Traumas psicológicos, autodescobrimento e o fim da jornada de um guerreiro fadado a viver imerso em dilemas e tristezas
Nesta segunda, dia 10 de agosto, Samurai Jack completa 19 anos. Neste mesmo dia, em 2001, o Cartoon Network exibia o primeiro episódio desse desenho que não demorou para se tornar um clássico, e por motivos indiscutíveis.
Criado por Genndy Tartakovsky (mente responsável por também trazer ao mundo O Laboratório de Dexter, dirigir vários episódios de As Meninas Superpoderosas e ainda desenvolver o elogiado Star Wars: Guerras Clônicas), a animação se destacou por unir enquadramentos cinematográficos a uma direção de arte exemplar, além de usar trilha sonora e silêncio como elementos mais importante para a narração do que os próprios diálogos.
Em setembro de 2004, o conto do samurai do Japão feudal transportado para o futuro pela impersonificação das trevas chegou ao fim. De certa forma.
A 4ª temporada encerrou de um jeito um tanto quanto aberto, e a história de Jack ficou assim por treze anos, até que em 2017 Tartakovsky e a equipe responsável pelo universo criado até então decidiram contar o final definitivo do personagem.
Os dez últimos episódios do desenho, que compõem a 5ª temporada, foram lançados pelo Adult Swim, vertente do Cartoon Network responsável por produções voltadas ao público adulto. Apesar de nunca ter sido uma animação tradicionalmente infantil, o desfecho dessa aventura usou de uma maior liberdade criativa para assumir um tom surpreendentemente obscuro, com temáticas delicadas e dilemas existencialistas.
E essa atmosfera fica clara logo na premissa: 50 anos se passaram desde o último episódio da 4ª temporada e Jack ainda está preso no futuro. Mas com o tempo, ele percebe que não envelhece, e o passar dos anos traz para ele apenas uma crescente desesperança de voltar para casa e o desespero de ver tudo ao seu redor morrer, mas não acompanhar esse ciclo natural da vida.
A partir disso, e para comemorar os 19 anos do desenho, vamos fazer uma jornada pelos dez episódios da última temporada de Samurai Jack para mostrar que Tartakovsky orquestrou com maestria esse desfecho e encerrou de maneira impecável uma história que já havia ganhado o status de clássico.
A seguir, obviamente haverão spoilers definitivos do desenho.
O primeiro episódio não demora a mostrar de forma bem explícita que aquele Jack sereno e otimista não existe mais.
A exaustão e o desespero do protagonista são apresentados tanto através da aparência dele (como feições raivosas expressivas, cabelo e barba longos) quanto da postura muito mais agressiva, além da notável troca da katana, que o acompanhou por anos, por lanças tecnológicas, metralhadoras e revólveres.
O samurai esperançoso e amigável aparece agora como um ser consumido pelo ódio, ríspido e despido de todo e qualquer ideal moral que seguia antes.
Mas apesar do estranhamento que esse novo Jack pode causar, é impossível não compreender o estado em que ele se encontra, afinal de contas, há décadas ele é incessantemente caçado por capangas do antagonista Aku, além de ser constantemente atormentado pelo passado ao qual ele nunca conseguiu voltar, que o atormentam com visões de cadáveres, gritos de socorro e acusações vindas do fundo de uma mente que culpa pelo fracasso.
Como se não bastasse a carga emocional, o primeiro episódio apresenta também as Filhas de Aku, um grupo de sete mulheres nascidas da essência do vilão, treinadas e doutrinadas a acreditarem que Jack é a causa de todo o mal e destruição do mundo, e por isso, têm como único objetivo de vida matá-lo.
Com a predominância do tom geral mais sombrio, é interessante ver como é o próprio antagonista que protagoniza os momentos mais engraçados da temporada. Aku retorna mais carismático do que nunca, com um senso de humor ácido e irônico que tornam interessantes todas as esporádicas aparições dele.
Mas apesar de ter conseguido aprisionar Jack no futuro caótico que construiu, o vilão não está satisfeito com a situação que vive.
Ficamos sabendo que Aku também enlouqueceu ao ver que o passar dos anos não afeta seu maior inimigo, afinal de contas, como ele mesmo diz, esperava queo guerreiro simplesmente morresse de velhice, já que nenhum dos seus capangas robôs consegue matá-lo.
O episódio apresenta também uma versão de Jack que apenas ele vê, em momentos de surto, e que o confronta com verdades doloridos e questionamento existencialistas como a ideia de desistir da vida e se entregar à morte para encerrar o ciclo infindável de sofrimento que vive há tantos anos.
É também nesse ponto da narrativa que o samurai mergulha ainda mais no poço da insanidade.
Perseguido e atacado pelas Filhas de Aku, ele consegue cortar o pescoço de uma delas, para descobrir logo em seguida que elas são humanas e, pela primeira vez, ele matou uma pessoa.
Fisicamente ferido e mentalmente traumatizado (mais ainda), Jack passa o terceiro episódio escondido das seis Filhas de Aku restantes, que ainda o caçam, ao mesmo tempo que cuida do ferimento profundo que quase o matou.
Aliás, é exemplar o design de som no momento em que ele finalmente consegue arrancar a faca fincada na barriga. O ruído de carne e pele sendo rasgados tornam extremamente explícita uma cena que não seria tão impactante de ver se dependesse apenas da parte visual.
