ENTREVISTA

Lizzo sobre sua mixtape-surpresa de rap: ‘Me sinto uma nova mulher’

Lizzo conta como fazer My Face Hurts From Smiling “realmente curou minha depressão”

Giulia Cardoso (@agiuliacardoso)

Lizzo sobre sua mixtape-surpresa de rap: 'Me sinto uma nova mulher'
Lizzo sobre sua mixtape-surpresa de rap: 'Me sinto uma nova mulher' - B.K. Barone*

A última faixa de My Face Hurts From Smiling, a inesperada mixtape de rap de Lizzo, vencedora de quatro Grammys, se chama “Ditto” — e nela já avisa: “É um verãããããão da Lizzo.” E a mixtape — que ela terminou só 10 minutos antes da nossa entrevista por Zoom — realmente entrega bons motivos para acreditar nisso. (Um representante enviou a Rolling Stone o projeto quase finalizado, que chega hoje, algumas horas antes.)

As 13 músicas de My Face Hurts From Smiling são algumas das músicas mais emocionantes e pé no chão de Lizzo, furiosas com influência de Dirty South e poderosas pelo renascimento do rap-girl que ela nunca pensou que veria. Inclui seu freestyle contagiante para Pluto e o hit viral de YK Niece, “Whim Whamiee”, aqui chamado de “Yitty on Yo Titties”, aludindo à marca de shapewear de Lizzo e a uma linha em sua versão da música.

Na verdade, o sucesso do remix não oficial de Lizzo online a inspirou a fazer uma fita inteira. A versão de My Face Hurts, no entanto, usa uma batida ligeiramente diferente do icônico produtor de Atlanta Zaytoven, que originalmente deu o banger de 2012 que “Whim Whamiee” samples, “Wham Bam”, para DJ Cool Breeze e OJ Da Juiceman.  

Zaytoven também é uma parte enorme deste projeto como produtor”, diz Lizzo. “Ele inspirou muito e é uma lenda.” Armada com faixas quentes de produtores como Tay Keith, a rapper está literalmente deixando o “chopper cantar” (gíria para mandar rimas afiadas), seja ao olhar de forma brincalhona para um pau que é “maior que o do Druski” (“o que é um elogio”, me diz Lizzo) em uma das músicas, ou ao declarar que tem “umas vadias novinhas no time / Bota umas vadias de costão grande na sua tela”, em “Crashout”.

E ainda tem o hino instantâneo “Still Can’t Fuh” com ninguém menos que Doja Cat (em um dos melhores versos de convidada dela em tempos recentes), onde Lizzo provoca: “As City Girls tão no topo, os garotos tão no deriod.”

Lizzo começou a gravar o projeto bem recentemente, ela me conta: “O processo dessa mixtape foi, honestamente, um dos mais gratificantes, satisfatórios, empolgantes e curativos que já tive em muito tempo, como artista e como pessoa. Faz só duas semanas, mas foram as duas semanas mais felizes que tive em muito tempo, e eu genuinamente sinto que isso curou a minha depressão. E a gente nem percebe que tá deprimida até sair disso, mas eu fiquei tipo, ‘Nossa, eu tava mal mesmo. Eu precisava disso.’”

Ela diz que My Face Hurts From Smiling marcou a primeira vez em anos em que ela se permitiu liberdade criativa total, sem ninguém dizendo o que ela devia falar, como devia soar ou o que devia sentir. Agora, como um dos principais nomes do elenco da Atlantic Records, ela se viu lembrando de como era ser uma artista independente, cerca de uma década atrás.

“Foi muito, muito bom e revigorante não ter ninguém me dizendo o que fazer”, ela diz. “E muitas vezes isso é por proteção, porque hoje eu estou num lugar em que tem coisas que eu simplesmente não posso postar na internet. Tem coisas que eu não posso mais dizer.”

