A autora da aclamada saga literária virou alvo da cultura do cancelamento após fazer comentários transfóbicos nas redes sociais
Com os livros de Harry Potter, J.K. Rowling conseguiu conquistar uma legião de fãs leais ao redor do mundo. Leitores e, mais tarde, espectadores que encontraram um refúgio no mundo bruxo, exatamente como o menino que sobreviveu.
A saga literária entrou para história. A autora ganhou prêmios de prestígio e teve a obra dela traduzida para 80 línguas, segundo o NPR. Harry Potter ganhou livros extras, itens de coleção, jogos de videogame e até parques de diversão na Disney.
Mesmo quando a escritora começou a divulgar informações desnecessárias sobre o mundo mágico ou revelar características inéditas dos personagens para, aparentemente, encaixá-los em minorias, os fãs reagiram de forma descontraída, com piadas e memes.
Mas, se um dia J.K. acreditou que o legado dela seria eterno e os fãs aceitariam qualquer declaração, ela estava errada. O fandom do universo bruxo não tolerou os comentários transfóbicos da autora compartilhados no Twitter.
No dia 6 de junho, a escritora criticou o artigo Criando um mundo pós-Covid-19 mais igualitário para pessoas que menstruam e escreveu, em tom de deboche, que “costumava existir uma palavra para [descrever] essas pessoas”.
Em seguida, J.K. deixou claro que enxerga grandes diferenças entre mulheres cis, as quais se identificam com o sexo biológico, e mulheres trans, que se identificam com o sexo oposto ao de nascimento.
“Se o sexo não é real, não existe atração pelo mesmo sexo. Se o sexo não é real, a realidade vivida pelas mulheres ao redor do mundo é apagada. Eu conheço e amo as pessoas trans, mas apagar o conceito do sexo impede a capacidade de muitos discutirem significantemente a vida deles, Não é ódio falar a verdade”, escreveu a autora em um post.
Ela completou: “Eu respeito todos os direitos das pessoas trans de viverem do jeito que sentirem autênticas e confortáveis. Eu marcharia com vocês, se vocês fossem discriminados por serem trans. Ao mesmo tempo, minha vida foi moldada por ser mulher. Não acredito que seja ódio dizer isso.”
No passado, a autora já havia sido questionada por defender Maya Forstater, pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Global que foi demitida após se manifestar contra uma lei britânica a favor da flexibilização de cirurgias de transição de gênero, segundo o G1. Mas, desta vez, as críticas contra a escritora ganharam novas dimensões dentro da cultura do cancelamento.
Após ataques virtuais, J.K. criticou o ativismo exagerado e o uso do termo TERF - Feminista Radical Trans-Excludente, além de ter defendido o direito de falar sobre questões sexuais e de gênero em um texto compartilhado no site oficial dela.
“Pessoas trans precisam de proteção [...] Eu quero que mulheres trans estejam seguras. Ao mesmo tempo, eu não quero que as pessoas que nasceram mulheres estejam menos seguras”, disse a escritora ao falar sobre os perigos de incluir homens que se identificam como mulheres em espaços “exclusivamente femininos”.
No dia 28 de junho, a autora voltou a ser tema de matérias jornalísticas ao apagar um tuíte com elogios a Stephen King após o escritor afirmar que “mulheres trans são mulheres”. Alguns dias depois, ela assinou uma carta de denúncia contra a cultura do cancelamento ao lado de mais de 150 artistas, escritores e pensadores, a qual foi publicada pela Harper's Magazine.
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Hoje, dia 31 de julho, a escritora completa 55 anos de idade junto com o bruxo mais famoso do mundo, que comemoraria 40 anos de vida no universo mágico. No meio de críticas e polêmicas, os dois vivem uma comemoração única.
A Rolling Stone Brasil conversou com cinco fãs de Harry Potter, entre eles, representantes dos fã-clubes Harry Potter - Brasil e MuggleNet, dos Estados Unidos, para entender como o “cancelamento” de J.K. Rowling pode afetar o legado do bruxo.
