Cássia, que chega aos cinemas nesta quinta, 29, registra um dos maiores avanços na questão dos direitos civis para famílias brasileiras formadas por casais do mesmo sexo
Com os olhos marejados e perceptivelmente nervosa, Cássia Eller olha para a câmera, faz sinal de positivo e sorri. Conhecida por uma postura explosiva no palco, a cantora, naquele momento, aguardava para dar à luz Francisco Eller, o Chicão, único filho dela.
A cena, íntima e tocante, faz parte do documentário Cássia, do diretor Paulo Henrique Fontenelle, que chega aos cinemas nesta quinta, 29. Intercalando fotos, vídeos inéditos e entrevistas com artistas, amigos e familiares, a obra é uma viagem profunda ao universo da cantora, morta em 2001, aos 39 anos.
“A Cássia é uma figura emblemática para a música brasileira, mas o público só conheceu o lado explosivo dela. Fora dos palcos, ela era uma pessoa doce, tímida e simples”, conta Fontenelle, experiente em obras biográficas após dirigir Loki: Arnaldo Baptista (2008) e Dossiê Jango (2013).
O relato sobre o integrante d’Os Mutantes foi o passaporte do cineasta para conseguir o apoio da família da cantora na realização do filme. “Quando enviei o projeto à Maria Eugênia, ela me disse que o Chicão havia visto o documentário sobre o Arnaldo e gostado muito”, conta. “Por isso, eles se interessaram pela minha proposta.”
Fontenelle também faz questão de ressaltar que a viúva de Cássia pediu que a intérprete fosse retratada de maneira fiel: “Uma mulher de temperamento forte, mas com uma alma doce”, esclarece o diretor antes de acrescentar: “Combinamos que não deixaríamos nenhum tema polêmico de fora”. Entre eles estão: a identidade do pai de Chicão, a sexualidade de Cássia, o relacionamento amoroso que ela mantinha com a percussionista Lan Lan e o vício dela em drogas.
O assunto de maior importância, contudo, é a disputa judicial que envolveu a guarda de Chicão. Mesmo que sem intenção, o documentário registra um dos maiores avanços na questão dos direitos civis para famílias brasileiras formadas por casais do mesmo sexo. Após a morte da filha e à revelia do resto da família, o pai de Cássia, Altair Eller, tentou obter a guarda do neto na Justiça.
Ao pé da letra da lei, Altair seria, à época, o tutor legal do garoto. Pelo Código Civil e mesmo pelo Estatuto da Criança e do Adolescente a guarda de órfãos (o pai de Chicão, o músico Tavinho Fialho morreu antes de o menino nascer) costuma ser repassada aos avós maternos. Aos olhos da Justiça, portanto, o avô teria preferência na decisão.
Contrariando todas as expectativas e contornando os pontos desfavoráveis - como, por exemplo, a união homossexual não ser reconhecida em lei - o juiz Leonardo Castro Gomes, da 1ª Vara da Infância e Juventude, do Rio de Janeiro, decidiu que Chicão deveria ser criado por Eugênia. Essa foi a primeira vez na história da Justiça brasileira em que a tutela de uma criança foi entregue à companheira da mãe.
Apesar de não carregar bandeiras ou fazer discursos sobre homofobia, Cássia Eller, à maneira dela, teve um papel fundamental no avanço das questões que envolvem os homossexuais no país. A decisão da Justiça em deixar a guarda de Chicão com a mulher que esteve ao lado dela durante 14 anos não foi importante apenas do ponto de vista jurídico, mas também despertou debates sobre o tema no Brasil. Não foram os discursos, mas as práticas que a tornaram personagem fundamental. O conceito da "família tradicional", formada por um homem, uma mulher e os filhos biológicos, passou a ser questionado.
“Ela provocou muitos pensamentos, muitos discursos e muitas reflexões. É uma utilidade que vai além da música. De repente aquela mulher, que era chamada de ‘macho’, que coçava o saco e mostrava os peitos, aparece grávida. Isso mexeu com a cabeça das pessoas e induziu reflexões”, relembra Zélia Duncan, em um trecho do documentário.
Infelizmente, ainda hoje, Cássia Eller é normalmente lembrada pelos boatos acerca da morte dela. “Uma revista de grande circulação nacional divulgar uma capa como aquela é um crime”, afirma Eugênia no vídeo. A publicação em questão é da revista Veja que, mesmo antes de ter um laudo pericial do Instituto Médico Legal, estampou a seguinte manchete: “Drogas, mais uma vítima”.
O documentário Cássia esclarece a causa da morte: quatro paradas cardiorrespiratórias em razão de um enfarto do miocárdio. “Ela estava em abstinência de drogas e bebida”, relembra Lan Lan, uma das últimas pessoas a ver a cantora com vida. “Cássia me ligou naquele dia e estava chorando muito. Nós [Lan Lan e Thamyma Brasil, que também fazia parte da banda de Cássia] a levamos para tomar água de coco e fomos acalmando-a. Como ela sentia dor de cabeça e enjoo, paramos em uma clínica perto de casa. Fui fazer a ficha dela e quando voltei, ela já tinha sido levada”, conta.
Além de relembrar fatos de extrema importância, o filme contempla os fãs com um rico material, recuperando imagens da infância de Cássia e cenas das primeiras apresentações, em Brasília (cidade na qual ela foi morar aos 18 anos), e registros caseiros, que mostram a cantora ao lado do filho e da mulher, Maria Eugênia.
Cássia faz jus ao legado da cantora. É fascinante ver cenas cotidianas, registros pessoais e depoimentos de amigos. Constatar o quanto a timidez de Cássia sempre fez um contraponto com a presença furiosa dela nos palcos. Quando o filme acaba, fica a triste sensação de que Cássia Eller faz uma grande falta – não só para a música brasileira, mas também para todos os fãs que acompanharam de perto a carreira meteórica dela. Fica um grande vazio.