Com o cancelamento, a internet passou a usar a liberdade de expressão e a rápida repercussão para massificar ataques virtuais e criar uma ilusão de militância
Um dia qualquer, em um horário qualquer. Você abre uma rede social, acompanha a vida fascinante do seu artista favorito e distribui likes nas postagens para expressar a admiração pelo trabalho dele. Então, você continua a navegação pelo Instagram ou Twitter até perceber um burburinho.
Em poucos cliques, você descobre que os usuários da web vasculharam as profundezas dos arquivos da internet e descobriram um tuíte ou uma entrevista antiga em que seu ídolo age de forma lamentável. Eis que surge a questão: cancelá-lo ou não cancelá-lo?
Para cancelá-lo, você precisa deixar de segui-lo nas redes sociais e parar de dar visibilidade ao trabalho dele na internet. Pronto, fácil assim. Talvez a parte mais trabalhosa seja repostar críticas e deixar claro para seus seguidores que você não apoia mais aquele artista.
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Por outro lado, se você escolher não cancelá-lo, será preciso preparar bons argumentos para o momento que for questionado e acusado de “passar pano”. Mesmo assim, você ainda corre o risco de ser cancelado junto com a celebridade.
A resposta para a questão parece simples: cancelar alguém é mais fácil. Kanye West, Taylor Swift, Anitta, Kevin Hart, todos eles já foram cancelados. Então, por que não cancelar mais um artista?
Bom, após algumas experiências, a web já deve ter notado que essa ferramenta é muito mais problemática do que eficiente. Os usuários têm o poder de anunciar o cancelamento de qualquer pessoa pública ou não pública, a qual não terá muitas chances - talvez não tenha nenhuma - de se retratar.
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Porém, a internet nem sempre foi esse campo minado de vigilância social. As plataformas online já foram instrumento de manifestações e deram voz às causas sociais ignoradas pela sociedade.
A Rolling Stone Brasil conversou com Yuri Busin, mestre e doutor em Neurociência Cognitiva pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, e Beatriz Barbosa Fejgelman, psicóloga clínica formada na Unesp, especialista em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e psicanalista do grupo Divam, para entender como a liberdade de expressão proporcionada pela internet, uma ferramenta valiosa, foi distorcida ao longo dos anos e se transformou na cultura do cancelamento.
A origem da cultura do cancelamento não possui um marco exato. Contudo, a revista Time relaciona essa mobilização online com o movimento #MeToo, que utilizou as redes sociais para unir vítimas de assédio e abuso sexual, em 2017.
As denúncias virtuais ganharam visibilidade mundial e foram transformadas em acusações reais. O cineasta Harvey Weinstein foi acusado por mais de 80 mulheres por crimes sexuais e foi sentenciado a 23 anos de prisão, em março de 2020.
Além disso, é possível identificar o movimento de “chamar atenção”, a chamada call-out culture, que foi tema de textos de opinião do The Guardian e do New York Times, em 2019. Segundo o veículo britânico, uma versão da cultura de “chamar atenção” fora da internet já existe há muito tempo e foi responsável por revelar injustiças sociais de grupos marginalizados.
Porém, a mesma ferramenta passou a ter um significado diferente quando foi transferida para o universo digital. O jornal define esse movimento nas redes sociais como uma ação simples: “Alguém faz algo errado, as pessoas avisam e a pessoa evita fazer isso de novo no futuro”.
Beatriz relembrou a eficiência da cultura de “chamar atenção” no Brasil ao citar a reformulação do posicionamento da marca Skol, que sofreu inúmeras críticas depois de sugerir que as mulheres deixassem o “não” em casa para celebrar com carnaval de 2015.
“O cancelamento pode ser utilizado de diversas formas”, disse a especialista a psicóloga. “Cancelar uma marca, como foi com a Skol, trouxe mudanças muito positivas, em que reconstruíram toda a propaganda da marca, parando de usar o corpo nu das mulheres em frente às telas e usando a força de trabalho intelectual para refazer o marketing.”
Ela completa: “Claro que toda essa mudança também vem de uma lógica capitalista, a qual, ao ver que as mulheres também são consumidoras da marca, abraça os ideais feministas ainda como meio para vendas e lucro”.
Com o passar dos anos, os usuários das redes sociais ficaram mais críticos e passaram tolerar cada vez menos comportamentos que ferissem movimentos de minorias sociais. Hoje, qualquer gesto, comentário ou like pode provocar um ataque virtual em massa, o qual não necessariamente apoia uma ação real e efetiva.
De acordo com informações da Forbes, Barack Obama, chegou a se manifestar sobre o assunto durante o Obama Foundation Summit, em 2019. O ex-presidente dos Estados Unidos afirmou que o cancelamento não passa de uma forma de se vangloriar por estar política ou socialmente mais consciente que alguém.
“Se eu tuitar ou fazer uma hashtag sobre algo de errado que você fez, ou uma palavra ou verbo que usou errado, então eu posso sentar e me sentir bem comigo mesmo, porque ‘Cara, você viu o quão consciente eu estava? Eu te chamei a atenção’. Isso não é ativismo”, disse Obama.
Busin explicou que, muitas vezes, as intenções dos cancelamentos são boas, porque buscam justiça, porém o movimento em massa de cancelamento contínuo gera uma superficialidade, além de criar uma projeção de que é possível simplesmente deletar alguém da vida real sem ao menos ter um diálogo com ela.
