Cavalera trocou o espaço fechado da Bienal pelas vias do Minhocão, em desfile neste domingo, 21
Rua e passarela são como primas distantes. Podem se falar em festas de família. Dão "tchauzinho" de longe ao se esbarrar na balada. Talvez sigam uma à outra no Twitter. Mas dificilmente passam disso.
Enquanto, na São Paulo Fashion Week (que, após seis dias de programação, termina nesta segunda, 22), estilistas deslancham seus desfiles conceituais, há quem aposte no ceticismo como o item que tão cedo não sai de moda. São muitos os vestidos que deixam meninas parecidas ora com bolo de noiva, ora com quadros de René Magritte. E a pulga atrás da orelha não dá trégua: "Pelo amor de Deus, quem vai usar isso?".
Dessa pergunta a Cavalera não tinha como se desviar. Justamente sob a bandeira do streetwear (estilo de rua), há 14 anos, nascia a grife, parceria entre o então deputado estadual pelo PSDB Alberto Hiar, o "Turco Loco", e o baterista do Sepultura, Igor Cavalera (hoje fora da empresa e da banda). Não tinha jeito. Era preciso provar que asfalto também é plataforma da moda - e em doses literais.
Saem as salas do Pavilhão da Bienal, onde os desfiles geralmente acontecem. No lugar, entra o Minhocão - bem menos conhecido pelo nome formal, elevado Costa e Silva. Se há quem insista em dizer que as ruas não vão até a moda, Hiar, dono da marca, e os estilistas Igor de Barros e Fabiano Grassi decidiram levar a moda até o asfalto. Carrinhos estilo "campo de golfe" transportaram convidados até o topo do elevado, onde a Cavalera tirou uma onda sob o tema "São Paulo É Minha Praia".
O começo da tarde de domingo, 21, estava estranhamente ensolarado para o primeiro dia de inverno. Cadeirinhas de praia vermelhas se espalharam por mais de 50 metros, enquanto quatro carros, com caixas de som acopladas, foram posicionados estrategicamente ao longo do Minhocão - dentro deles, alto-falantes bombaram o som amplificado, com faixas que iam desde o rap dos Racionais MC's até o punk dos Inocentes. Os automóveis vinham nas cores vermelho, amarelo e verde. Não deixou de soar como lembrete de uma cidade sempre às voltas o direito de ir, vir ou empacar no meio do tráfego. Só acreditamos no semáforo, certo?
Moradores fizeram de camarote sacadas e marquises dos prédios da redondeza - nas janelas, aliás, via-se toda sorte de símbolos da mais miscigenada São Paulo. Bandeiras de vários times enfeitavam edifícios de tintura descascada. Em uma casa, o flagra da mesa de café da manhã - com uma latinha de cerveja pousada em cima da toalha encardida.
Além dos 45 modelos recrutados para mostrar o desfile-reverência à capital paulista, 15 figurantes zanzaram de uma ponta a outra da passarela de asfalto. Entre a trupe urbana, ciclistas, patinadores (o modelo retrô de quatro rodinhas), gêmeos (duas garotinhas e irmãos carregando bola de futebol e bandeira), skatistas, músicos, um bebê no colo da mãe (que trazia mamadeira no bolso) e, no último minuto, o tiozinho que, com pinta de figurante de Easy Rider, atravessou o espaço com sua moto.
Algumas roupas traziam estampa com céu azul cheio de nuvenzinhas brancas - "o céu que a gente nunca vê", explicou Igor de Barros, que também assinou a coleção de outra marca na SPFW, a V.Rom. A cor amarela, recorrente nas peças, veio para representar tom bastante familiar aos paulistas. "É sinalização. É uniforme. Uniforme de quem trabalha na cidade, na grande metrópole que a gente ama", Hiar babou o ovo. À reportagem do site da Rolling Stone Brasil, o dono da grife ainda elegeria um lema da coleção, que nada por acaso está impresso na flâmula da cidade: "Não sou conduzido, conduzo".
Em edições passadas, a grife desfilou às margens do rio Tietê, no Museu do Ipiranga e no Autódromo de Interlagos. Dessa vez, a escolha do Minhocão caiu como uma luva - de borracha ou de seda, do trabalhador ou da madame - para contextualizar o tema da coleção. "Ele [o elevado] é amado e odiado. Foi construído para desafogar o trânsito e nem todos ficaram felizes com o resultado. Mas também não tinham escolha", disse Hiar.
E o Minhocão, de fato, foi isca perfeita para a pescaria de tipos urbanos. Entre as bordas da construção e a grade que isolava os convidados, por exemplo, estava Nilton Martins - no cartão de visitas, "sócio de uma empresa de empreendimento e vocalista da Cyklone".
Naquele domingo em particular, Martins não era exatamente o que poderíamos chamar de garoto propaganda da badalada marca. Com tênis desgastado, calça quadriculada e moletom, o pedestre passava por ali meio que por acaso. Mas disse estar atento ao estilo da Cavalera. "No palco, a gente usa uma bota bem de roqueiro, camisas transparentes. E tem a roupa das nossas duas dançarinas sadomasoquistas, que a gente põe na faixa 'Trash Movie'", explicou o espectador fora de série. Mas nunca de moda.