Há uma década, a jovem cantora se consolidava como a maior voz de sua geração, movida a cigarros, vinho tinto e um coração eternamente partido
Como parte da celebração dos 15 anos da Rolling Stone no Brasil, continuo com a missão de resgatar e contextualizar as melhores reportagens publicadas na revista desde 2006. Nesta semana, é hora de relembrar a trajetória da cantora britânica Adele, cujo primeiro grande perfil foi publicado pela Rolling Stone há exatamente uma década.
No texto a seguir, veiculado na edição 57 da RS Brasil [junho de 2011], presenciamos uma artista de 22 anos aprendendo a gerenciar o sucesso avassalador de seu segundo trabalho de estúdio, lançado em janeiro daquele ano. Batizado 21 (a idade dela na época da produção), o álbum concedeu a Adeleo calibre de uma estrela pop de primeira grandeza, colecionando recordes de vendagem, prêmios e aclamação universal de público e crítica.
A reportagem apresenta um interessante contraponto ao estado recente da carreira da cantora, hoje com 33 anos. Praticamente onipresente na mídia em 2011, atualmente Adele se encontra em recesso artístico, com raríssimas aparições sociais e mantendo mistério sobre o status de seu novo disco, o primeiro em mais de cinco anos. A responsabilidade cairá pesada sobre seus ombros, mas assim como foi há 10 anos, tudo leva a crer que Adele vai saber lidar.
–Pablo Miyazawa, ex-editor-chefe da RS Brasil
''Ai, Louis!", geme Adele. "Não role no cocô!" É sábado, por volta das 14h, e ela está caminhando por um pequeno parque ao longo do lago Alster, em Hamburgo, Alemanha, puxando a coleira de seu companheiro constante, um dachshund "salsichinha" de 2 anos chamado Louis Armstrong.
A turnê europeia de Adele começou há poucos dias, mas ela não está se sentindo muito bem. Saímos do bar na cobertura do hotel, onde ela bebeu duas garrafas pequenas de vinho tinto. Agora, ela se sente "zonza". "Foi direto para a minha cabeça!", diz. Está totalmente sem maquiagem e seu cabelo loiro-escuro está puxado para trás em um nó bagunçado. Em um ano de bombas sexuais e projetos de arte nas paradas pop, o sucesso mais surpreendente de 2011 é um trabalho de uma mulher simples e cheinha de 22 anos, cujas roupas preferidas são suéteres grandes de gola alta (ela usa um preto hoje, que chama de "meu escudo, meu conforto", legging também preta e sapatilha com estampa de onça).
O segundo álbum de Adele, 21, estreou no topo das paradas no Reino Unido e nos Estados Unidos e vendeu 3,5 milhões de cópias ao todo, algo que ela descreve como "bem intenso". Recentemente, voltou a fumar - diz que são apenas sete cigarros por dia, mas, em poucas horas, ela fuma no mínimo essa quantidade.
Para aumentar os problemas nesta semana, o pai de Adele, Mark Evans - um alcoólatra em recuperação que abandonou a família quando a filha tinha apenas 3 anos - vendeu uma história para o tablóide britânico The Sun, dizendo que se sentiu culpado por não estar presente na infância da filha. Os olhos dela apertam quando ela fala sobre a história. "Nunca conheci meu pai", afirma. "Ele não tem nenhum direito de falar sobre mim." No dia seguinte ao da matéria, outra apareceu, dessa vez sobre a infância de Adele: o repórter abordou a avó da cantora em um ponto de ônibus. "Foi aí que voltei a fumar", ela diz.
Adele tem uma das melhores vozes dos últimos anos - um misto de poder soul, doçura e transparência emocional assustadora. Músicas como "Someone Like You" - na qual diz adeus a um ex-namorado que se casou - são bagunçadas, conflituosas, às vezes explosivas. "Todas as suas músicas se baseiam em eventos reais e pessoas reais", diz Sam Dixon, baixista da banda de Adele. "Pode ser difícil para ela cantá-las; isso já aconteceu algumas vezes." No evento Brit Awards, em fevereiro, ela estava quase às lágrimas ao final da apresentação de "Someone" e teve de afastar o olhar das câmeras. "Não é uma pose ou uma postura", defende Rick Rubin, que produziu quatro músicas de 21. "Quando você ouve alguém abrir a alma, isso ressoa."
Pessoalmente, Adele é igualmente aberta. Caminhando pelo parque, ela conta sobre a vez em que subiu ao palco com "um absorvente íntimo no polegar. Foi horrível!" (ela diz que foi para esconder uma unha quebrada - "Você faz um buraco nele e coloca no dedo. Faço isso o tempo todo"). Fala rápido, usa tons de voz diferentes, conta piadas sujas no palco ("Como você chama uma loira de ponta-cabeça? Uma morena com mau hálito"). E admite ter se inscrito em um serviço de encontros online no ano passado ("Estava bêbada, chateada e ouvindo 'Nothing Compares 2 U', da Sinéad O'Connor"). Ela também diz amar os rappers violentos do Odd Future. "São revigorantes", afirma, mas "meus fãs não ficaram felizes quando coloquei o vídeo deles no meu blog" (exemplo de um verso: "I'll stab Bruno Mars in his goddamn esophagus" [Vou esfaquear o Bruno Mars bem no esôfago]).
