A voz de Wagner Moura decepcionou e as falhas foram várias, mas a força do repertório e a devoção do público soaram mais alto no show realizado pela MTV
Seria muito fácil comparar o Legião Urbana a um culto, idolatrado por um séquito de fiéis que cantam os hinos de sua religião com fervor. Seria fácil também comparar Renato Russo, ainda um dos músicos mais importantes que o Brasil já teve, a uma espécie de entidade superior que rege e guia todo esse culto. Mas a verdade é que a metáfora, mais do que comum ao se falar da banda, se perde completamente após o que se viu na noite desta terça, 29, no Espaço das Américas, em São Paulo. Isso porque, apesar de toda a onda de protestos em relação a esta homenagem aos 30 anos de carreira da banda, projeto da MTV que contou com o ator Wagner Moura no papel de vocalista, as sete mil pessoas que estiveram no local receberam tão de peito aberto a apresentação que fica difícil acusar os presentes de fanatismo maluco. Afinal, um fã purista jamais aceitaria ouvir o som abafado, a microfonia e a voz sofrível e desafinada de Moura associados a seus cantos sagrados.
Moura ganha todos os pontos possíveis por em momento nenhum ter se proposto a imitar ou querer soar como Renato, morto em 1996, de voz e personalidade inconfundíveis. A postura do ator no palco é de um fã da banda (o que ele sempre foi) que teve a sorte de ser escolhido para subir ao palco com os músicos remanescentes, o guitarrista Dado Villa-Lobos e o baterista Marcelo Bonfá. Como um garoto feliz e apaixonado, movido pelo sentimento de êxtase, ele pulou, sorriu, correu, dançou e cantou quase todo o repertório de 26 músicas do show de cerca de 1h15.
Tudo que a MTV precisou para montar esse tributo foi da força do nome Legião, palavra que dentre os seus sentidos militares pode querer dizer “uma unidade de milícia comandada por um coronel” – o que dá um toque extra de ironia para o que aconteceu lá dentro com Wagner Moura. Contanto que Dado, Bonfá e as músicas preferidas estivessem lá, estavam a postos os pré-requisitos para a exibição ao vivo e a gravação desse show, que deverá ser lançado em DVD. De quebra, havia um ator reconhecido internacionalmente e que há 20 anos tem a própria banda de rock, a Sua Mãe.
O resultado foi que o público estava completamente entregue. O som embolado da casa e a falta de projeção vocal de Moura atrapalharam, mas a verdade é que muitas vezes o som das caixas sumia diante da força do coro que entoou quase todas as faixas com a intensidade de quem sabe o quão preciosa é a chance de ver aquilo ao vivo (especula-se que pela última vez com Dado e Bonfá) e compartilhar as catarses que as letras de Russo, cheias de antagonismos contrapostos, proporcionam até hoje.
Bonfá, Dado, Moura e os músicos Rodrigo Favaro (baixo), Caio Costa Silva (teclado) e Gabriel Carvalho (violão) começaram a performance com “Tempo Perdido”, “Fábrica”, “Daniel na Cova dos Leões” e “Andrea Doria”, todas muito cantadas. Esta última, segundo Moura, é a favorita dele e do convidado que ele chamou ao palco para tocar durante a execução da faixa, o guitarrista Fernando Catatau. “Acho que essa é a noite mais emocionante da minha vida. Passei a semana toda pensando que tinha que fazer essa ser uma noite inesquecível para mim e para quem estivesse aqui”, ele disse ainda.
O set list também trouxe “Eu Sei”, “Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto” e duas faixas que o Legião nunca tocou ao vivo, “A Via Láctea” e “Esperando Por Mim”, ambas do disco A Tempestade ou O Livro dos Dias. “Essas músicas são de uma fase quando Renato já não estava bem, deve ser difícil para o Bonfá e o Dado tocá-las, queria agradecê-los por fazer isso”, disse o frontman da noite. “Índios” e “Monte Castelo” foram seguidas por Marcelo Bonfá fazendo muito esforço ao microfone em “Teatro dos Vampiros” e uma versão acústica meio blues de “Geração Coca-Cola”, com participação de Clayton Martin (do Cidadão Instigado).
Wagner Moura cedeu seu posto, então, a Andy Gill, do Gang of Four, banda que influenciou muito o Legião, segundo os próprios integrantes, e Bi Ribeiro, do Paralamas do Sucesso. Juntos, eles executaram “Damaged Goods”, da banda internacional. Antes do bis, o público ainda se deliciou com “Ainda é Cedo”, em uma versão emendada a um trecho de “Love Will Tear Us Apart”, do Joy Divison, e "Perfeição", somada a "Lithium", do Nirvana.
Antes do generoso bis, um coro cinematográfico de “Será” deu todos os argumentos necessários para mostrar que sim, apesar de percalços, a noite toda estava valendo a pena. A volta de Wagner foi com “Teorema”. Ele aproveitou o carinho recebido para se jogar no público e retornou ao palco com a camiseta toda rasgada. “Antes das Seis”, “Giz”, uma celebradíssima “Pais e Filhos” (com direito a trecho de “Stand By Me”) e a tão aguardada “Será” ainda fizeram parte do repertório, antes da apresentação acabar.
No fim das contas, fica valendo a máxima de que qualquer homenagem ao grupo, com toda sua importância para a história da música, é válida. Os fãs puderam sair de alma lavada, lembrando das sensações que cada faixa trouxe em diferentes momentos da vida. E é possível até que o objetivo de apresentar o Legião Urbana para novas gerações tenha sido cumprido. Trinta anos depois, a banda que tanta gente ama amar e tantos outros amam odiar mostrou que ainda tem força para comover, mesmo que Russo faça tanta falta.
O show MTV Ao Vivo – Tributo à Legião Urbana tem mais uma edição, também no Espaço das Américas, às 22h desta quarta, 30. Novamente, será um evento com ingressos à venda (R$ 200), mas repleto de convidados e com boa parte da pista tomada pela área VIP.