Os comentários transfóbicos de J.K. Rowling desagradaram profundamente Elyff Cargnin, 24. A assistente de laboratório paulistana viu a primeira adaptação cinematográfica da saga nos cinemas e, desde então, é fã do menino bruxo. Contudo, o recente posicionamento da autora afetou a relação da jovem com a obra.
“Me desagradou profundamente saber que a pessoa por trás de uma história que eu gosto muito fez comentários transfóbicos. Acho que, se mudou alguma coisa [em relação a Harry Potter], é que eu fico incomodada com isso.”
Já Dayvson Oliveira, 21, de Maceió, acredita que a escritora não “odeia pessoas trans”, mas, de fato, fez afirmações controversas. O estudante de jornalismo virou um potterhead - nome do fandom da franquia - ainda na infância e, hoje, é o atual administrador do fã-clube Harry Potter - Brasil, que possui mais de 180 mil seguidores no Instagram e mais de 1 milhão no Facebook.
“Fiz questão de ler o gigantesco artigo que ela publicou explicando as polêmicas em que se envolveu. Mesmo com algumas afirmações controversas, é possível perceber que ela não odeia pessoas trans. Quero acreditar nisso. Sou muito grato pela criação dela, admiro sua trajetória, mas é realmente uma pena que ela use a visibilidade que tem para disseminar pensamentos ‘quadrados’”, disse o estudante.
Apesar de poupar a autora de grandes críticas, Oliveira não deixou de manifestar que o fã-clube apoia a causa trans nas redes sociais. “Antes que recebêssemos qualquer cobrança por um posicionamento, postamos a bandeira trans nas nossas redes e deixamos claro de que lado estávamos, mas mostramos que não odiávamos a autora”.
Muitos fãs do universo bruxo defendem a causa LGBTQ+, porém, alguns deles questionam a necessidade de cortar vínculos com a saga. A jornalista Carolina Weiss Deiques, 24, de Santa Catarina, contou que não sente uma grande mudança na relação dela com a saga após as polêmicas de J.K..
Para ela, a situação é complicada, pois muitos jovens nascidos na década de 1990 ou no início dos 2000 tiveram o primeiro contato com a literatura por meio dos livros de Harry Potter, o que faz a saga literária estar diretamente ligada à infância e adolescência dos integrantes do fandom.
“Me bateu uma dor no peito de pensar: ‘Seria correto abandonar a saga por conta dos comentários dela?’, disse a jornalista. “Apesar de não concordar com nada do que ela diz, a saga Harry Potter trouxe muitas coisas boas e positivas para vida de muitos jovens e adolescentes.”
Ela continuou: “Foi a porta para leitura de muitos jovens. É um universo incrível, onde a gente pode se distrair um pouco, pode esquecer das coisas ruins do mundo para imergir nesse universo e ter um pouco de entretenimento”.
Da mesma forma, Felicia Grady, tradutora e editora-chefe do MuggleNet - um dos maiores fã-clubes da franquia no mundo - disse que faz parte da comunidade solidária às pessoas trans, no entanto, não deixou de admirar a saga.
“A minha relação com Harry Potter não mudou depois da declaração de Rowling sobre pessoas trans. Sou parte de uma comunidade solidária e fiz muitas das minhas amizades por meio do MuggleNet. Quando penso em Harry Potter, penso no MuggleNet, na comunidade de fãs e nos meus amigos.”
O administrador do Harry Potter -Brasil também observou que alguns fãs defenderam a escritora das acusações. Contudo, de forma geral, os seguidores do fã-clube foram surpreendidos pela polêmica e acabaram decidindo separar a obra do autor.
“Pelo menos com nossos seguidores, o público potterhead no Brasil, a gente percebe essa desvinculação entre autora e a obra. Mas seria uma mentira dizer que a relação com a saga não mudou. Essas últimas declarações tomaram uma proporção enorme e, no geral, foi um baque para o fãs.”
