Baseada no livro de Matt Ruff, a produção busca mostrar diferentes perspectivas em narrativas do terror cósmico
Seremos diretos: H.P. Lovecraft foi uma pessoa muito racista e supremacista branco. Não é preciso procurar muito para encontrar provas disso. O autor por vezes expunha o preconceito nos contos de terror pulp, seja abertamente ou nas entrelinhas.
Para tal, confira um trecho (curtinho) de uma das histórias mais famosas de Lovecraft, O Chamado de Cthulhu:
" A estatueta, ídolo, fetiche ou o que quer que fosse, fora apreendida alguns meses antes nos pântanos arborizados do sul de New Orleans, quando invadiram um suposto encontro vodu cujos ritos eram tão singulares e hediondos que seria impossível para a polícia não perceber que havia tropeçado num culto totalmente desconhecido e infinitamente mais diabólico que os mais obscuros vodus africanos. " (Tradução: Ramon Mapa, 2017, DarkSide Books)
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É inegável que o pai do terror cósmico se apoiou em uma premissa de que manifestações culturais africanas e de demais culturas negras são sinônimo do maligno. Além disso, é claro que todos os protagonistas dos contos dele são homens, brancos, heterossexuais, intelectuais e membros de elites, quase sempre de famílias abastadas, fatores mais do que necessários para compor uma ideologia racista nas personalidades.
Dito tudo isso sobre Lovecraft, é impossível evitar o início de um questionamento sobre a possibilidade de separar o autor da obra dele. Afinal a influência do terror lovecraftiano sobre o restante do gênero é maior do que nunca.
Grandes nomes da literatura como Stephen King e Neil Gaiman e do cinema como H.R. Giger, Ridley Scott e Guilhermo Del Toro falaram inúmeras vezes publicamente sobre como os monstros e conceitos apresentados por Lovecraft foram base para trabalhos deles. Isso torna todos esses criadores racistas também? Ou existe uma maneira de interagir com esse legado sem apoiar os paradigmas raciais sublinhados?
É essa a proposta de Lovecraft Country, a nova série de terror da HBO que estreia nesse domingo (16). Baseada no livro Território Lovecraft, escrito por MattRuff, a produção conta uma aventura nos moldes fundamentados pelo autor, mas com uma diferença crucial: os heróis e boa parte do elenco são negros.
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Além da troca do protagonismo, as mentes criativas no comando da produção também tem interesse em proporcionar novas narrativas na perspectiva afro-americana. Misha Green (criadora e produtora do drama histórico Underground, de 2016) assina os roteiros e Jordan Peele (diretor de Corra!, de 2017 e Nós, de 2019) dirige os episódios.
A seguir, vamos expor os caminhos que Lovecraft Country promete explorar para manter o terror clássico criado pelo autor vivo, mas sem dissociar o racismo da obra, mas, pelo contrário, analisar o preconceito com uma visão mais crítica e apropriada para a nossa contemporaneidade.
Assim como nos contos de H.P. Lovecraft, a série se passa nos Estados Unidos, em meados da década de 1940 e 1950. Acompanhamos a jornada de Atticus Freeman (Jonathan Majors), um veterano da Guerra da Coreia que, de volta ao lar, busca encontrar o pai desaparecido.
A única pista que Atticus tem do paradeiro do pai é o último avistamento dele, em uma região fictícia ao sul do país, chamada de Território Lovecraft. Apesar do lugar não existir de fato, as legislações estaduais segregacionistas que os heróis terão que lidar ao longo da aventura são 100% reais na história americana. Tratam-se das Leisde Jim Crow.
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Jim Crow era um personagem criado pelo ator Thomas D. Rice para teatro, em 1832. Ele fazia um blackface e cantava a música "Jump Jim Crow" para caricaturar os negros de forma pejorativa, para fazer piada com as políticas populistas do presidente Andrew Jackson.
Como uma reação ao fim da escravidão no país, as leis estaduais dos antigos estados que lutaram do lado dos confederados na Guerra de Secessão Americana passaram a restringir os acessos dos afro-americanos, relegando-os a bairros negros, escolas negras e até assentos de ônibus e banheiros designados para eles.
