Como a nostalgia se tornou o que é hoje? O conceito se transformou ao longo dos anos, e atualmente é uma ferramenta mercadológica da cultura pop
Se você acompanha a cultura pop, em algum momento, já esbarrou com a nostalgia. Essa vontade de relembrar o passado pode ser encontrada em diversas produções, como revivals, sequências, reuniões de elenco, a estética retrô em videoclipes.
Em certo ponto, pode-se dizer que a nostalgia alimenta a cultura pop diariamente em diversas facetas. Filmes, séries e músicas se baseiam em um sentimento nostálgico para serem produzidos, venderem e, essencialmente, terem sucesso.
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Por isso, não é errado dizer que a nostalgia é extremamente popular. Não é coincidência o sucesso tremendo de Um Príncipe em Nova York 2, cuja sequência lançada em 2021 estreou mais de 30 anos após o filme original.
Também não é uma casualidade a retomada de tendências e estéticas, como as utilizadas em After Hours, disco de The Weeknd lançado em 2020. O trabalho realizado por Abel Tesfaye é popular, é nostálgico, e, consequentemente, arrebatador.
Mas o que é essa nostalgia? De onde surgiu e por que faz tanto sucesso? Um dos combustíveis da cultura pop, o sentimento nostálgico não nasceu essencialmente bom - e apenas com o tempo passou a fazer parte da cultura.
Há muito tempo, a nostalgia era considerada uma doença. Combinação das palavras gregas nostos (retorno) e algos (sofrimento), o termo foi criado pelo médico suíço Johannes Hofer em 1688. Na época, Hofer criou o conceito para falar sobre a melancolia de soldados suíços que lutavam no exterior e sentiam profunda dor e saudade de casa.
Por muito tempo, a nostalgia foi considerada uma doença por “apresentar sintomas como ansiedade, depressão, choro, insônia e se assemelhar a melancolia,” conforme explicou a psicóloga Alessandra Ribeiro à Rolling Stone Brasil.
Contudo, com o tempo, o termo recebeu diferentes significados e se tornou positivo. Na psicologia, conforme descrito por Ribeiro, significa uma emoção: “Nada mais é do que a saudade por algo que se viveu ou idealizou, potencializada pela tristeza, pesar, pelo desejo de reviver e o tempo que não volta atrás.”
Nessa transição do entendimento sobre a nostalgia, de algo ruim para algo emocional, a cultura pop se apropriou do termo para criar uma coletividade: “A nostalgia conecta as pessoas. Ela toca em um ponto emocional comum e cria um laço entre pessoas que vivenciaram aquilo no passado e também, um convite para que novas pessoas conheçam e façam parte dessa cultura,” concluiu a psicóloga Alessandra Ribeiro.
Essa coletividade proposta pela relação entre a nostalgia e cultura pop é uma das grandes responsáveis pelo surgimento de um termo conhecido na atualidade: os fandoms. Este é o nome dado aos grupos de fãs, seja de Star Wars ou BTS. Juntos, exaltam a saudade do que viveram ou do que pretendem viver. A saudade de um tempo que, de alguma forma, é considerado melhor.
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Para entender mais sobre a relação entre o termo e a cultura, a Rolling Stone Brasil conversou com Pedro Silveira, formado em história, pós-doutorando e autor do artigo “Presos no tempo: Retrô, cultura pop e experiência da história”.
Segundo o pesquisador, a mudança no entendimento da cultura pop está relacionada à transição dos anos 1970 ao 1980, momento no qual houve o “esgotamento das grandes narrativas e perspectivas de futuro":
"Até então havia utopias, e a principal era o comunismo. Você podia olhar planejar uma imagem positiva do futuro, mas no final dos anos 1970 o futuro começa a se dissolver, tanto que hoje em dia temos as distopias," disse.
