COMENTÁRIO

A vida pós-morte de Charlie Kirk como IA de baixa qualidade não é um acidente

O fascínio da extrema direita por deepfakes e distorções acabou se voltando contra ela quando seu herói assassinado virou um meme de “brain rot”

Miles Klee

Charlie Kirk (Foto: Andrew Harnik/Getty Images)
Charlie Kirk (Foto: Andrew Harnik/Getty Images)

O chocante assassinato do ativista de direita Charlie Kirk em um campus universitário de Utah, em setembro de 2025, desencadeou uma tempestade de retórica extremada e acusações mútuas. Democratas e republicanos apontaram o dedo uns para os outros, acusando-se de fomentar uma cultura de violência; comentaristas partidários se agarraram a qualquer indício de que Tyler Robinson, de 22 anos — o jovem que acabou preso e acusado pelo assassinato de Kirk — tivesse sido motivado pela ideologia de seus inimigos políticos pessoais. Houve também homenagens comovidas, mas elas passaram quase despercebidas em meio a um debate feroz sobre o legado de Kirk, enquanto seus apoiadores pressionavam para que qualquer pessoa que criticasse o autoproclamado defensor da Primeira Emenda perdesse o emprego.

Apesar de centenas de americanos terem sido demitidos ou suspensos por empregadores como resultado disso, o humor sombrio que permeia o ecossistema das redes sociais não foi contido. Nas semanas e meses após o tiroteio, o nome e o rosto de Kirk se tornaram um novo tipo de presença fixa na internet — não por reverência a um herói abatido, mas por um desprezo troll e persistente. Em certos aspectos, o fenômeno ecoou os comentários pouco solidários sobre o assassinato do CEO da UnitedHealthcare, Brian Thompson, em 2024 (embora o suposto assassino do executivo, Luigi Mangione, desfrute de um apoio público significativamente maior do que Robinson).

Em vez de arrefecer, como acontece com a maioria das tendências online, os memes de Kirk continuaram a se multiplicar e a se transformar, com sua imagem inserida em reações clássicas da internet e colada aos corpos de inúmeras celebridades — um processo de troca que passou a ser conhecido como “kirkificação”. Em dezembro, usuários do TikTok acumulavam milhões de visualizações em vídeos de brain rot gerados por IA que retratavam Kirk como o Capitão América no final de Vingadores: Ultimato, fazendo parceria com Jeffrey Epstein e Sean “Diddy” Combs. O que poderia explicar isso?

Após sua morte, alguns se sentiram justificados em zombar de Kirk por causa da política racista e sexista que ele promoveu incansavelmente em vida. Também ajudou o fato de que o fundador da Turning Point USA já era alvo de memes zombeteiros havia anos, muitos deles focados em sua aparência. Outros pareceram encarar a repressão da coalizão MAGA a comentários anti-Kirk — que minava a tentativa de retratá-lo de forma higienizada como um mártir santificado — como um convite para ir ainda mais longe.

Incapazes de projetar um luto solene, os conservadores optaram pelo espetáculo e por comentários grosseiros. Esse tom preparou o terreno para os provocadores. Dois dias após o mundo ver Kirk ser abatido por um único tiro de um atirador de elite, um repórter perguntou a Trump como ele estava lidando com a execução brutal de um aliado-chave; Trump respondeu falando de seus planos de adicionar um salão de baile de US$ 200 milhões à Casa Branca. Mais tarde naquele mês, tanto o presidente quanto a viúva de Kirk, Erika Kirk, entraram no memorial realizado em um estádio em Phoenix sob uma chuva de fogos de artifício, como lutadores profissionais.

A comentarista de direita Candace Owens, amiga de longa data de Kirk e que lançou sua carreira na TPUSA, tem trabalhado incansavelmente para espalhar — e lucrar com — teorias da conspiração delirantes sobre um suposto complô internacional para eliminá-lo, que envolveria os governos de Israel, Egito ou França. Milo Yiannopoulos, outro comentarista de direita, especulou que Kirk era gay, que seu corpo nunca foi enterrado e que ele ainda poderia estar vivo. Um empreendedor de criptomoedas promoveu uma meme coin chamada “Kirkinator”, com vídeos gerados por IA que retratavam Kirk como um ciborgue.

