Duo britânico, ícone da música eletrônica, retorna ao Brasil após 17 anos para apresentação única no C6 Fest, neste sábado (20) em São Paulo, e fala sobre o legado de sua obra
Karl Hyde e Rick Smith atendem de algum lugar da Califórnia. Ambos calmos, com a fala tranquila, nem de longe emulam a energia caótica do palco incendiário do Coachella, onde poucos dias antes, arrancaram reações das mais animadas do público, por vezes apático, do festival. Em uma apresentação inundada por laser e fumaça, o duo britânico de 66 e 63 anos mostrou o frescor anacrônico da música do Underworld.
Longe de um estereótipo sisudo que o pioneirismo possa sugerir, a dupla, responsável por um legado histórico na música eletrônica desde os anos 1980, chega a 2023 com a energia renovada - tanto por lançamentos de novas faixas recentes, quanto por uma turnê global, que desembarca neste sábado (20) no palco da C6 Fest, em São Paulo. A visita ao ocorre 17 anos após a última passagem do duo pelo Brasil, em 2006.
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"Acho que desde que estivemos aí sempre esperamos por uma chance de voltar. E não acho que a gente possa imaginar como vai ser, ou como vamos ser recebidos, porque vai ser algo novo. Um novo tempo, com novas pessoas, e o que realmente esperamos é que algo floresça dessa vez que estivermos por aí", diz Rick.
Por aqui, a dupla encara a missão quase impossível de condensar, em uma setlist de pouco mais de uma hora, o repertório de 35 anos de história. Questionados sobre o que imaginam para o reencontro, eles explicam que abandonaram a pressão de cumprir uma mesma agenda ao longo de seus diferentes shows:
"Não sabemos, na verdade. Não sabemos nem mesmo o que vamos tocar depois de amanhã em nosso show em São Francisco. Às vezes, mal sabemos o que vamos tocar até a hora de chegar ao palco", explica Karl.
O processo mais solto, tanto em palco quanto em entregas, difere daquele adotado no último álbum, Drift Series 1, de 2019, lançado meticulosamente ao longo de 52 semanas. Em 2023, Karl e Rick parecem curtir mais o processo - das quatro músicas apresentadas ao vivo neste ano, apenas uma virou single. Com uma percussão ainda mais pesada, "And the colour red" apresenta uma sonoridade mais profunda e até sinistra para o duo. Questionado sobre como ela reflete um possível próximo álbum, Karl desconversa:
"Que pergunta ambiciosa, nós acabamos de lançar uma faixa e você já quer saber da sobremesa antes do prato principal [risos]. Estou brincando, cara. Nós escrevemos constantemente. Se você se lembra de nosso último projeto, Drift, nós lançávamos praticamente uma música por semana, porque aquela era a história. Isso é o que fazemos, nós escrevemos material novo constantemente, e soltamos assim que asentimos ser apropriado, quando sentimos que está pronto."
Nessa nova fase, de alta energia e poucas definições, a dupla admite que suas apresentações são únicas, irrepetíveis. Em parte por explorarem uma extensa discografia - ou, em outros termos, por disporem de uma longa história que ajudara, a construir. Presença confirmada entre os maiores nomes do EDM global, o Underworld experimentou, em mais ou menos intensidade, as transformações de um cenário que continua evoluindo, mais e mais rápido do que eles mesmos conseguem prever. Ainda assim, quando questionados, eles tentam condensar e teorizar sobre as principais mudanças que testemunharam com os anos.
"Se nos perguntasse isso, digamos, em 1995 ou em 1996", adianta Rick, "nós diríamos que o que mudou foi a cena dos clubes, a própria essência dos DJs, saindo do baleriec e do acid house e focando muito mais nesses gêneros que vimos se desenvolver, como o house progressivo, o tech house, o dub house, e até mesmo, sei lá, o vegan house... vegetarian house, ou o house carnívoro, o que quer que fosse [risos]..."
"Mas se falarmos de um período tão longo, acho que o que vimos é que a música nunca está finalizada. Ela se renova. Outra geração de pessoas cresce, amadurece, fica mais velha, abraça a tecnologia, a cultura, e responde a ela. E a maior mudança provavelmente é algo que não afetou apenas a música, que é justamente a tecnologia e a revolução em curso, em termos das comunicações. Isso afetou profundamente toda a arte e a vida em si. E olhamos para isso de uma forma amplamente positiva, no sentido de dar oportunidades às pessoas."
Diante desse cenário de amplas transformações, mesmo dentro do próprio repertório, uma verdade em quase toda apresentação do Underworld é a presença de "Born Slippy .NUXX". A faixa, escrita em 1995, seria usada no ano seguinte como trilha sonora do filme Trainspotting, de Danny Boyle, excedendo os limites do grupo para muito além do nicho eletrônico britânico, tornando-a o legado de uma geração.
A música foi composta por Karl, que à época enfrentava questões com a dependência e a teria escrito desta perspectiva - talvez daí a conexão tão forte com o filme de Boyle. Mas como tudo, quando o assunto é o Underworld, ela também passou por transformações com os anos e chega em 2023 com ainda mais significado - e como um exemplo de toda a transformação, da criatividade e da evolução que parecem a única certeza que atravessa o tempo com o Underworld:
"É extraordinário ter uma música que signifique tanto a tanta gente ao redor do mundo. E, para nós, sermos conectados a ela e podermos tocar e receber essa energia de volta... bem, ainda a tocamos em quase todo show e é meio estranho, na verdade, o tanto de magia que ela desperta", diz Karl. "E acho que para nós isso tem tudo a ver com a forma como o público reage. Eles ficam tão animados e excitados em ouvir isso, que o menor sentimento já parece uma viagem. É por isso que ainda tocamos. Porque está viva!"