“Tem coisas que eu não posso colocar no meu TikTok, por mais que eu queira muito. E isso tava me sufocando, porque a única coisa que me dá alegria nessa vida é me expressar — me expressar falando, me expressar através da minha arte, me expressar com música, falando com amigos, trocando ideia, entrando no Instagram Live e tagarelando, entrando no Twitch e tagarelando, subindo no palco e tagarelando, conversando com você e tagarelando. Então imagina passar dois anos e meio com pessoas te dizendo: ‘Você não pode fazer isso.’ Sabe?”Lizzo continuou

Quase dois anos atrás, três ex-dançarinas de Lizzo abriram um processo contra ela, que as partes continuam resolvendo na Justiça. As acusações das dançarinas são vívidas e sérias, alegando um ambiente de trabalho tóxico e assédio sexual por parte de Lizzo e sua equipe, com linguagem inapropriada, coercitiva e saídas para clubes de striptease.

As alegações colocaram em xeque a persona gentil, caridosa, feminista e “body positive” que Lizzo havia construído. Nos últimos anos, Lizzo também teve que entrar em acordo com 14 de suas dançarinas depois que um momento íntimo entre elas foi incluído, sem consentimento, no documentário Love, Lizzo, de 2022 — além de ter sido processada por uma ex-estilista que alegou ambiente de trabalho hostil. (Embora ela tenha sido retirada individualmente do processo da estilista, sua empresa ainda responde.)

No caso das três dançarinas, no início deste mês, seus advogados entraram com um recurso, chamando o processo de um “ataque” ao direito de Lizzo à Primeira Emenda de se apresentar e defender a positividade corporal.

Quando começo a perguntar a Lizzo o que significou gravar com tanta liberdade enquanto afirma que as autoras do processo tentaram reprimir sua criatividade ao supostamente deturpar o ambiente de trabalho que ela criou, uma representante que estava no mudo rapidamente me interrompe. “Oi, vamos pular essa pergunta”, diz a assessora. “A gente não vai poder falar sobre nada relacionado ao processo nem nada assim, então vamos pra próxima.”

Mesmo assim, a sombra dos processos e suas consequências parece pairar sobre a nossa conversa, embora Lizzo não os mencione explicitamente. Enquanto conversamos, ela continua descrevendo fases recentes de “momentos sombrios”, “falta de confiança” e “traumas” provocados por reações do público e amizades conturbadas.

Em resposta, muito de My Face Hurts From Smiling soa completamente debochado. “Tenho uma música chamada ‘Cut Em Off’ em que eu falo tipo, ‘Agora ela tá perguntando se a gente ainda é amiga — ffffffffffffffffoda-se, não,’” ela diz, quando pergunto quais são seus versos favoritos da mixtape. “Eu alongo o F. Falo várias coisas que estavam no meu peito e que eu queria dizer há muito tempo, sabe como é?”

Aqui, Lizzo se aprofunda sobre o que faz dela “imparável”, como o jeito que pessoas pretas aleatórias a chamavam de Lizzy inspirou seu alter ego rapper, por que Doja Cat disse “Tô pronta pra abrir os lábios no estúdio”, como está o andamento do próximo álbum Love in Real Life e como tem sido se preparar para interpretar a pioneira do rock Sister Rosetta Tharpe no cinema.

Leia a entrevista completa abaixo: 

Me conta como foi esse processo. Se você acabou de aprovar a master há 10 minutos, quando isso começou?

O que aconteceu foi que eu tenho uma música chamada “Bitch” que vai sair no outono, mas eu precisava fazer versões para rádio dela, porque o nome é “Bitch”. Então, por impulso — sem trocadilho — eu peguei o beat de “Whim Whamiee” e fui para o estúdio pensando: “Já que estou fazendo a versão limpa de ‘Bitch’, vou gravar um verso rapidinho nessa música que eu acho incrível.” Eu postei essa parada na internet e a resposta foi tão absurdamente positiva. Foi a internet inteira dizendo: “A gente não sabia que a Lizzo sabia rimar.” “Vocês esqueceram que a Lizzo sabe rimar?” “A gente quer isso, a gente quer isso.”