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Diante da falta de perspectiva sobre o futuro, segundo Pedro Silveira, mudou-se o entendimento de tempo e memória, que passa a ser coletiva e social. Dessa forma, o passado se torna matéria de consumo - e é aí que a nostalgia entra em combinação com a cultura pop e a ideia de identidade.
“Antes, o tempo estava ligado com o progresso e com o futuro, que era positivo. Hoje em dia o próprio progresso é visto como algo negativo, por exemplo, a catástrofe ambiental. Tem esse esgotamento de alternativas relacionadas ao futuro (...) Aí tem começa um resgate da memória, que deixa de ser uma faculdade individual para ser um discurso social, o resgate do patrimônio,” explicou.
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Com isso, o mercado passa a vender, além de um produto, uma experiência e uma memória coletiva que irá gerar uma ideia de identidade - e um exemplo são os fandoms: "Cria-se uma memória ligada à experiência de estar conectado."
"Por exemplo, os fãs de Star Wars têm uma memória em comum gerada a partir desse produto cultural que é o Star Wars. E a partir daí são criados os laços de comunidade que criam aquela identidade (...) Esse papel da nostalgia volta realmente associado ao consumo porque é uma experiência que cria laços entre pessoas," concluiu.
Os revivals e sequências não são atuais. Em 1999, 16 anos após o lançamento de Star Wars: O Retorno de Jedi, a franquia foi retomada para a estreia de A Ameaça Fantasma. Jogada mercadológica ou um desejo de reviver a trama? Talvez, ambas. Mas deu certo.
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Nos últimos anos, os revivals e outras formas de reviver a nostalgia se mantiveram em alta. Um Príncipe em Nova York 2 estreou mais de 30 anos após o filme original, por exemplo. O live-action de Mulan também chegou às telonas para relembrar a história original lançada 22 anos antes, e a reunião do elenco de Friends está sendo desenvolvida para relembrar os momentos hilários de personagens de uma série finalizada há mais de 17 anos. E assim continua.
O pesquisador Pedro Silveira explicou: “A memória deixa de ser ligada à experiência vivida e se torna esse discurso que pessoas que não viveram aquilo também podem se identificar. Não acho algo novo, porque se a gente pega a ideia da própria história nacional, de sermos filhos de um passado que envolve guerras, etc, isso também acontece. Nos fandoms acontece isso. Um Príncipe em Nova York ganhou muito significado ao longo de 30 anos, mas muita gente que não era nascida na época também virou fã com o tempo.”
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Quando pensamos nos últimos anos de lançamentos, há um grande debate nas redes sociais sobre as produções atuais estarem sem criatividade, revivendo apenas estreias já conhecidas pela certeza de um público consumidor. O pensamento mercadológico certamente não deve ser descartado, mas será que falta criatividade? Pedro Silveira, que estudou o livro Retromania (2010), de Simon Reynolds, disse:
“Entendo a crítica que Simon Reynolds faz, de 'ah essas pessoas estão criando coisas ou só estão olhando para o passado? Cadê a originalidade?' Mas são diferentes ideias de originalidade. Uma ideia que vem do 0, do nada, e outra que sempre tem algo anterior do qual vou me apropriar para fazer um produto novo. Só são de diferentes ideias. Reynolds vê isso negativamente porque para ele, o positivo é a originalidade (...) Mas posso ter um sentido de originalidade no qual o passado está na minha frente e trago ele para criar algo novo no presente.”
Quando falamos de retomar produções e criar novos produtos a partir dela, também é preciso discutir sobre as mentalidades em constante transição. O live-action de Mulan é um exemplo. Na produção lançada em 2020, o dragão Mushu, presente na animação, foi retirado, pois é considerado ofensivo para o público Chinês. Músicas do filme original, como “Homem Ser”, também foram cortadas.
Além de excluir partes de filmes conhecidos para novos lançamentos, o advento de diversas técnicas de edição possibilitaram alterações em estreias antigas. Anos após o lançamento de E.T. O Extraterrestre, o filme voltou às telonas para uma versão comemorativa - e o diretor Steven Spielberg optou por trocar as armas nas mãos dos policiais por walkie-talkies. Podemos dizer que a nostalgia tem um preço?