“Eu simplesmente posso falar, mas, se eu não quero ouvir nada, eu vou lá, mando um block e está tudo certo. Vida que segue. Só que a vida ela não é assim [...] É muito mais fácil digitar e cancelar na internet do que fazer uma denúncia e investigar. É um processo muito diferente [e] as pessoas, hoje, têm uma coisa, elas querem tudo muito fácil. As coisas não são fáceis. As coisas dão trabalho, muito trabalho.”
Já Beatriz disse que a cultura do cancelamento ganha força por ser uma forma de inclusão social. “O cancelamento pode aparecer como modelo de identificação, em que cancelo alguém para me afirmar diferente dele, afirmar minha opinião e existência”, disse a especialista.
“O cancelamento também pode aparecer como condição para fazer parte de um grupo. Muitas vezes o cancelamento é mais sobre ‘ser visto cancelando alguém’ do que necessariamente o efeito que aquilo pode gerar”, completou.
Na internet, qualquer um pode ser cancelado, até mesmo os mortos. Com uma vida repleta de polêmicas, Michael Jackson entrou oficialmente para a lista de cancelados depois que o documentário Leaving Neverland deu visibilidade para as denúncias de Wade Robson e James Safechuck, que afirmam terem sido abusados pelo cantor na infância.
Então, surgiram debates sobre o legado do astro pop: Deveríamos ignorar as contribuições artísticas do músico por causa das denúncias? De acordo com GQ, não é possível mudar a história e a influência de Jackson sobre inúmeros artistas contemporâneos, como Bruno Mars e The Weeknd, mas é possível tomar consciência e entender que o Rei do Pop é acusado de crimes gravíssimos.
Para Beatriz, o cancelamento de pessoas que já morreram “diz muito mais sobre a formação do grupo que cancela do que do cancelado em si”.
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Muitas celebridades se tornam alvo do cancelamento por não cancelarem pessoas canceladas. A cantora Letrux recebeu inúmeras críticas quando divulgou uma turnê com a banda Carne Doce, que se envolveu em polêmicas após o baterista ter sido acusado de abuso, segundo informações do Uol. Todos os shows em parceria foram cancelado pela cantora.
Já a Anittafoi cancelada por não criticar o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro, o qual já fez diversos comentários ofensivos contra a comunidade LGBTQ+, a qual representa grande parte do público consumidor da cantora pop.
A cultura do cancelamento aparentemente é uma resposta para apropriação de causas sociais, que é estimulada pelo capitalismo, segundo Beatriz. Ela disse: “Esse é um bom exemplo para pensarmos em como hoje em dia as pautas progressistas, por terem sido englobadas pelo mercado, se confundem com mercadoria.”
“Muitas vezes o posicionamento vira apenas um mero conteúdo consumível por um curto período de tempo e um acessório com o qual os artistas podem desfilar por aí, uma vez que faz muito bem para as carreiras simplesmente representarem algo, uma população, uma causa”.
Busin aponta que um dos grandes malefícios da cultura do cancelamento é a falta de debate sobre os temas abordados. Para o especialista, “as pessoas não querem ouvir [argumentos], as pessoas só querem ouvir: ‘Cara, você é contra, você é a favor’”.
“Você realmente é taxado porque está em cima do muro. Mas não é que você está em cima do muro, é que, hoje, muitas vezes, as pessoas não têm maturidade para entender opiniões divergentes”, explica o psicólogo. “Polarização gera muito view, né”.
Beatriz também concorda que as “redes sociais aparentam ser uma arena pública, na qual a discussão política acontece, mas, no fundo, por ser tão pobre nos termos da comunicação que favorece, elas tornam o debate superficial”.
A psicóloga continuou: “Por mais que existam exceções ou que existam casos nos quais discussões digitais geram efeitos, de alguma forma, positivos, a comunicação que se desenha nesse meio nos deixa presos e ‘viciados’ a essa forma menos aprofundada de relação.”
Em 2018, o The New York Times anunciou: Todo mundo está cancelado. No mesmo ano, Kimberly Foster, fundadora da comunidade digital para mulheres negras For Harriet, disse que não podemos aceitar mais ideais dolorosos, mas devemos entender que as pessoas podem mudar.
Aqui no Brasil, o debate sobre a possibilidade de ser “descancelado” já foi retratada por matérias de veículos como o Uol e podcasts, como o Café da Manhã, da Folha de S. Paulo.
“Todo mundo evolui, o erro que eu cometi há vinte anos não vai ser o mesmo erro que eu cometo agora [...] Eu acho que é muito buscar pelo em ovo, muitas vezes, e achar que as pessoas não evoluem”, disse Busin.
Por outro lado, Beatriz acredita que é possível ressignificar a cultura do cancelamento para realizar ações realmente válidas, as quais contribuirão para o crescimento do debate público na sociedade.
“A cultura do cancelamento digital pode ajudar se efetivamente construir diálogo e organização para fora da tela. A identificação como grupo por meio do desabafo coletivo é o primeiro passo, a ação política tem que vir como uma consequência disso.”
A especialista completou: “Entendo que a cultura do cancelamento veio para dar um basta em comportamentos inaceitáveis, preconceituosos ou de assédio, mas é importante pensar o que (ou quem) se cancela e quais [são] as reais mudanças alcançadas com esse cancelamento. Devido aos malefícios do cancelamento que apontamos aqui, fica claro que essa prática precisa ser seriamente repensada.”
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