E eu fiquei tipo: “O álbum que eu tô pra lançar não tem nada a ver com isso.” O álbum que eu tô lançando são dois anos de uma construção cuidadosa… meu som pop, rock, rap. Ele é um pouco mais introspectivo, um pouco mais sombrio. Fala sobre momentos difíceis. E eu fiquei pensando: “Isso aqui é o completo oposto de mim, no quintal, rebolando de fio dental da Yitty. Mas eu me diverti tanto fazendo aquilo, e foi tão rápido.” Aí falei: “Me reserva uma semana de estúdio.”

Fui lá, chamei meus A&Rs e meus produtores amigos e disse: “Me mandem pacotes de beats”, algo que eu nunca faço! Eu sou do tipo que diz: “A gente tem que criar a música juntos, no estúdio, ao mesmo tempo.” Mas dessa vez eu recebi vários pacotes de beats de produtores incríveis. Chamei minha melhor amiga de infância, Lexo, que é de Houston e estudou comigo desde a quarta série, e comecei a criar. Escrevi tipo quatro músicas por dia, durante quatro dias. E criei uma mixtape com 12 faixas. E eu estou tão feliz e orgulhosa, porque foi como voltar às minhas raízes, improvisando de novo. Eu comecei rimando freestyle, porque em Houston isso é meio que o que se faz.

Tem um verso que eu amei em que você diz: “Garota da quebrada de H-Town tirando fotos de thot na Hot Topic.” Como alguém que cresceu entre culturas — minha família é da África Ocidental, eu cresci num subúrbio branco, sou negra — esse verso me lembrou muito a experiência de várias meninas negras que transitam entre diferentes mundos, sabe?

Sim, esse verso é muito importante pra mim. É da faixa “Ditto”: “Garota da quebrada de H-Town tirando fotos de thot na Hot Topic” — isso foi literalmente a minha verdade. E acho que muitas meninas negras que cresceram assim — somos muitas, e não temos representação suficiente.

Eu cresci no sudoeste de Alief, Texas, em Houston. A área onde cresci é muito multicultural, muito preta, muito mexicana, muito vietnamita, nigeriana, e tem um certo “ar de quebrada”, sabe o que quero dizer? Mas aí tem gente como eu. Eu ouvia rock, assistia anime, mas ainda assim participava do Freestyle Friday na 97.9 The Box. Então, tenho muito orgulho de representar esse tipo de garota. Não sei como chamam isso. Sempre dizem “alternativa” ou “nerd”, não sei qual é o nome, mas essa sou eu, bebê. Estamos na Hot Topic do First Colony Mall. Exato.

Você falou sobre não sentir os limites ou expectativas tradicionais nesse projeto, já que decidiu fazer tudo muito rápido. A Doechii descreveu a mixtape vencedora do Grammy dela, Alligator Bites Never Heal, de forma parecida. Na sua visão, o mercado está mudando para permitir que mais artistas façam isso?

Não sei. Acho que, no meu caso, a minha história individual é que eu tive que me impor um pouco e dizer: “Ei, isso aqui não tá certo. Isso aqui é o que eu quero fazer.” Não é uma narrativa, não é algo planejado. Isso realmente aconteceu comigo, e eu ainda estou vivendo isso. Então, não sei se há uma mudança no mercado, mas com certeza há uma mudança em mim, onde estou reassumindo meu espaço como artista, recuperando a confiança que eu tinha perdido.

Como foi sua relação com a música durante esse período de depressão que você disse ter vivido, e quanto tempo isso durou?

Minha relação com a música ainda era muito intensa. Eu ainda sinto que “a música salvou minha vida”, porque houve momentos realmente sombrios enquanto eu trabalhava em Love in Real Life, meu álbum, em que eu pensava: “Ok, acho que não consigo chegar ao fim do dia, mas tenho que ir pro estúdio.” Eu ainda dizia muitas coisas, mas a diferença é que muitas das coisas que eu dizia e muitas das músicas que escrevi não entraram no álbum.