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Felicia também enxerga o mesmo comportamento na comunidade de internacional dos amantes do mundo bruxo. “O fandom é forte e milhões de pessoas ainda adoram o mundo de Harry Potter, mesmo que não possam apoiar a autora nem a marca ou se não concordam com suas idéias”, disse a tradutora.
Ela completou: “Tenho visto algumas pessoas que não querem mais interagir com a série, mas a maioria dos fãs têm rejeitado os comentários e escolhido separar a autora da obra”.
Com uma grande coleção de itens da saga e uma tatuagem em homenagem ao Conto dos Três irmãos, Elyff confessou que tem receio das pessoas assumirem que ela possui os mesmos posicionamentos da criadora de Harry Potter.
Por precaução, a assistente de laboratório pensa em maneiras de se defender caso seja acusada de apoiar pensamentos transfóbicos, porque não quer, de forma alguma, “passar pano” para escritora.
“Tenho tanto uma tatuagem quanto uma grande coleção da saga. Não diria que me arrependo, sabe? Mas eu sinceramente fico pensando em como iria me defender caso alguém me associasse à J. K. Rowling pela tatuagem e não à história do Harry Potter.”
A estudante paulistana Luiza, 21, que não quis ser identificada pelo sobrenome, também disse que não se arrepende de ter adquirido itens colecionáveis relacionados ao universo mágico, porque “não poderia ter adivinhado que a autora viria a público com esses posicionamentos”.
Da mesma maneira, Carolina, que fez uma tatuagem com símbolos da franquia no início do ano, falou que levou muitos anos para juntar dinheiro e comprar os itens, por isso, não cogita se desfazer da coleção, que inclui desde DVDs até mochila.
O amor por uma obra não se altera com o tempo, segundo Oliveira, que ainda planeja fazer uma tatuagem em tributo ao menino bruxo.
“Tatuagem ainda não, mas é algo que está nos meus planos. Tenho certeza que se tivesse uma ‘tattoo’ de Harry Potter não estaria arrependido. Tenho diversos itens da saga: cartazes, box de livros, roupas... Inclusive essa semana comprei mais alguns. Acho que, quando se é fã de verdade, não há nada que mude o amor por uma obra. Principalmente, se a pessoa cresceu com a história”.
Para Carolina, outro fator que ajuda a não “cancelar” a saga é o posicionamento dos atores das franquias cinematográficas. Daniel Radcliffe, eternizado nos cinemas como o menino que sobreviveu, foi o primeiro a se manifestar contra a autora.
Em seguida, Emma Watson, Rupert Grint, Evanna Lynch, Katie Leung e Eddie Redmayne, astro da nova franquia Animais Fantásticos, também defenderam a comunidade trans.
“O que salva um pouco a saga de Harry Potter são os atores e atrizes, porque, em meio a esses comentários da J.K. Rowling, o elenco se posicionou [...] Vendo por esse lado, vendo o elenco discordando dela e apoiando a comunidade trans, acaba dando um pouco mais de esperança.”
Oliveira, que faz parte da comunidade LGBTQ+, também se sentiu satisfeito com as respostas do elenco. “Por que dar as costas para uma história tão linda por conta de uma pessoa, quando tem tanta gente do lado certo?”, ele questionou.
Por outro lado, Luiza acha que posicionamento dos atores não ameniza as afirmações de J.K. pois ela continua sendo a criadora do universo do mágico e das histórias do bruxo órfão.
“Acho ótimo que os atores e outras pessoas se manifestaram em apoio às pessoas trans. Isso mostra que são pessoas decentes. Mas, para mim, não muda o fato de J. K. Rowling ser a criadora desse mundo, o ponto de vista dela está por toda a obra, inclusive seus preconceitos, mesmo que a gente não soubesse deles antes.”
Harry Potter está diretamente ligado às memórias de infância e adolescência de muitos jovens. A narrativa do menino bruxo acolheu outras crianças que, como ele, se sentiam excluídas ou não pertencidas ao mundo dos trouxas.