Adele Laurie Blue Adkins nasceu em Tottenham, um distrito ao norte de Londres que tem uma das maiores taxas de desemprego no Reino Unido. A mãe, Penny, era adolescente, trabalhou como massagista, fabricante de móveis e administradora de escritórios, e elas se mudavam muito, morando em casas subsidiadas pelo governo. Adele diz que "amava as mudanças". "Acho que é por isso que não consigo ficar em um só lugar agora. Não penso na minha infância como: 'Ah, freqüentei dez escolas diferentes'. Minha mãe sempre fez com que isso fosse divertido."
A mãe ainda é sua melhor amiga, e atual companheira de quarto. Adele credita a ela seu interesse por cantoras como Mary J. Blige, Lauryn Hill e Alicia Keys - ela chama os álbuns The Miseducation of Lauryn Hill e Songs in A Minor de "definidores de uma vida". A outra grande influência foi Etta James, cuja música Adele descobriu na seção de ofertas de uma loja de discos. "A voz dela foi a primeira que me fez parar o que estava fazendo, sentar e escutar. Tomou conta da minha mente e do meu corpo."
Quando criança, Adele amava cantar e tocar violão e clarineta; aos 14 anos, era suficientemente impressionante para fazer uma bela audição na Brit School de Londres, uma escola pública de ensino médio de artes performáticas que artistas como Amy Winehouse, Leona Lewis e Kate Nash também frequentaram. "Era como em Fama", conta. "Havia garotos dando piruetas no corredor e fazendo mímica e competições de canto no camarim." Seu colega de classe e atual guitarrista, Ben Thomas, diz que Adele nunca pareceu determinada a entrar na indústria musical. "Havia algumas pessoas na escola que realmente ralavam muito", diz Thomas. "Dava para ver que elas realmente queriam aquilo. Adele nunca teve isso, mas era uma grande artista e todos ficavam completamente quietos e maravilhados quando ela se apresentava."
Ela quase foi expulsa porque tinha problemas com pontualidade. "Chegava à escola quatro horas atrasada", conta. "Ficava dormindo. Não estava fazendo nada. Não é mentira, só não conseguia acordar." Um dia, um grupo de professores selecionou 20 dos alunos mais promissores para viajar até Devon para se apresentar em um festival, e Adele dormiu demais. No momento em que abriu os olhos e percebeu que era tarde, diz, "meu coração explodiu no peito. Foi terrível. Quase fui expulsa da escola por isso. Mas agora sou sempre pontual, e, se atraso, a culpa é sempre de outra pessoa".
Em seu último ano na Brit, um amigo postou no MySpace uma demo de três músicas que Adele havia gravado para uma aula. Várias gravadoras enviaram e-mails pedindo para conhecê-la. Ela não ficou impressionada. "Achava que era algum pervertido nojento da internet", afirma. "Vi que eram e-mails da Island e da XL, mas nunca tinha ouvido falar delas, então não liguei de volta." Finalmente, atendendo aos apelos da mãe, encontrou-se com um executivo da XL - a gravadora indie de M.I.A. -, que a contratou quase imediatamente. A estreia de Adele, o álbum 19, de 2008, foi um sucesso modesto nos Estados Unidos - estreou no número 56 na parada de álbuns e, depois, despencou - até ela se apresentar no programa Saturday Night Live, em meio à campanha presidencial de 2008, na noite em que Sarah Palin apareceu no programa. "Estava sentada no camarim fazendo a maquiagem", conta, "e pensei: 'Se você arrasar aqui, este poderá ser um daqueles momentos na sua carreira'." Mais de 14 milhões de pessoas assistiram a Adele cantar "Chasing Pavements" e "Cold Shoulder". "Quando nos apresentamos no programa, estávamos no número 40 na parada do iTunes", diz Jonathan Dickins, empresário da cantora. "Na manhã seguinte, estávamos no número 8. Quando desci do avião, em Londres, éramos o número 1." Adele acabou ganhando os prêmios Grammy de Melhor Artista Nova e Melhor Vocal Feminino Pop.
Foi mais ou menos nessa época que Adele conheceu o homem que se tornou a inspiração para 21. Ele era dez anos mais velho e a fez se interessar por viagens, ler ficção como Dentes Brancos, de Zadie Smith, e escrever poesia. "Ele me transformou em uma adulta e me colocou na estrada que percorro agora", ela diz. "A maior parte da minha vida foi minha carreira, mas eu tinha esse pequeno projeto paralelo que éramos nós, e isso me fez sentir realmente normal de novo, o que era o que precisava, porque estava ficando um pouco pirada - meio louca."