Eu pensava: “Foi bom dizer isso, mas você não pode lançar isso.” Já com essa mixtape, foi tipo: “Vou dizer, foda-se. Tipo, ‘Já fui gorda, já fui magra / Essas vadias ainda não chegam aos meus pés.’” Acho que isso nunca poderia estar em uma música da Lizzo. Eu teria muito medo de colocar isso em algo como “About Damn Time” ou “Juice”.

E de onde vem esse medo? Qual é a origem?

A origem do medo é a possibilidade de ofender alguém. Eu não queria ofender as pessoas. Mesmo quando escrevi “Truth Hurts”, na versão original eu dizia “Nunca, jamais, serei amante de ninguém”. E depois pensei: “Hmm, e se eu ofender as amantes?” Então mudei para “Nunca, jamais, serei sua amante”.

Eu sempre pensei demais nessas coisas porque sei quem consome minha música e me preocupo muito com como essas pessoas vão se sentir, como isso vai afetá-las. Mas, pra ser bem sincera, hoje em dia todo mundo se ofende com tudo, então é impossível não ofender alguém. Então é isso: diga o que você quiser dizer. Apenas fale o que quiser.

Como você chegou nesse ponto de pensar: “Foda-se”?
Vou te dizer. Eu sou infodável. Já mexeram comigo de forma muito, muito dolorosa. De forma profunda. Sinto que já vivi muito… nem sei como descrever. Vivi muitos traumas com minha relação com o público, com cancelamentos por todo tipo de coisa. Tive experiências dolorosas com amizades. E acho que, quando você passa por tudo isso e fica um pouco mais velha, você pensa: “Não tem mais nada que possam dizer sobre mim. Nada que ninguém possa dizer.”

Ser zoada na internet por ser gorda durante cinco anos seguidos, virar piada de tudo quanto é lado, ver minhas fotos virarem bombas explodindo o mundo — hoje em dia ninguém consegue mais ferir meus sentimentos. E eu também não tenho mais medo de ferir os sentimentos de ninguém, porque claramente ninguém teve medo de ferir os meus. Então essa vai ser nossa relação: eu falo o que quiser e você fala o que quiser.

Com tanta inspiração de rap do sul dos EUA na mixtape, o que você tem escutado?

Pra ser sincera, isso vem da minha alma. Não sei descrever de outro jeito. Eu não escuto música com tanta frequência. Eu hiperfoco em músicas, então escuto o álbum do Bad Bunny todo dia repetidamente, ou o Renaissance, ou uma playlist com BunnaB, Pluto e Bankroll Ni. Escuto playlists, mas esse rap todo e essa vibe do sul… isso é a Lizzo de 12 anos batucando na mesa do refeitório, rimando no fundo do ônibus. É algo natural, visceral. É a Lizzo da Cornrow Clique, meu primeiro grupo de rap. Então eu nem estava sendo influenciada por nada agora, só por essa pessoa dentro de mim que estava querendo sair. Estão chamando ela de Lizzy. E eu fico tipo: “Ok, se a Lizzy quer sair, deixa ela sair.”

As pessoas da sua vida te chamam de Lizzy?

Não. Sabe quem me chama de Lizzy? Os pretos. Eu tô na rua e eles falam: “E aí, Lizzy?” Juro por Deus. Há anos é assim. Sempre dizem “E aí, Lizzy?” E eu: “E aí!” Não sei se pensam que meu nome é Liz ou Elizabeth, mas o nosso povo me chama de Lizzy. E eu acho tão engraçado que agora isso virou essa persona de rap — Lizzy — em contraste com a Lizzo popstar. Porque toda vez que tô na rua, os pretos sempre me chamam de Lizzy. Então eu fico tipo: “Tá bom, eu sou a Lizzy então.”

Como foi estar no estúdio com sua melhor amiga fazendo essa mixtape? Quais outras mulheres do rap dividiram experiências com você?