Sob o regime Trump 2.0 — em fóruns online que reduziram significativamente a moderação —, direitistas declararam ter carta branca para abandonar o discurso “woke” ou “politicamente correto”, ressuscitando xingamentos para demonizar oponentes e explorando cruelmente assassinatos de liberais progressistas como bem entendessem. Esse mesmo clima, no entanto, permitiu ataques ferozes a um provocador do próprio campo, recém-morto a sangue-frio. Quanto mais eles se indignavam com o desrespeito demonstrado a um camarada caído, mais os haters se sentiam encorajados, criando montagens de Kirk como todo tipo de figura, de Michael Jordan a Jonah Hill, Beethoven e a Mona Lisa.

Tentativas sinceras de memorializar Kirk — ou de lucrar cinicamente com sua morte — alimentaram a ascensão do chamado “kirkslop”. Houve a campanha para erguer uma estátua dele em um campus do New College of Florida, proposta que incluía um Kirk gerado por IA e fundido em bronze, ridicularizado como uma homenagem cafona e indesejada. Alguns usuários de redes sociais aparentemente tentaram deificá-lo à maneira cristã ao aplicar a sigla “D.K.” (de Depois de Kirk) ao período posterior à sua morte — mas críticos se apropriaram do termo de forma irônica, voltando-o contra os acólitos da TPUSA. Produtos oportunistas, como uma linha de vinhos temáticos de Kirk lançada por uma vinícola pró-Trump, iam além da autoparódia.

Então, claro, houve a música gerada por IA “We Are Charlie Kirk”, da banda inexistente Spalexma — um hino tão completamente idiota quanto bombástico em sua veneração ao podcaster falecido que estava fadado a virar trilha sonora de milhares de TikToks, usado como arma em highlight reels de imagens “kirkificadas”. A faixa veio de um álbum inteiro intitulado Charlie Kirk Forever Alive, que chegou ao Spotify oito dias após o assassinato — a Spalexma já lançou impressionantes 18 discos só em 2025 — e encerra uma lista de faixas que inclui títulos como “Voice on Fire”, “I Bore the Cross” e “A Warrior of Truth”. (Uma ode a Kirk que o grupo fictício havia lançado alguns dias antes, “Welcome Home Charlie”, não teve a mesma repercussão.) Embora tenham sido apoiadores gratos de Kirk que trouxeram à tona a estridente bizarrice algorítmica da Spalexma, hoje ela pertence inquestionavelmente à esquerda sarcástica.

Está claro que Kirk é a primeira figura nacional a ser totalmente absorvida pelo multiverso em expansão do digital slop, em grande parte por causa da popularidade dessa estética anticriativa — e de uma indiferença básica à verdade ou à empatia — entre seus colegas mais proeminentes. Faria menos sentido que aqueles que odiavam Kirk e tudo o que ele representava o rebaixassem dessa forma se sua facção não fosse tão estranhamente fascinada pelo potencial de distorcer a realidade por meio de deepfakes e animações grosseiras. Agora ele pertence a essa tradição, preso em um limbo de referências recicladas sem fim.

Os aliados de Kirk querem que ele seja lembrado como um defensor dos jovens conservadores e do debate aberto. Mas essa maré pesada de conteúdos que ridicularizam qualquer noção de sua importância duradoura para a república americana aponta para um destino muito diferente. Como uma piada visual esvaziada de ideias, ele simboliza apenas o niilismo do momento — nossa capacidade de transformar até o colapso da ordem cívica em uma piada recorrente. O que realmente assusta é que esses artefatos são produzidos por e para as subculturas tóxicas da internet em que Robinson circulava, onde a violência política é promovida como meio para a glória viral ou como um fim justificável em si.

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