Entenda o legado do Rei do Ritmo, artista que mandou o 'Tio Sam pegar no tamborim'
O ano era 1959 e assim cantava José Gomes Filho, mais conhecido como Jackson do Pandeiro, em "Chiclete com Banana":
“Só ponho bebop no meu samba / Quando o Tio Sam pegar no tamborim / Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba / Quando ele entender que o samba não é rumba / Aí eu vou misturar Miami com Copacabana / Chicletes eu misturo com banana / E o meu samba vai ficar assim / Quero ver a grande confusão / É o samba-rock, meu irmão”.
Um dos grandes nomes da música popular brasileira, Jackson do Pandeiro nasceu há exatos 100 anos, em um 31 de agosto de 1919. O artista morreu em Brasília em 10 de julho de 1982, aos 62 anos, como um dos maiores nomes da música popular brasileiro.
Ele foi um rei. O rei do ritmo.
"Chiclete com Banana" foi composta por Gordurinha e Almira Castilho, companheira na vida e no palco de Jackson do Pandeiro, e é um típico exemplo da vasta obra de um artista que gravou cerca de 435 canções.
“Talvez seja uma das músicas mais emblemáticas do cancioneiro nacional. Aquela que dialoga com o mundo. Que diz: 'Olha, Tio Sam, Europa, Ásia, venha quem vier, aprenda a tocar o samba para que a gente possa também tocar o ritmo de vocês e se dar muito bem'. É uma música que foi regravada inúmeras vezes”, opina o biógrafo Fernando Moura, autor do livro Jackson do Pandeiro – O Rei do Ritmo, escrito com Antônio Vicente, e da biografia em quadrinhos, que leva o nome do artista e é voltada ao público infanto-juvenil.
“O maior legado de Jackson é a diversidade de um repertório que é uma verdadeira radiografia da musicalidade brasileira. Ele não teve preconceito de cor, raça, religião e sexo”, garante Fernando Moura. E prossegue: “Ele gravou de tudo – cocos, sambas, frevos, rojões, maracatus, rancheiras –, do sul do país ao norte, nordeste, centro e centro-oeste. Ele não se restringia àquela coisa estereotipada da seca e do ser nordestino. Ele foi muito urbano também, o que o deixou conhecido como rei do ritmo.”
O escritor cita como exemplo as canções “Nortista Quatrocentão”, parceria do próprio Jackson com Luiz Wanderley, que funde teclados, guitarras e metais, com voz de repentista, numa homenagem a São Paulo; e “Twist, Não”, de João Grillo e Roberto Faissal, em que ele critica o próprio ritmo que dá título a canção, num protesto bem-humorado.
A chancela de rei do ritmo foi dada a Jackson do Pandeiro durante um concurso carnavalesco promovido pelo Departamento de Turismo da Prefeitura do Rio de Janeiro e em que ficou no terceiro lugar, com a apresentação do samba “Lágrima”, composto por ele, José Garcia e Sebastião Nunes.
A segunda e definitiva coroação veio da gravadora Copacabana, que, em 1960, reuniu doze sucessos anteriores em Sua Majestade – O Rei do Ritmo. “Foi um carimbo da gravadora, mas que ninguém nunca questionou, nem tentou tomar essa coroa, porque, já em 1960, apenas com sete anos de carreira discográfica, era possível identificar diversidade e ecletismo em seu repertório”, confirma Fernando Moura.
Já o nome Jackson do Pandeiro foi dado ao garoto de Alagoa Grande, nas cercanias de Campina Grande, na Paraíba, durante uma participação na rádio Jornal do Comércio, de Recife, como derivado do modo como ele mesmo se chamava, ou seja, de Jack, inspirado em um mocinho de filmes de faroeste, chamado Jack Perry. O diretor de um programa da emissora acreditou que ficaria mais sonoro Jackson do Pandeiro e causaria mais efeito ao ser anunciado.
A associação de Jackson do Pandeiro com o tal instrumento percussivo foi imediata. “O pandeiro é um elemento significativo, tanto do ponto de vista sonoro, rítmico, como estético. Mas eu tenho a impressão que mesmo que, se não existisse o pandeiro nem no nome, nem na performance rítmica dele, ele continuaria sendo o rei do ritmo. Tanto é que passou um tempo sem tocar pandeiro e, mesmo assim, conseguiu manter o ritmo com a voz, coreografia, arranjos e escolha de repertório”, avalia Fernando Moura.
