Músico “que virou youtuber sem querer” fala à Rolling Stone Brasil sobre Humanamente, disco inclinado ao metal com todos os instrumentos gravados por ele
Publicado em 09/11/2024, às 08h00
Não soa exagerado quando Lucas Inutilismo diz, em entrevista exclusiva à Rolling Stone Brasil: “sou um músico que virou youtuber sem querer”. Basta ouvir seu primeiro álbum, Humanamente, disponibilizado na última sexta-feira (8) sob a alcunha artística Lvcas, para tirar a prova.
Com fluidez similar à que produz conteúdo no YouTube e nas redes sociais há anos — acumulando números expressivos como 5 milhões de inscritos no YouTube e 3 milhões de seguidores no Instagram —, o artista de nome real Lucas Vinícius da Silva também trabalha com música. Mais especificamente, com um gênero que desperta amor e ódio tal qual a atuação de inúmeros influenciadores digitais: o heavy metal.
Lançado de forma independente, Humanamente traz 16 composições autorais de Lucas — ou melhor, Lvcas —, responsável por gravar vocais e todos os instrumentos, além de coassinar a produção ao lado de Marcelo Braga, seu parceiro também nos já clássicos vídeos de retrospectiva musical no YouTube, com mashups e releituras musicais. A única participação especial (“feat”) é de Luana Victoria, irmã do artista/influencer de 28 anos, que oferece vocais em “Te Espero Aqui”.
A faixa que conta com a jovem cantora de 20 anos é um raro momento de tranquilidade em um disco que, mesmo com bastante peso, soa eclético, com sons graves usados tanto para o bate-cabeça (como em “Recomeçar” e “Sem Controle”) quanto para dança (a exemplo de “Volátil” e “Ilusão”). O metalcore é a principal inspiração, mas há alusões ao trap, hip hop, pop, hardcore e djent.
Não é algo inédito — nomes como Spiritbox e Sleep Token são alguns dos vários que já fazem tal mistura —, mas é tarefa hercúlea unir tantos elementos de forma natural. Lvcas comenta:
Para além do ramo da música, sempre gostei de convergir que podem parecer que estão em lugares opostos. Isso se dá tanto na produção de vídeos no YouTube quanto na música. Muitos artistas do metal contemporâneo já fazem essa mistura e eu não sei se tem a ver com tentar trazer um equilíbrio, pois o metal, às vezes, pode ser um pouco pedante, pois é muito fácil de se empolgar ali, podendo virar uma repetição. Isso se estende a outros gêneros e também pode acontecer o contrário: a mistura ficar excessiva. Trazer o equilíbrio é um desafio.”
Neste sentido, conforme explicado pelo artista, a função de Braga na figura de um produtor clássico — aquele que “poda” e ajuda a impor limites — se mostrou fundamental. Ainda mais no cenário em que Humanamente foi gravado: ao longo de pouco mais de um ano, praticamente inteiro em casa por Lvcas, em meio a outros compromissos.
Curiosamente, enquanto define a música “como uma festa” — algo obviamente coletivo — devido à catarse que pode provocar, Lvcas / Lucas Inutilismo optou por gravar tudo sozinho, apenas com a parceria do produtor, por se tratar de um projeto pessoal. O músico admite sentir falta da dinâmica coletiva de uma banda, mas reforça: uma operação enxuta é mais fácil de ser controlada.
Como esse primeiro trabalho é muito pessoal, também acho que faz total sentido que eu desenvolva todas as linhas. É um álbum muito bem trabalhado na parte de guitarra, já que meu lance é guitarra e mão direita. Exploramos muito o groove de palhetada, o riff é muito mais na mão direita. Já nas linhas de bateria, gosto de brincar, explorar referências de pessoas cheias de repertório.”
O processo de escrita das letras se mostrou ainda mais pessoal para Lvcas. Humanamente não é explicitamente conceitual no sentido de contar uma história através das canções, mas traz reflexões sobre dilemas próprios do ser humano, em especial no campo dos sentimentos. Apenas uma das faixas, “Flores”, narra uma história fantasiosa — embora suas metáforas permitam que o ouvinte se conecte com o que é relatado. De resto, são pensamentos e reflexões que transitam pela mente do artista.
Para alguém que se especializou tanto nos instrumentos, não foi fácil se adaptar para transmitir uma mensagem também com palavras ritmadas. Ainda mais versos a respeito de si próprio. Ele comenta:
Cantar é algo que faço há pouco tempo, comecei a dar atenção a isso tem uns cinco anos. Aprender a escrever letra é quase como aprender a falar um idioma. Não é só juntar as palavras: é preciso formatar e prestar atenção na métrica. Foi o principal aprendizado desse álbum. Precisei desenvolver meu método: escrevia um texto gigantesco, colocava um instrumental e ficava pensando como isso se encaixaria.”