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“Às vezes, fico preocupado com a possibilidade de perda de uma certa sensibilidade histórica. Precisamos perceber que no passado teve coisas ruins que hoje estão ruins de serem ditas (...) Acho uma negociação interessante. Como você adapta essa obra? Você faz essa apropriação do presente no produto cultural do passado porque tem um choque de autenticidades, e hoje a identificação é muito importante,” refletiu Pedro Silveira.
Segundo o historiador, há uma autenticidade relacionada à conservação e preservação, e outra à “fazer sentido para mim porque meus valores são diferentes”: “Se tenho acesso a uma obra do passado com uma passagem racista, sexista, mas que ganhou um valor cultural, minha identificação pode ser problemática. Então esse produto pode ser preservado no original ou modificado para entender os pensamentos atuais.”
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Se for parar para pensar, com o advento da internet, o passado está a nossa disposição de forma muito mais fácil. Não há dificuldade em escutar diversas vezes uma mesma música ou encontrar referências para realizar novos trabalhos, está tudo disponível para ser destrinchado, repetido e reutilizado - o que facilita o alcance da nostalgia.
Na cultura pop, um pequeno trecho de um filme, canção ou de algum produto midiático traz à tona a nostalgia. Em poucos segundos, algo cai na internet e se torna um meme cujo looping eterno faz a pessoa reviver esse passado recente, diversas e diversas vezes.
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Não é diferente na música. Um sample tem uma carga nostálgica a qual ouvinte pode nem saber de onde veio, mas traz uma sensação diferente. A versão que une Ariana Grande com “Promiscuous”, música lançada em 2006 por Nelly Furtado, é um exemplo. Os elogiados clipes de The Weeknd com os hits de After Hours também servem de modelo, pois possuem diverentes referências cinematográficas que compõem a sensação de nostalgia.
Quer outro exemplo? O disco Future Nostalgia, de Dua Lipa, tem até nostalgia no nome para exemplificar como a cultura pop busca inspiração no passado. A cantora repagina a era disco com o álbum retrô repleto de referências - de Madonna a Prince - e é de um sucesso absoluto.
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Com a ajuda das redes sociais, como Instagram e TikTok, o passado se transforma em algo presente, parte de uma coletividade que se reflete, inclusive, na música. Os challenges e vídeos virais conseguem colocar de volta às paradas hits como o da banda Fleetwood Mac, e mostram a potência de transformar lançamentos antigos em atuais, e lançamentos atuais em antigos.
“Está realmente difícil. É difícil pensar em algo que possa fazer muito sucesso hoje e que não se parece com nada do passado,” explicou Pedro Silveira. Segundo o historiador, o fato de tudo estar disponível na internet muda a nossa relação com o tempo - e como a nostalgia tem a ver com o passado, também é modificada.
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O pesquisador continuou: "Voltando para o livro do Simon Reynolds, ele diz que antes era muito fácil compartilhar o mesmo presente, pois era própria noção de lançamento. As estreias vinham e definiam uma época, e o que estava no passado já era antigo, não era uma referência (...) Entre os anos 60 e 80, podemos perceber muitas bandas que fazem cover, mas da músicas lançadas no mesmo ano ou no ano anterior, ou seja, o presente é referência. Mas hoje em dia, bandas fazem cover de uma música muito antiga."
Segundo Pedro Silveira, a rede entre passado, presente e futuro não é mais linear, os tempos habitam diferentes períodos, com os acontecimentos passados acessíveis e, de certa forma, atuais.
“É como se o tempo tivesse bagunçado, mas isso não é necessariamente ruim. Apesar de tudo, essa recuperação do passado pode ter uma potência, e por mais mercadológica que seja, pode ser bom,” refletiu o historiador.
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