“Jackson tocava o instrumento de forma singular. Era caprichoso e utilizava as pontas dos dedos. Mesmo que fosse a mesma canção, ele tocava de forma diferente, demonstrando ainda mais sua habilidade com o instrumento, que foi seu grande companheiro”, opina Marcelo Félix Lopes, secretário da Cultura e Turismo de Alagoa Grande (PB), e um dos responsáveis pelo Memorial Jackson do Pandeiro.
“O suingue é determinado não pela força, mas pela sutileza e pelo inesperado. É uma coisa maravilhosa que o Jackson trouxe. Não acho que ele tenha inventado nada, mas mostrou como era possível fazer música popular, que todas as pessoas gostam, cantam, respeitam e admiram. A fala, a letra e a divisão rítmica dele era muito avançada para a época. O trabalho do Jackson pode ser considerado precursor do rap e de muitas outras coisas. Ele era original em si e mostrou caminhos que até hoje estão aí. O Jackson é muito importante, até mesmo para quem não toca pandeiro”, garante o músico Fernando Moura, que tocou com o irmão de Jackson do Pandeiro, Cícero Gomes, e com dois sobrinhos dele, Zé Gomes e Zé Leal.
“O grande legado deixado por Jackson foi exatamente o seu estilo de tocar, seu sincopado. Ou seja, ele dividia as notas. Quando você pensava que ele ia para um lugar, ele ia para outro. O instrumento principal dele era o pandeiro, mas ele tentou tocar outras coisas. Tocou sanfona, mas não deu certo. Na verdade, ele era conhecido como um grande sanfoneiro de boca. Hermeto Pascoal diz isso. O Severo, que tocou com ele, também. Sanfoneiro de boca porque ele não tocava sanfona, mas fazia o som na boca para o sanfoneiro tocar. Era o som da sanfona”, conta Marcus Vilar, diretor, junto com Cacá Teixeira, do filme Jackson – Na batida do Pandeiro, que teve uma exibição especial em 21 de julho, em João Pessoa (PB).
De acordo com o escritor Fernando Moura, um dos grandes bateristas e sambistas brasileiros, Wilson das Neves, tocou com Jackson em diversas gravações, principalmente de Clara Nunes, e gostava de dizer que, quando o artista entrava com seu pandeiro, tornava-se o centro rítmico em função da cadência precisa e da marcação cirúrgica. Os músicos naturalmente voltavam os ouvidos para o pandeiro dele.
Jackson do Pandeiro aprendeu a cantar coco com a mãe, Flora Mourão, e logo tornou-se tocador de zabumba. “As mulheres foram determinantes na vida dele. A começar pela mãe, que foi a mentora e inspiradora, por ser cantora de coco na região do brejo paraibano”, garante Fernando Moura.
Após a morte do pai, José Gomes, na década de 1930, Jackson se mudou com a mãe e os dois irmãos para Campina Grande, onde trabalhou como engraxate, ajudante de padaria e músico do Cassino Eldorado. Na feira central, ele conviveu com artistas populares, como cantadores de coco e violeiros.
Mais tarde, Jackson homenageou a nova cidade na música “Forró em Campina”: “Cantando meu forró vem à lembrança / O meu tempo de criança que me faz chorar / Ó linda flor, linda morena / Campina Grande, minha Borborema / Me lembro de Maria Pororoca / De Josefa Triburtino, e de Carminha Vilar / Bodocongó, Alto Branco e Zé Pinheiro / Aprendi tocar pandeiro nos forrós de lá”.
“A origem de Jackson é popular. Ele frequentou feiras, circos e tablados. Foi palhaço de pastoril. Então levou, para os palcos e ao início da televisão, uma carga cênica muito forte, com uma coreografia muito envolvente e carismática”, garante o escritor Fernando Moura. Ele conta que o crítico musical Zuza Homem de Melo costuma dizer que, naquela época, na migração do rádio para a televisão, o cantor Cauby Peixoto, por exemplo, o máximo que conseguia de movimento era dar dois passinhos para cá e dois para lá. O restante ficava estático, porque o rádio era uma plataforma estática.
“As exceções eram Jackson e Almira, que faziam coreografias diversas. Brincavam no palco. Dançavam e faziam palhaçadas. Então essa performance foi importante, inclusive, para levá-los ao cinema. Eles chegaram a gravar nove filmes. E isso ajudou na expansão da carreira de ambos”, opina. Entre os filmes, está “O Batedor de Carteiras”, de 1958, dirigido por Aluízio T. de Carvalho.