Chamei minha melhor amiga porque ela é minha maior incentivadora. [Lizzo começa a se emocionar] Ai, meu Deus, não fica emocional agora, Melissa. Calma. Ufa! Pronto, voltei. Eu pensei: “Eu preciso dela. Preciso dela agora.” Escrevi um monte de músicas e planejei tudo. Pensei: “Quando ela pousar, vou botar ela no estúdio pra fazer os ad libs e vocais adicionais.”

E tudo se encaixou perfeitamente. Ela chegou no meio do processo e eu disse: “Vai com tudo. Toma dois shots de tequila. Vou dar o play e você só manda os ad libs.” Então, se você ouvir “Crashout” e escutar “Fala tua merda, vadia”, é a Lexo. Ela trouxe uma energia muito especial pra tudo.

Ela é artista também?

Não, ela não é artista. É só minha amiga. Ela não escreveu nada, mas trouxe a energia dela pras sessões e pras faixas. Sou muito grata por ela. Ela já apareceu em “About Damn Time”. Você já ouviu a voz dela em outras músicas minhas, mas dessa vez eu quis que ela fizesse uma passada só de ad libs. Ela fez em “Crashout”, e vocais adicionais em “Just for Fun”, “Ditto” e “Cut Em Off”. Essa é minha garota. Mas em “Gotcho Bitch”, quando eu disse: “Nicki gotcho bitch, Doja gotcho bitch, SZA gotcho bitch, Cardi gotcho bitch, JT gotcho bitch, Megan gotcho bitch, Sexyy gotcho bitch, GloRilla gotcho bitch, Latto gotcho bitch” — e a lista segue — eu quis trazer… Isso pra mim é um sonho. O estado do rap feminino hoje é meu maior sonho realizado.

Quando comecei na cena como rapper indie, promovendo Lizzobangers em 2013, não havia tantas garotas pretas no rap. Sempre me perguntavam: “Como é ser uma rapper mulher numa indústria dominada por homens?” E hoje é louco porque ninguém mais faz essa pergunta, porque isso não existe mais. Não é mais dominado por homens. É dominado por mulheres, com certeza. E isso me empolga muito.

Conversei muito com a Missy Elliott. Falei com a Lil’ Kim e a Da Brat, e elas me contaram como foi viver aquele primeiro grande momento do rap feminino. E elas diziam: “Era como uma família. Tinha muita união. A gente aparecia nos sets dos clipes uma da outra e até fazia sleepovers.” E essa faixa, pra mim, é trazer um pouco disso pro agora. Quero representar essa união, essa irmandade do rap feminino atual. Tem tanta garota incrível, todas mandando bem, e eu tenho muito orgulho de todas. Me inspiro em todas.

Algumas eu nem posso dizer que tenho orgulho porque elas são lendas. São ícones. E acho até um pouco desrespeitoso dizer que tem orgulho de um ícone. Só presta seu respeito e pronto.

Mas fico maravilhada com onde chegamos — todas essas garotas pretas rimando muito, movimentando e moldando a cultura, mudando a linguagem. Hoje todo mundo fala “Period” por causa das City Girls. Pretos já falavam “Period”, mas agora é algo culturalmente relevante e todo mundo diz isso. O impacto que essas mulheres causaram é inspirador pra mim. Então, sim, essa faixa foi meu jeito de dizer: “A gente comanda essa porra”, e espero que as pessoas gostem.

Me conta como surgiu “Still Can’t Fuh”, com a Doja Cat.

Essa música é engraçada. Eu trabalho com um compositor e produtor incrível chamado Theron Thomas. E ele falou: “Tem uma garota que postou um vídeo no carnaval caribenho, com aquela roupinha típica de lá [pra brincar de Mas], e ela passou dizendo: ‘Tô com tudo isso aqui e mesmo assim você não consegue foder.’” E a gente pensou: “Como é que ainda não escrevemos essa música?” Tipo: “Ah, você acha que eu te devo sexo só porque tô na sua área VIP?”

Já vi muitos vídeos no TikTok de caras [depois de um encontro] dizendo: “Posso entrar?” E a garota responde: “Não.” Aí o cara fala: “Mas eu paguei o jantar, fiz tudo isso por você. Não posso entrar?” E aí eles piram, ficam violentos e estranhos. Alguns vídeos são armados ou feitos só pra gerar raiva, mas refletem uma dinâmica real.