Ao lado de Hermione e Rony, o protagonista e os leitores aprenderam sobre a importância das amizades, o poder do amor, as dificuldades de superar um luto e a força necessária para defender os direitos dos homens, animais ou qualquer outra criatura fantástica.
Alguns fãs até tentam se agarrar ao pensamento de que Harry Potter é uma autoiografia, mas, no fim, sabemos que não é verdade. Conforme as pautas LGBTQ+ ganham mais visibilidade, Elyff acredita que o legado da saga pode ser afetado definitivamente.
“O legado pode sim ser afetado. Inclusive, acho que deve ser afetado como um meio de responsabilizar J.K. por comentários extremamente infelizes. Por mais que eu goste mesmo da saga Harry Potter e tenha sido uma coisa que me acompanhou desde a infância, a gravidade de um pensamento desse tem um peso maior.”
Para gerar o mínimo de impacto na escritora, Luiza contou que não tem planos de adquirir nenhum produto da franquia. “Eu pretendo não comprar mais nenhuma mercadoria oficial, não assistir nenhum lançamento novo e evitar falar ou divulgar os livros e filmes. Acho que essas coisas contribuem para a influência e o dinheiro de J.K. Rowling e isso é o que torna as falas dela tão perigosas”.
Recentemente, o The Leaky Cauldron e MuggleNet se juntaram para publicar uma declaração oficial sobre o posicionamento dos dois fã-clubes.
“Além da falta de gosto dela para escolher publicar estas declarações no Mês do Orgulho LGBTQ+ [em junho] - assim como o reconhecimento global das injustiças raciais - , acreditamos que o uso de sua influência e privilégio para atacar pessoas marginalizadas não condiz com a mensagem de aceitação e empoderamento que encontramos nos livros", declarou o anúncio.
A nota oficial ainda disse: “Estamos comprometidos a fazer um trabalho melhor na nossa comunidade para promover e centralizar pessoas que foram marginalizadas, e criar uma mudança positiva em nossas plataformas de fãs”.
Entre as ações que não serão mais praticadas pelo MuggleNet está a divulgação links para o site pessoal da escritora ou plataformas de venda de produtos não relacionados a Harry Potter e o uso do nome da autora, assim como as abas do site dedicadas a ela.
Felicia explica que o fã-clube não quer “cancelar” J.K., mas defender a comunidade trans. "A declaração do MuggleNet e do Leaky Cauldron não pretende "cancelar" Rowling, rejeitamos essa interpretação. Na realidade, nossa declaração é em apoio a comunidade trans e outras pessoas afetadas por essa situação”.
Aos 28 anos, a editora-chefe do fã-clube acredita que a comunidade de fãs do herói do mundo bruxo ainda pode existir e ser ampliada. “Dito isto, creio que o mundo do Harry Pottertranscende o mundo real. Ainda é um escape e o fandom continuará a crescer”, disse a tradutora.
Já o administrador do Harry Potter - Brasil acha que só será possível descobrir os impactos das declarações de J.K. Rowling no legado da saga após o lançamento de novas obras. “É difícil pensar que essa situação seja passageira quando a autora continua fazendo novas postagens sobre o assunto”, disse Oliveira. “Acredito que só vamos ver na prática os efeitos disso no lançamento do terceiro filme de Animais Fantásticos.”
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Os comentários transfóbicos de J.K. Rowling definitivamente impactaram o fandom do menino que sobreviveu. Mais de 20 anos depois do lançamento do primeiro livro da saga, os fãs do menino bruxo se encontram frustrados, como um órfão preso em um quarto minúsculo debaixo das escadas.
As memórias afetivas dos personagens, das aventuras e do castelo de Hogwarts já não podem ser deixadas para trás, então, eles buscam a própria emancipação. Mas a conquista não será fácil, pois o desejo não é recíproco. No meio de tantas incertezas, só o futuro irá dizer se tentativa de preservar a imagem de Harry Potter foi em vão ou não.
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