Supergrupo gera catarse festiva em primeiro show em nove anos no Brasil
Na noite de sexta, 4, o Arcade Fire se apresentou no Rio de Janeiro pela primeira vez desde 2005. De nove anos para cá, muito mudou: a banda formada em Montreal (Canadá) lançou três discos de sucesso, conquistou status de headliner nos principais festivais do mundo, acumulou adjetivos hiperbólicos da crítica (“O próximo U2”, disseram alguns) e conquistou um séquito devoto de apreciadores fanáticos. Promovendo o disco Reflektor, celebrado como um dos melhores de 2013, o supergrupo liderado pelo casal Win Butler e Régine Chassagne transformou o Citibank Hall em uma celebração catártica com requintes, sons e cores carnavalescas.
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O show no Rio de Janeiro carregava uma aura especial para o Arcade Fire. A cidade é o cenário de Orfeu Negro (1959), uma versão modernizada do mito grego de Orfeu e Eurídice, por sua vez inspirada na adaptação teatral Orfeu da Conceição, do poeta Vinicius de Moraes. O longa dirigido pelo francês Marcel Camus, premiado com a Palma de Ouro de Cannes e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, foi uma das fontes de inspiração assumidas do Arcade Fire para o conceito de Reflektor. Cenas do filme, cujo enredo trágico se desenvolve durante o Carnaval carioca, foram utilizadas no videoclipe de “Afterlife” e ganharam exibição no telão da casa de shows carioca. Todos os pequenos detalhes pareciam adequados à ocasião e incrementavam o clima festivo: parte da plateia utilizava máscaras, maquiagens coloridas e fantasias, conforme convocação prévia do grupo.
A dançante “Reflektor” determinou a agressividade da primeira metade do show, seguida da intensidade de favoritas dos fãs como “Neighborhood #3 (Power Out)” e “Rebellion (Lies)”, ambas do álbum de estreia, Funeral (2004). A banda estava concentrada e refletia a resposta do público, que se entregava com empolgação enérgica. O ritmo praticamente não se reduziu até a sombria “The Suburbs”, em que Win Butler finalmente saudou o público e apresentou a faixa de maneira irônica: “Esta música é sobre como o Brasil estará depois da Copa do Mundo”. Trajado tal como um aristocrata vitimado pela moda – calça estampada justa, casacão dourado brilhante e parte do cabelo presa atrás – o imponente vocalista de 1,90m fez questão de exibir entrega, curvando-se na beirada do palco, interagindo com os celulares e câmeras e oferecendo o microfone a um punhado de bocas. Afagou os egos dos fãs de carteirinha, a quem chamou de “soldados brasileiros”, e não deixou de recitar um verso de “Brazil” versão de Bob Russell para “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso – ele também havia cantarolado a mesma versão na primeira passagem da banda pelo país em 2005.
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Em cima do palco, nem tudo funcionava bem: o som da guitarra de Richard Reed Parry insistia em desaparecer por algum problema técnico. Impaciente, Butler chegou a esbravejar com um dos roadies e jogou um cabo defeituoso para a plateia. Não foi o bastante para estragar a interatividade positiva entre os músicos e a multidão.
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Ao vivo, o Arcade Fire trabalha como um time de futebol completo, com 11 jogadores esforçados e um técnico exigente – no caso, Win Butler. Nas faixas de Reflektor, a banda toca completa; nas faixas de Funeral, mais roqueiras e calcadas em riffs de guitarra e frases de violino, a formação se reduz para oito “atletas”. Fora Win, os integrantes pouco se movimentam no palco, apesar de trocarem de instrumentos a todo tempo. Em “Neighborhood #1 (Tunnels)”, Régine se aventurou na bateria, enquanto o baterista Jeremy Gara comandou a guitarra (a mulher de Win também tocou acordeão, teclados, percussão e o que mais estivesse à mão). Will Butler, irmão de Win, circulou por teclados, percussões e tocou o baixo em “Here Comes the Night Time”. Parry e Tim Kingsbury se revezaram nas guitarras, baixos e percussões eventuais. A sonoridade cometida pelo Arcade Fire impressiona pela precisão marcial, é marcante e sem falhas, apesar de levemente abafada e às vezes pecando pela indefinição dos timbres agudos. Completando 40 shows da turnê Reflektor, o grupo toca com segurança e sem dar margens a improvisos, mas se permite modificar o setlist em cada ocasião. Para o show no Rio, a surpresa foi uma raridade na atual excursão, “Neighborhood #2 (Laika)”, recebida com entusiasmo redobrado por fãs que se dedicaram a uma campanha online que pedia a execução da música (#vaiterlaikasim).
Em meio à massa sonora emocionante, Régine Chassagne faz um show a parte. Perdida em seus devaneios, às vezes parecendo alheia aos acontecimentos ao redor – e constantemente sob o olhar atento do marido –, ela rodopiou passos de bailarina, interagiu com espelhos e adereços e devolveu os afagos deslumbrados do público com gestos pueris. Como vocalista, brilhou quando fez seu tributo pessoal à música brasileira, cantarolando de modo singelo “O Morro Não Tem Vez”, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, acompanhada por poucos presentes que compreenderam a boa intenção. Nas duas faixas finais, foi a protagonista: “It's Never Over (Oh Orpheus)” e a dançante “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)”, de The Suburbs, em que emitiu agudos intensos e se perdeu em uma coreografia solitária e carregada de drama.
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Antes do bis, a derradeira homenagemda noite à brasilidade: uma “banda de mentira” (três figurantes disfarçados com cabeças de papel machê) dublou “Nine Out of Ten”, de Caetano Veloso, do álbum Transa (1972). A banda verdadeira expulsou os imitadores para dar início ao bis, com mais dois números de Reflektor – “Normal Person” e no “frevo indie” “Here Comes the Night Time”. Foi quando enfim a atmosfera carnavalesca tomou conta da audiência, com direito a chuva de papel colorido e o clima de histeria típico de um bloco de rua embebedado. A reação catártica foi o apogeu da noite, mas havia tempo ainda para uma puxada de freio para encerrar com o nível de comoção em alta. Com as luzes acesas, o maior hit do Arcade Fire, “Wake Up”, ganhou versão pseudoacústica, carregada da intensidade de uma autêntica missa carismática. Foi um último momento de sublime interação entre a banda e público, que por meio da cantoria se encontraram naquele plano etéreo que apenas a música consegue atingir.
O Arcade Fire ainda se apresentará em São Paulo na noite de domingo, 6 de abril, fechando a edição 2014 do Festival Lollapalooza.
Setlist:
“Reflektor”
“Flashbulb Eyes”
“Neighborhood #3 (Power Out)”
“Rebellion (Lies)”
“We Used to Wait”
“Joan of Arc”
“The Suburbs”
“The Suburbs (Continued)”
“Ready to Start”
“Neighborhood #1 (Tunnels)”
“No Cars Go”
“Neighborhood #2 (Laika)”
“Afterlife”
“It's Never Over (Oh Orpheus)”
“Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)”
Bis:
“Normal Person”
“Here Comes the Night Time”
“Wake Up”