Lula está em outro sarrafo histórico”. Janja entendeu o tipo de homenagem. “Foi muito generosa, ela e o presidente foram muito generosos e atenciosos comigo, gravaram pelo telefone”.
Outro destaque é “Foto de Família”, dedicada à mãe de Lenine, com letra de João Cavalcanti (filho mais velho do artista). “Então teve essa condição, o disco todo de muita intimidade, de muito núcleo familiar”.
Maria Bethânia participa. E como foi? “Ela é muito generosa. É uma amiga querida e eu tenho com a Bethânia já alguma intimidade”. Na verdade, todo mundo que participou de Eita — tanto do disco quanto do filme — são pessoas de intimidade de Lenine. “A intimidade como alavanca de aproximação, a intimidade como mecânica de se fazer alguma coisa justa”.
Com Bethânia foi mágico. “A gente fez de uma tacada só, se encontrando no estúdio. Como a música é adlíbica — ela não tem ritmo, ou melhor, o ritmo varia com a interpretação — a gente gravou numa sessão, eu de frente para ela, ela cantando para mim e eu tocando para ela. E o que você ouve foi o que a gente gravou. De uma vez só”.
É impossível não sentir o arrepio dessa imagem: Lenine e Bethânia, frente a frente, criando juntos em tempo real.
O filme de Lenine
Junto com o álbum, Lenine lançou um filme em média-metragem de 30 minutos no YouTube. Direção geral de Lenine, Kabé Pinheiro e Laís Branco, com roteiro de George Moura e João Moura, e direção artística de Bruno Giorgi.
“Como sempre, os meus álbuns sempre foram criados para se ver”, explica Lenine. “E eu sempre insisti e reafirmei a condição de um álbum ser um momento de imersão. Não é para você ouvir uma música. É para você ouvir uma história”.
O filme corrobora isso. “Seria um benefício para a gente propor a imersão durante uns 30 minutos que compreendem a totalidade do disco”.
Mas teve outro motivo: “Eu sempre fiz um desejo: quero fazer cinema. Achei que era o momento oportuno”.
O personagem principal se chama Josué, em homenagem a Josué de Castro, autor de Geopolítica da Fome e figura fundamental na formação de Lenine. “Liguei para o George [Moura] e disse: ‘Cara, me ajuda a fazer esse roteiro aí, eu quero fazer um filme'”.
Outras referências? “A Queda do Céu, com Davi Kopenawa. E também tudo do Ailton Krenak, porque o Krenak é um grande pensador hoje, contemporâneo. A estética do cangaço no Nordeste do Brasil. A poesia dos cantadores populares. Isso tudo está muito presente no Eita“.
E o que vem por aí?
Depois dessa pergunta, Lenine sorri. “Eu já estou pensando porque eu gostei da história de fazer filme, rapaz”. E aí vem a ideia: “Agora me ocorreu: pô, e se eu fizesse um filme e depois do filme eu fizesse um disco? Filmasse um processo… Eu tô cheio de coisinhas na cabeça”.
Cheio de coisinhas na cabeça. Um artista de 64 anos falando como alguém que acabou de descobrir o que quer fazer da vida. Porque, de certa forma, foi exatamente isso que aconteceu. Depois de quase dez anos, após um neto prematuro, depois de uma pandemia, após não conseguir acessar a diversão, Lenine redescobriu.
Fez as pazes. Voltou a brincar. E trouxe Eita — um disco para se ver, um filme para se ouvir, uma casa inteira de afeto nordestino.
Eita!
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