Dois dos maiores nomes da cultura nordestina e brasileira de todos os tempos, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga se conheceram no programa Amigos da Madrugada, comandado por Edelzon Alves, de meia-noite às três da madrugada, na rádio Globo carioca, e no qual Jackson trabalhou durante dez anos.
“Teve um dia que teve um programa de Gonzaga com Jackson. Foi a primeira vez em que eles se encontram para tocar e cantar. Um cantou música do outro. A partir daí, eles se tornaram muito amigos. Mas cada um tinha o seu estilo e seguia o seu caminho”, conta Marcus Vilar.
“Estabelecer uma relação entre Jackson e Luiz Gonzaga é complicado. Luiz Gonzaga cantou o Nordeste, o sertão, de forma saudosa, melancólica – aquela coisa do homem sofrido e exilado. O cancioneiro dele foi muito rural. Já o cancioneiro de Jackson foi muito urbano. Ele já inseriu no repertório elementos da crônica cotidiana, dos personagens da feira, da rua e do cabaré”, analisa o biógrafo Fernando Moura.
“Mas, do ponto de vista da referência para a música popular brasileira, eles se assemelham. Eles são duas faces da mesma moeda. Alguns intérpretes, como Alceu Valença, Geraldo Azevedo e João Bosco, costumam comparar Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro a Pelé e Garrincha. São dois gênios da bola. Só que um soube fazer o seu marketing e o outro não. Um foi mais organizado do ponto de vista da carreira e o outro foi mais despojado”, acrescenta.
Há muita discussão em torno de Jackson do Pandeiro ter sido precursor e inspirador do movimento tropicalista. Mas o fato é que Gal Gosta, por exemplo, regravou, por sugestão e com arranjo de Gilberto Gil, no álbum homônimo de 1969, “Sebastiana”, de Rosil Cavalcanti, um dos maiores sucessos da carreira do paraibano: “Convidei a comadre Sebastiana / Pra dançar um xaxado na Paraíba / Ela vem com uma dança diferente / E pulava que nem uma guariba / E gritava a, e, i, o, u, ipsilone”.
Gilberto Gil também regravou, no álbum Expresso 2222, de 1972, “Chiclete com Banana” e “O Canto da Ema”, de João do Vale, Aires Viana e Alventino Cavalcante: “A ema gemeu / No tronco do jurema / Foi um sinal bem triste, morena / Fiquei a imaginar / Será que o nosso amor, morena / Que está pra se acabar”.
“Jackson do Pandeiro é típico daquela verve interiorana nordestina, do artista que nasce no entrecruzamento da vida rural brasileira, em todos os seus aspectos – a agricultura, a gente e suas formas de convívio, entretenimento e diversão –, com o mundo urbano, especialmente das cidades de porte médio, como era o caso de Campina Grande, de onde ele vinha, e que começaram a ganhar uma importância muito grande nas décadas de 1930, 1940 e 1950”, garante Gil.
O fato é que Jackson do Pandeiro estava no ostracismo quando foi recuperado por Gilberto Gil e Gal Costa. Ele acabara de se separar de Almira Castilho e se casara com Neuza Flores, com quem viveu até a morte.
“No período em que conviveu com Almira [que conheceu na mesma rádio Jornal do Comércio, em Recife, na década de 1950], Jackson estava mais organizado e em expansão patrimonial. Chegaram a ter um apartamento de cobertura e vários carros. E, quando ele se casou com Neuza, já estava num processo de ostracismo. Sofreu dois acidentes que o deixaram imobilizado por um bom tempo. Então algumas agruras o acompanharam nesse período, o que me fazem dizer algumas vezes que Almira pegou o filé e Neuza pegou o osso de Jackson”, opina Fernando Moura, que prepara, junto com Sandro Dupan, o livro Os Ritmos do Rei – Jackson do Pandeiro de A a Z, em que aborda todas as canções gravadas pelo músico.
Outro artista bastante influenciado por Jackson do Pandeiro foi o cantor e compositor pernambucano Alceu Valença, que, na canção “Cópias Mal Feitas”, menciona “Dezessete na Corrente”, composta por Edgar Ferreira e Manoel Firmino Alves, e gravada em 1958.