O casal morou junto por quase um ano no apartamento dela em Londres antes que as coisas começassem a esfriar. "Simplesmente parou de ser divertido", afirma. Ele era artístico, "mas não romântico. Nunca me levou para a Itália. Eu o levei para a Itália", ri. Os amigos ficaram felizes em vê-lo partir. "Todos achavam que ele era péssimo", ela diz. "Todos os meus amigos, as pessoas com quem eu trabalhava... ninguém gostava, porque eu agia diferente quando estava perto dele." Na manhã seguinte ao fim oficial, Adele estava no estúdio, chorando enquanto gravava "Rolling in the Deep". Paul Edgeworth, que produziu a música, conta: "Ela estava obviamente muito frágil e foi muito aberta sobre o que havia acontecido, mas tinha um fogo interno". No meio das gravações, descobriu que o ex estava noivo de outra mulher. "Fiquei absolutamente arrasada", ela diz. Adele não namorou ninguém desde então. "Não estou pronta. Acho que estou um pouco frágil agora. Não estou apaixonada por ele, mas ainda o amo, sabe?"
''Estou tremendo", diz Adele. São 19h30 e ela está no camarim, no porão de um clube com capacidade para 1.200 pessoas perto do bairro da luz vermelha de Hamburgo, usando o mesmo suéter de gola alta preto. Está tomando café com Louis no colo e fumando outro cigarro. Como sempre, demonstra certo medo do palco. "Tenho medo do público", afirma. "Fico apavorada. Em um show, em Amsterdã, fiquei tão nervosa que fugi pela saída de incêndio. Já vomitei algumas vezes. Em uma delas, em Bruxelas, lancei um jato de vômito em alguém. Tenho de aguentar, mas não gosto de fazer turnês. Tenho muitos ataques de ansiedade." Como consegue subir ao palco? "Simplesmente penso que nada vai dar terrivelmente errado", conta. "Além disso, quando fico nervosa, tento contar piadas. Funciona. Só que falo muita besteira." Para a maioria dos artistas que tem medo do palco, ele desaparece quando o show começa, mas, para Adele, as coisas pioram. "Meus nervos só se acalmam quando saio do palco", afirma. "Quer dizer, o pensamento de alguém gastar 20 paus para vir me ver e dizer: 'Ah, prefiro o disco e ela acabou completamente com a ilusão'. Isso me deixa muito chateada. É tão importante que as pessoas venham e me deem seu tempo."
Uma coisa que Adele alega não deixá-la ansiosa é seu peso. Ele variou durante toda a sua vida, mas a cantora diz que não faz dieta nem se exercita. "Minha vida é cheia de drama e não tenho tempo para me preocupar com algo tão pequeno quanto a minha aparência", afirma. "Não gosto de ir para a academia. Gosto de comer bem e tomar bons vinhos. Mesmo se tivesse um corpo muito bonito, não acho que mostraria o peito nem a bunda para ninguém. Amo ver os seios e a bunda da Lady Gaga. Amo ver os seios e a bunda da Katy Perry. Amo. Mas minha música não trata disso. Não faço música para os olhos, e sim para os ouvidos."
Ela se inclina para Louis e mostra um truque. "Lady Gaga!", ordena. "Levante as patinhas!" Ele se senta sobre as pernas com as patas para cima. O tópico muda para Mumford & Sons, que ela ama. "Eles estão mais próximos do que sinto por Etta James do que qualquer um", diz. "Vozes muito articuladas."
Às 20h40, Adele apaga o cigarro e para de brincar com Louis, fica em pé na beira do palco e começa a cantar "Hometown Glory", uma bela declaração de amor a Londres do álbum 19. O público consegue ouvir, mas não vê-la. Logo, ela toma seu lugar no banquinho de madeira no centro do palco. Com públicos de língua inglesa, Adele consegue ser "engraçada como Bette Midler", mas hoje ela se concentra nas músicas, às vezes cantando com uma mão no bolso. O show passa por músicas dos dois álbuns e traz uma cover, "If It Hadn't Been for Love", de uma banda chamada Steeldrivers. Ela a introduz dizendo: "É uma música sobre atirar na esposa. E minha vontade é de atirar no meu ex".
Entre uma música e outra, Adele diz ao público: "Meu cachorro está na turnê comigo. É um dachshund. Tenho um cachorro alemão! Ele ama estar aqui, está em sua terra natal!" Algumas risadas são ouvidas na plateia. Ela encerra com uma versão alta, poderosa e intensa de "Rolling in the Deep" e, embora tenha saído do palco, as luzes tenham se acendido e a música de outro artista tenha começado a tocar nos alto-falantes, o público continua ali. Eles gritam, aplaudem e chamam seu nome, mas ela já acabou. "Sempre os deixe querendo mais", Adele diz no camarim, cigarro na mão, vinho por perto, Louis no colo. "Foi um show emotivo!"
Com a apresentação encerrada, Adele finalmente está tranquila. Brinca sobre o que aconteceria se estivesse em um relacionamento feliz. "Nada de música!", diz. "Meus fãs vão implorar: 'Querida! Por favor! Peça o divórcio!'"
Ela ri. "Não se preocupem. Minha bolha sempre estoura."