Amy Winehouse transformou sua dor e angústia em jazz, mas ela não era só isso [ANÁLISE]

No dia 23 de julho de 2011, morreu de forma trágica a maior e mais estonteante artista britânica do século 21

Nicolle Cabral

Publicado em 22/07/2019, às 22h07
Amy Winehouse (Foto: AP Matt Dunham)
Amy Winehouse (Foto: AP Matt Dunham)

"Você acha que vai ser famosa?", pergunta Garry Mulholland para Amy Winehouse, em uma entrevista registrada no documentário Amy, dirigido por Asif Kapadia. "Acho que não. Minha música não está nesta escala, às vezes, eu gostaria que estivesse, mas eu não vou ser nem um pouco famosa. Eu acho que eu não aguentaria. Provavelmente, eu enlouqueceria", responde ao jornalista.

Na época, talvez, não imaginasse até onde a sua infância regada a soul e jazz, em um bairro suburbano de Londres, ao lado de sua família judia, a levaria. Com uma voz estonteante, rouca, e quase sempre, triste, Amy Winehouse entregou, com apenas 27 anos, um imenso legado musical mesmo com apenas dois álbuns surpreendentemente coesos.

O primeiro, Frank, lançado em 2003, refletiu a capacidade lírica e harmônica da cantora e seu mergulho nas raízes do jazz. A obra recebeu elogios entusiasmados da crítica e rendeu a ela, os seus primeiros prêmios. Em 2008, o álbum registrou mais de 900 mil cópias vendidas no Reino Unido e alcançou platina duplo pela Indústria Fonográfica Britânica.

O segundo, responsável por transformá-la em um tremendo sucesso como cantora, trouxe uma sonoridade com novos adereços, entre eles, uma influência jamaicana, como o ska, e a incorporação do R&B contemporâneo.

Black to Black, lançado em 2006, foi o retrato do talento provocativo e marcado pelos conflitos da sua separação com o seu então namorado Blake Fielder-Civil.

Esse foi o seu caso de amor, uma nuvem escura que alimentava sua depressão e que ironicamente foi o combustível por trás de todas as músicas que amamos.

Entre elas, os sucessos "Tears Dry On Their Own", "You Know I'm No Good", "Rehab" e a canção homônima do disco.

No ano seguinte, o álbum - e a melancolia inerente dele - transformou Amy na artista feminina britânica mais premiada em uma única edição do Grammy e se tornou o disco mais vendido do século 21 no Reino Unido.

Com olhos exageradamente delineados e um enorme coque no estilo 'pin-up', Amy foi uma personalidade além do seu tempo.

Talvez até uma alma antiga dentro de um corpo muito jovem. Ao ser consumida por relacionamento conturbado, a cantora lutou durante grande parte da sua vida pública contra o vício em drogas.

E, infelizmente, foi encontrada morta no dia 23 de julho de 2011, na sua casa em Camden Town, no norte de Londres, enquanto as suas emoções ainda se mostravam nuas e cruas.

A causa da morte foi dada pela médica legista Shirley Radcliffe, em 2013, que concluiu a investigação como uma morte acidental por ingestão de álcool depois de um período de abstinência.

Além do retrato vulnerável de seu relacionamento e uso de drogas 

Devido aos últimos anos intercalados entre problemas com drogas, bebidas e o seu relacionamento, Amy não chegou a finalizar um álbum sucessor ao Black to Black.

Com isso, Mark Ronson e Salaam Remi, que desde o início acompanham a carreira da cantora, foram responsáveis por apresentar o projeto intitulado de Lioness, o primeiro álbum de compilação póstumo. Neste disco estão gravações de Amy antes mesmo do lançamento do seu primeiro projeto, Frank, e canções que a cantora estava trabalhando em 2011.

Uma das composições presentes é "Between the Cheats", gravada em 2008, que revelou mais um capítulo de sua relação com Fielder-Civil e direcionou nossos ouvidos para um novo caminho da artista por apresentar uma mistura mais pop e direta.

Sim, Amy pode ter evidenciado uma tendência autodestrutiva e nos mostrado, aos poucos, o seu desmoronar. Como em um show no Kalemegdan Park, em Belgrado, Sérvia, em que a artista errou grande parte das letras de suas músicas e fez a apresentação embriagada. Mas ela realmente acreditava no seu próprio futuro.

Amy vivia a música e o jazz. Definitivamente, ela não era as suas drogas, a sua reabilitação, o retrato da sua vida amorosa infeliz, ou a bomba-relógio, que grande parte das manchetes dos jornais estampavam.

Amy era todas as coisas que realmente a motivaram e a faziam bem.

Desde nova, sua família viveu mergulhada nesse universo. Sua avó, por exemplo, namorou Ronnie Scott, uma lenda do jazz britânico, nos anos 1940, e seus tios, por parte de mãe, são músicos profissionais de Jazz.

Em casa, ouvia com frequência os sons de Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Dinah Washington e sempre foi movida pela possibilidade de cada vez mais, estudar a música.

Antes de sua morte, revelou em algumas entrevistas que pensava em gravar um álbum de jazz "mais purista", e usou como referência os britânicos Soweto Kinch, Jazz Jamaica e Tomorrow’s Warriors como possíveis talentos para trabalhar junto.

Amy Winehouse foi um turbilhão de talento e perturbações, que a direcionou a um estilo de vida alvo de atenções bruscas, mas toda a vulnerabilidade fez com que sua música se estendesse como algo atemporal. E isso, ela fez com êxito.

A sua substância e talento conseguiu se sobressair em um mundo obcecado pelas celebrações superficiais e espetáculo de suas dores para transformar essa ambientação caótica no que genuinamente lhe trazia prazer.

Em 2003, a cantora disse ao The Guardian: "a música é a única coisa que eu tenho real dignidade na vida. Essa é a única área em que eu posso levantar a cabeça e dizer: 'ninguém pode me tocar'". E de fato, não podem.

Com a breve passagem e imenso talento, Amy segue influenciando artistas contemporâneas como Jorja Smith, Adele, Corinne Bailey Rae que a imprimem como retrato de genialidade. 

Garry, o mesmo jornalista que perguntou sobre o futuro de sua carreira, foi o primeiro a entrevistá-la e publicar um perfil da compositora em 2004. "Calorosa, engraçada, brilhante e honesta", é assim que Amy deve ser lembrada.

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