Alceu garante que um dos maiores sucessos da carreira dele também foi inspirado em Jackson, “Coração Bobo”. “Conheci Jackson do Pandeiro em 1972, quando o convidei para cantar comigo e Geraldo Azevedo no Festival Internacional da Canção daquele ano. Eu havia composto ‘Papagaio do Futuro’, que falava em metáforas sobre a crise do Petróleo vivida no período e, por se tratar de uma embolada, achei que Jackson traria algo de especial à canção”, conta. Seis anos depois, em 1978, eles participaram do Projeto Pixinguinha, percorrendo várias cidades do país.
“Jackson foi, inclusive, quem me incentivou a cantar frevo, um gênero que eu até então evitava, por conta de toda a sua complexidade rítmica. Ele me dizia: ‘Pra cantar frevo, tem que ter queixada’. Ou seja, a capacidade de articular as palavras dentro da métrica. A partir de seu incentivo, passei a cantar e compor frevos, alguns deles em parceria com Carlos Fernando, como ‘Sou Eu Teu Amor’, lançado por Jackson em dueto com Gilberto Gil na série de discos Asas da América”, garante.
Vocalista, guitarrista e violonista da banda Paralamas do Sucesso, Herbert Vianna voltou às suas origens paraibanas em 1988 e incluiu, no álbum Bora Bora, uma gravação de “Um a Um”, de Edgar Ferreira, sucesso com Jackson do Pandeiro, em 1954: “Esse jogo não pode ser um a um / O meu clube tem um time de primeira / Sua linha atacante é artilheira / A linha média é tal qual uma barreira / O center-forward corre bem na dianteira / A defesa é segura e tem rojão / E o goleiro é igual um paredão”.
Foi também a partir da audição de Jackson do Pandeiro que outro cantor e compositor pernambucano, Lenine, compôs e gravou, no álbum “Na Pressão”, de 1999, a canção “Jack Soul Brasileiro”: “Jack Soul brasileiro / E que som do pandeiro / É certeiro e tem direção / Já que subi nesse ringue / E o país do swing / É o país da contradição / Eu canto pro rei da levada / Na lei da embolada / Na língua da percussão / A dança mugango dengo / A ginga do mamolengo / O charme dessa nação”.
“Ele jamais repetia a mesma interpretação. Não tem quem não ouça, não se comova e não se faça seduzido por aquela malemolência e jogo de palavras. Ele cantou de tudo e tudo que cantou, cantou muito bem. Mas é bacana frisar que, quando uma expressão musical consegue ter de tal maneira uma alma tão poderosa, ela consegue adaptar a ela qualquer tipo de canção. É o que acontece com o coco. E Jackson defendeu isso até morrer. Ele dizia que tudo era coco. Ele pegava qualquer música e tocava no pandeiro dele. Provava, assim, que o coco tem essa capacidade de ter uma alma própria”, analisa Lenine.
Um dos maiores representantes do coco, nitidamente influenciado por Jackson do Pandeiro, foi Bezerra da Silva, que estreou em discos com “O Rei do Coco”, lançado em 1975, pela gravadora Tapecar e que fez tanto sucesso a ponto de render um segundo volume no ano seguinte.
Portanto, há muitos motivos para se celebrar os 100 anos de nascimento de Jackson do Pandeiro, que morreu em 10 de julho de 1982, em Brasília, em decorrência de complicações de embolia pulmonar e cerebral.
“Estamos redescobrindo um mito da música popular brasileira. Alguém que influenciou positivamente a preservação da cultura popular brasileira. Através de Jackson, de sua vida e obra, mantemos viva a memória, a história e a cultura de um povo tão guerreiro. O maior legado que deixou, além de seus discos e gravações foi, sem dúvida, a grande influência que exerceu e exerce sobre artistas de diversos gêneros musicais brasileiros”, garante Marcelo Félix Lopes, que cuida da Caravana Rei do Ritmo, que tem como objetivo mostrar a vida e a obra de Jackson em cidades como Araruna, Alagoa Nova, Pilões, Bananeiras, Guarabira, entre outras.
As descobertas parecem não ter fim. O pesquisador musical Jocelino Tomaz de Lima, professor no interior do estado da Paraíba, descobriu, recentemente, uma música que estava perdida, porque foi gravada, em 1966, no lado B de um compacto que tinha, no lado A, o “Frevo do Tri”. Mas, como o Brasil não foi campeão naquele ano, o disco não vendeu e “Garota de Botafogo” ficou praticamente desconhecida.