Eu quis escrever uma música pras mulheres fodonas que estão tipo: “Uh, uh, uh. Você sabe que pode fazer tudo isso e mesmo assim eu não te devo meu corpo, né?” Eu, de fato, não te devo nada, porque tô partindo do princípio que você fez porque quis. Não faça nada esperando algo em troca, porque você não vai receber nada — a não ser que eu queira te dar. Então, pra essa faixa, eu nem escrevi um segundo verso porque eu sabia que a Doja Cat era a pessoa certa pra isso.

Depois disseram: “Precisamos de um sample de alguém dizendo algo absurdo.” E na hora eu pensei: “Shera Seven.” [Shera é uma TikToker famosa pelo bordão “Sprinkle Sprinkle”]. Eu disse: “Temos que usar o ‘Sprinkle Sprinkle’.” Ninguém no estúdio sabia quem era, porque só tinha homem na sala. E eu pensei: “Claro que vocês não sabem quem ela é, porque ela é nossa líder.”

Achei um clipe dela em cinco minutos e falei: “É esse.” A gente colocou ali, e quando o beat entrou, eu pensei: “Tenho que dar essa faixa pra Doja Cat. Não tem outra pessoa pra ela.” Mandei um áudio pra ela dizendo: “Tô fazendo umas coisas bem safadas.” E ela respondeu: “Tô pronta pra abrir as pernas no estúdio.”

Ela entrou na faixa e escreveu o verso em uma hora. Juro, ela me ligou por FaceTime e falou: “Essa música tá pesada. Já volto.” E em uns 30 minutos, me ligou de novo com o verso pronto. E o resto é história.

Talvez o título da matéria seja “Tô pronta pra abrir as pernas no estúdio.”

Pois é! Essa é minha parceira, cara. A gente se conhece há muito tempo. Fizemos turnê juntas lá em 2017. Então tenho história com ela, sempre admirei o trabalho dela e sempre quis colaborar. Tô muito feliz que finalmente conseguimos esse momento juntas.

Você vai interpretar a Sister Rosetta Tharpe em um filme que está por vir. Como tem sido esse processo? Já começaram a gravar?

Ainda não. Nossa, que engraçado. Ufa, tô tão imersa no mundo do rap que até me desconecto. Comecei a aprender guitarra esse ano por causa desse papel. [Ela aponta para uma guitarra atrás dela.] Eu lutei pra produzir esse filme e fazer ele acontecer. Estamos trabalhando nisso há cinco anos. Ela é a criadora do rock & roll, uma mulher negra e queer. A história dela merece ser contada. Nada disso aqui existiria se ela não tivesse decidido amplificar a guitarra dela. Tô empolgada pra contar essa história. Agora tô no modo música, focada no álbum, mas assim que sair disso, entro no modo cinema.

Então são vários modos: mixtape do verão, rebolando no quintal, depois o álbum, e depois o filme. Como você tá se sentindo em relação a este ano?

Cara, tô me sentindo incrível agora. Tipo, sério. Não é que eu estivesse mal antes, mas me sinto uma nova mulher, sabe? Sinto que evoluí. Aprendi muita coisa sobre mim — e coisas boas. E tô muito feliz com isso. Preciso estar criando o tempo todo. Essa é minha nova vibe. Antes eu separava os momentos criativos, agora penso: “Não, gata. Você precisa de um estúdio em casa. Precisa escrever músicas. Precisa colocar sua visão criativa pra fora. E precisa confiar na sua visão também.” E tô realmente, realmente feliz.

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Jornalista em formação pela Universidade Cruzeiro do Sul, em São Paulo, Giulia Cardoso começou em 2020 como voluntária em portais de cinema. Já foi estagiária na Perifacon e agora trabalha no núcleo de cinema da Editora Perfil, que inclui CineBuzz, Rolling Stone Brasil e Contigo.
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