A situação e a consciência pesada de ter matado alguém fazem com que Jack se lembre de quando era uma criança, e viu pela primeira vez o pai matar alguém, e como, tranquilo após a matança, lhe ensinou que alguns confrontos na vida são inevitáveis.
E esse momento se mostra essencial para fazê-lo tomar a decisão de parar de fugir e enfrentar as guerreiras que tanto querem matá-lo.
A partir desse ponto, a história toma um rumo inesperado. Jack mata seis das sete Filhas de Aku, e decide proteger Ashi, a única sobrevivente, por se sentir culpado que ela só foi trazida a esse mundo de sofrimentos para matá-lo. Ou seja, a existência dela é culpa dele, assim como ela ter sido criada para e pelo o ódio.
Como se finalmente achasse um propósito que não fosse apenas fugir de ameaças constantes, o samurai decide mostrar como o mundo é de verdade, e como é muito diferente daquilo que foi ensinado a ela desde que nasceu e durante os anos de treinamento na torre do vilão.
Jack se propõe a convencer Ashi de que o criador dela é o verdadeiro inimigo do equilíbrio universal.
Nesse episódio que marca a metade da temporada, Jack viaja pelo mundo com Ashi para mostra evidências de toda a destruição causada por Aku.
Sem mais conseguir enfrentar esses fatos concretos, ela se vê em um conflito interno entre acreditar naquele que sempre lhe foi pintado como o vilão da história e deixar para trás tudo que sabe, ou se manter fiel às próprias origens.
Depois de ver provas suficientes, Ashi inicia a jornada rumo à redenção, apresentada quase que como uma antítese ao declínio mental de Jack.
Depois de conseguir abrir os olhos de Ashi para a verdade sobre Aku e o mundo, Jack foge e decide se rende ao destino que por tantas vezes implorou para que ele desistisse de lutar e acabasse com a própria vida.
Ela então sai em busca dele, e ao longo do caminho, encontra várias criaturas que o samurai ajudou nas quatro temporadas anteriores, que fazem Ashi enxergar não apenas a honra do amigo, mas também toda a bravura que ele inspirou nos outros.
E é exatamente isso que ela traz à tona quando finalmente o encontra, prestes a executar o harakiri, ritual no qual samurais tiravam a própria vida como demonstração de arrependimento por terem desonrado o código sob o qual vivem.
Esse momento representa o ponto de virada para Jack, que volta a acreditar na possibilidade de acabar com Aku e salvar o que resta do mundo devastado pelas trevas.
O sétimo episódio contrapõe de forma excepcional e artística as batalhas que Jack e Ashi precisam enfrentar.
O samurai mergulha em uma meditação profunda, na qual viaja por lugares desconhecidos até encontrar uma encarnação de Buda que faz a ele a pergunta mais simples e mais filosófica de todos os tempos: "Você está perdido?".
Em uma das cenas mais meticulosas e cinematográficas da temporada, ele faz chá e reflete sobre si mesmo em uma conversa eficaz sobre autodescobrimento, que o faz perceber o grande motivo por ter se distanciado do caminho nobre umas vez trilhado: a raiva que se manifestava na outra versão de Jack e aparecia ao protagonista nos momentos de desespero e frustração.
Enquanto isso, em contraponto, Ashi trava uma batalha frenética contra um exército inteiro para defender o corpo do amigo, e luta inclusive contra a própria mãe, em uma demonstração de ter renunciado por completo o passado.
O tom leve do oitavo episódio se destaca no meio do conto sombrio narrado até agora na quinta temporada.
Logo no começo, ele já apresenta como foco o início do interesse amoroso recíproco entre Jack e Ashi, com um cena divertidamente romântica na qual a sintonia do casal vem à tona enquanto eles lutam juntos contra um bando de tigres verdes assassinos.
Sempre preocupado em se defender e ocupado ajudando os outros, essa é a primeira vez em que o samurai demonstra interesse por alguém (em todas as temporadas), e consequentemente, a primeira vez que beija alguém.
Apesar de ter abdicado do passado como uma das sete assassinas conhecidas como Filhas de Aku e até ter matado a própria mãe, Ashi descobre da pior forma que não se livrou por completo da essência do pai, que habita no fundo do ser dela.
Em um confronto contra o arqui-inimigo, Jack se vê novamente obrigado a enfrentar uma Ashi controlada pelo pai, mas dessa vez completamente tomada pelas trevas.
Se ele não reagir, ela o mata. Se ele reagir, pode matá-la. Mais um conflito na vida do protagonista no qual nenhum dos dois resultados possíveis é favorável.
Uma trajetória conturbada como essa apresentada ao longo dos dez episódios da 5ª e última temporada de Samurai Jack não podia ter um final completamente feliz.
Por um lado, o protagonista consegue finalmente derrotar Aku e voltar para o passado, acompanhado por Ashi, com quem pretende se casar.
Por outro lado, se Ashi nasceu de Aku no futuro, e agora ele não existe mais no futuro, então isso significa que... isso mesmo.
Samurai Jack é o conto de um guerreiro fadado a viver dilemas existencialistas e as consequências de cada escolha que o atingem sem perdão.