A já mencionada participação de Luana Victoria em “Te Espero Aqui” é, de fato, especial para Lvcas / Lucas Inutilismo. Ainda mais considerando a forma casual por meio da qual ele descobriu que a irmã, sem estudo formal em música, cantava.
Claramente, ela sempre foi uma pessoa artisticamente muito sensível. Lembro de descobrir que ela cantava porque, há alguns bons anos, ela publicou um vídeo cantando em algum lugar. Olhei e falei: ‘essa menina estava na mesma casa que eu esse tempo todo, que p#rra é essa?’. Lembro claramente de ela falar: ‘vi a Ariana Grande fazendo e fiz igual’. É quase um cristal de talento puro; ela faz coisas que nem sabe o que está fazendo, como técnicas vocais avançadas.”
A faixa na qual os irmãos colaboram surgiu, também, de forma espontânea. A parte em que os vocais de Luana entram vem de um vídeo gravado pela jovem cantando a capella no banheiro. Foi o primeiro contato de Lvcas com uma composição dela.
Então, lembro que fiz um vídeo-resposta no TikTok, onde colocava um violão por cima. A progressão de acordes não é muito convencional, pois estou seguindo a minha irmã cantando. Inclusive, essa música tem muito cara de musical, já que ela é apaixonada por musicais, teatro e tudo o mais. Então, fiz essa música em volta do trecho que ela gravou no banheiro.”
Apesar do sentimento de insegurança ser “meio de família”, Lvcas garante que irá incentivar a entrada definitiva de Luana para a música. A colaboração pode servir como um “empurrão”, no fim das contas.
Ainda no tema “insegurança”, Lvcas / Lucas Inutilismo conta que levou um tempo até que ele se sentisse bem para trabalhar nas próprias composições. Seu ímpeto era freado por uma autossabotagem nada racional e uma zona de conforto da qual, cedo ou tarde, precisou sair. Mesmo com a produção musical em andamento, o artista que muitas vezes dialoga com milhões de internautas precisa adotar estratégias para não se boicotar.
Quando lançamos os primeiros singles, eu falava para o Marcelo que iríamos trabalhar nas músicas só até determinado momento, quando iríamos parar e soltar. Se ficássemos até a música ficar perfeita, eu não iria conseguir. Eu tinha medo até de deixar uma música esperando para sair por muito tempo e em determinado ponto pensar: ‘não quero mais’.”
Ele, que aconselha qualquer músico com vontade de produzir músicas autorais a simplesmente fazer e lançar — “o que você lança hoje pode não ser o melhor da sua vida, mas é legal que se tenha um ponto de referência para se seguir trabalhando” —, ainda precisa lidar com os dogmas do metal. Lvcas sabe que fãs mais fiéis do estilo podem olhar com desconfiança para suas iniciativas. Veio, daí, a constatação que abre este texto.
Convivo com metaleiro a vida toda e sei como é, apesar de achar que tem evoluído bastante nos últimos anos. Para mim, essa resistência do metaleiro com algumas coisas prejudica o movimento. Fiz minha carreira profissional no YouTube e isso é usado a meu favor — e sei que muita gente quer ser tudo, como um influencer que resolve cantar, entendo que gera estranheza —, mas sou um músico que virou youtuber. Sou músico antes de tudo isso. Sempre tive contato com vídeo e com música. Minha primeira paixão foi a guitarra. Entendo o que vou chamar de ‘preconceito’, mas acho que o saldo final é muito mais positivo.”
Destacando a conexão que possui com seu próprio público para além do superficial, Lvcas ainda observa como frequentemente seguidores seus lhe dizem ter começado a gostar de rock e heavy metal por causa de seus conteúdos. Sobrou espaço até para uma comparação gastronômica.
Às vezes vou em algum show e sempre quando encontro a galera, os caras falam: ‘tô aqui por sua causa, eu não ouvia nada disso e você me mostrou essa parada através do teu negócio’. Isso é importante para o movimento, amigos meus que têm banda dizem isso. Metal para mim é como uma cebola. Você não pode dar uma cebola inteira para uma criança e dizer: ‘morde aí’. É uma questão de saber como inserir.”
*Humanamente, álbum de estreia de Lvcas (Lucas Inutilismo), pode ser ouvido nas plataformas digitais. O show de lançamento do disco acontece em 23 de janeiro, na Audio, em São Paulo. Ingressos no site Ticket360.
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Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pós-graduado em Jornalismo Digital. Desde 2007 escreve sobre música, com foco em rock e heavy metal. Colaborador da Rolling Stone Brasil desde 2022, mantém o site próprio IgorMiranda.com.br. Também trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, site/canal Ei Nerd e revista Guitarload, entre outros. Instagram, X/Twitter, Facebook, Threads, Bluesky, YouTube: @igormirandasite.