O estado de Massachusetts e os demais territórios de New England, onde se passam a maioria dos contos de H.P. Lovecraft, se situa no coração da América de Jim Crow, mas a realidade segregacionista dessa época ficou largamente de fora das histórias.
A série promete, ao contrário da obra de Lovecraft, abordar diretamente o racismo. Por exemplo, Atticus utiliza como orientação para viajar ao sul do país o Guia de Viagem do Negro Precavido, um livro ilustrado que indica a ele os estabelecimentos negros e como lidar com autoridades racistas a fim de evitar problemas. Tal guia ilustrado existiu de verdade.
Além do guia turístico, Atticus também lê durante os episódios a história de um soldado confederado, a quem ele admira. Através do protagonista, o público é convidado a ter uma reflexão: É possível tirar proveito de uma obra cujo autor e personagens possuem preconceitos contra você?
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"Racismo é uma característica humana, enquanto a arte é uma característica espiritual", disse JonathanMajors, quando perguntado pelo site Jovem Nerd sobre como via o preconceito no trabalho de Lovecraft.
"Todos nós temos uma relação parecida com a espiritualidade, certo? Por isso a humanidade dele (H.P. Lovecraft) é algo que podemos compartilhar. Agora a ideologia dele é algo que podemos separar", disse Majors.
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Ser capaz de enxergar os temas universais que um trabalho aborda e diferenciar o valor desse conteúdo de ideologias datadas, originadas de um período histórico no qual intolerância e racismo predominavam é o mérito da série. Além disso, o roteiro ainda promete fazer contrapontos ideológicos.
"Acredito que Lovecraft não imaginava que nós pegaríamos as falácias dele viraríamos elas de cabeça para baixo e incluir uma dose de espiritualidade e humanismo de verdade, sabe," acrescentou Majors. "Para contar uma história que engloba todas as raças, incluindo aquelas que ele considerava ser sub-humana."
Lovecraft era extremamente racista, reproduziu a visão colonial dos povos "selvagens" em sua obra, também odiava judeus. Ver Jordan Peele assumir Lovecraft Country é mostrar que estamos prontos para protagonizar todas as narrativas e romper com o paradigma racial padrão 👊🏾 pic.twitter.com/bvzNuCqdWP
— Ale Santos (@Savagefiction) May 1, 2020
"Acredito que é impossível separar Lovecraft da arte dele, principalmente porque os 'monstros' que ele falava eram pessoas negras", disse Aunjanue Ellis, também ao Jovem Nerd. "Devido à paranoia dele, os negros foram demonizados nas obras. Qualquer um que não fosse branco, homem e hétero eram monstros para ele. Então separar isso do restante do trabalho dele seria desonesto."
E isso não vale apenas para o criador dos mitos de Cthulhu. Em vários casos, indivíduos com ideologias nocivas e que desrespeitam outras pessoas, também inovaram muito na cultura e realizaram obras importantes.
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Desde antigamente, como o compositor alemão Richard Wagner, que apoiava o racismo e nacionalismo radical no séc. XVII, até hoje, como a recente controvérsia envolvendo casos de transfobia de J.K. Rowling, é preciso lidar com a importância de tais legados sem deixar de questionar as ideologias deles.
Lovecraft Countrypropõe o questionamento ao trocar os papéis tradicionais de mocinho e vilão: Atticus, a amiga Letitia (Jurnee Smollet) e o tio George Freeman (CourtneyB. Vance) são a família de negros e heróis da história, enquanto os cultistas que desejam trazer deuses profanos e monstros para o mundo são uma sociedade secreta de brancos ricos.
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Operar no mesmo gênero do horror cósmico, mas contestando a estrutura narrativa e os estereótipos usados por H.P. Lovecraft é o que Jordan Peele e Misha Green prometem na produção da HBO. Sim, o autor foi racista, mas isso não significa que as histórias dele precisam continuar sendo assombradas pelo fantasma desse preconceito.
Assista ao trailer de Lovecraft Countryabaixo: