O filme mais recente do roteirista e diretor Ramin Bahrani é um passo à frente — mesmo que seu foco na luta de classes e sobrevivência de uma figura às margens da sociedade permaneça o mesmo
K. Austin Collins | Rolling Stone EUA. Tradução: Marina Sakai | @marinasakai_ sob supervisão de Yolanda Reis Publicado em 02/02/2021, às 18h42
O Tigre Branco (2021), de Ramin Bahrani, estreia recente da Netflix, tem duas cenas de abertura, ambas surpreendentes. Em Delhi, em 2007, um caminhão cuja motorista, Pinky (Priyanka Chopra), está bêbada, desce uma rua perigosamente nebulosa em alta velocidade, oscilando e desviando em seu caminho em meio aos perigos escondidos da noite — um veículo aqui, uma vaca ali. Então, o caminhão acerta uma criança.
Em seguida, somos apresentados com a abertura número dois, em Bangalore, no ano de 2010, no mundo do homem que deveria ter dirigido aquele caminhão: Balram Halwai (Adarsh Gourav). Em 2007, era o servo e chauffeur do jovem e rico profissional Ashok (Rajkummar Rao), mas hoje não é servo de ninguém. Aparentemente, é grande e poderoso, ou pelo menos tenta parecer. Também tem muita coisa em sua cabeça: a moderna ascendência da Índia, entre outras coisas, e como a notável mudança do foco de poder no mundo (se distanciando dos Estados Unidos, se aproximando da China) pode afetar o destino do seu próprio país. O tipo de assunto pelo qual um homem com novo status de Balram agora se interessa, quando antes seu único objetivo era se tornar aquele homem.
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Agora, ele está aqui. E Balram — bem vestido, claramente bem de vida, peito cheio com sua visível confiança — entende o destino do seu país. Entende porque, como o enxerga, é um espelho de seu próprio destino — fora da escuridão da pobreza, em direção à luz da oportunidade. Então, começa o fio condutor deste filme: a história de como Balram chegou até aqui, e essa também é a história de como o seu rosto acabou em cartazes de procurados pela polícia ao redor do país. Sem surpresa alguma, é uma história complicada.
O Tigre Branco é uma adaptação do livro de mesmo nome de Aravind Adiga, lançado em 2008; conquistou o prêmio Manbooker Prize no mesmo ano. Bahrani, roteirista, empresta livremente e intensamente aspectos de seu material fonte. Por isso, a ampla visão social de Adiga, sua confiança na totalidade, e uso de metáforas evocativas para resumir e fazer sentido das condições de classe indianas, reaparecem aqui, frequentemente com forte efeito.
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O tigre branco é símbolo não só de poder, mas de raridade: signo individual, da exceção. O tipo de sinal, em outras palavras, de um homem nascido nas circunstâncias de Balram — empobrecido, sem figuras masculinas depois da morte do pai por tuberculose, desprovido de educação depois do dinheiro ser realocado para o dote de uma parente — precisa crer se vai acabar acreditando em si mesmo. A Índia de Balram, como retratada em O Tigre Branco, é uma na qual as castas são tão rigidamente definidas, os limites tão invioláveis, que precisariam de um tigre branco para desafiá-los.
Se isso acontece raramente, como explica Balram, é parcialmente por causa da outra imagem dominante neste filme: a dos galos em uma gaiola, na fila para o massacre, completamente conscientes e testemunhas do massacre de todos os galos cujos números são chamados antes dos deles e, ainda assim, faltam os meios para tentar escapar. É uma imagem na qual a parcela pobre da Índia está, como resultado do efeito psicologicamente debilitante da pobreza, mais apta a entrar na fila do que a tentar fugir.
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O senso de si mesmo de Balram é o de um tigre branco. A história do filme de Bahrani é a da vontade e destreza do próprio Balram. Isso é, em grande parte, uma representação da Índia na encruzilhada específica da globalização e prosperidade em potencial, a narrativa ouvida ao longo da história é, na verdade, uma carta escrita por Balram para o então Premier chinês Wen Jiabao. Sua tese: quem precisa do Ocidente? Não demora muito para entendermos a ironia subjacente a esta questão.
Enquanto uma história sobre classe acima de tudo, O Tigre Branco dificilmente é uma partida para o seu diretor, cujos trabalhos anteriores Man Push Cart(2005) e Chop Shop(2007) são considerados clássicos da tradição dos filmes indie dos orçamentos pequenos, filmes sobre pobreza que resistem equacionando perfeitamente com a impotência e, usando seus próprios recursos acanhados nas mangas, parecem estar em sintonia com as vidas e condições retratadas.
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O mais novo filme de Bahrani imediatamente se anuncia como um salto para frente nos recursos para o cineasta; aquelas rápidas e deslizantes cenas do caminhão mencionado anteriormente são uma agradável surpresa. O assunto do filme, com sua história picaresca de luta de classes e sobrevivência de uma figura às margens da sociedade, é mesmo assim consistente com os interesses de Bahrani, e muitas vezes, de forma ágil e próxima, ele se volta para o território familiar do diretor.
O filme tem, além disso, um amplo espectro de pessoas e ideias a percorrer — começando por Balram, cuja história começa em um vilarejo rural no distrito indiano de Gaya, e então muda para Delhi, onde arruma um emprego como o motorista americanamente educado de Ashok e é então, eventualmente, traído. A traição dá origem a outros conflitos — e conduz, sinuosa mas não surpreendentemente, a um destino cruel. Tudo isso se acumula e termina com Balram voltando à consciência, e começa a flutuar para o território de Crime e Castigo, a justificativa confusa e febril de um anti-herói sobre um assassinato envolvendo dinheiro, com todos os sinos e apitos psicológicos e idas e vindas internas implicadas por ela. Esse último pivô é uma sinalização para o declínio do filme, não por ser uma experiência ruim, mas porque deixa de estar à altura de suas ideias mais interessantes.
A educação de classe de Balram, sua longa jornada até se tornar sábio e experiente, é um veículo útil e necessário para explorar as questões sociais e políticas herdadas por Bahrani, do autor do romance. Mas o que dizer do Balram moderno, é irônico, habilidoso e usa bigode e rabo de cavalo? Claramente, houve uma transformação — não só em termos de sua política, mas também seu estilo, sua destreza e sua sagacidade fatal. Esse homem? Esse homem é interessante. Colocado em destaque para ter sua narrativa ouvida de ponta a ponta, permite um filme com possibilidades de se desenrolar em diversas direções. As cenas de abertura de O Tigre Brancopoderiam entregar qualquer coisa, desde sátira até polêmica, ou uma incrível combinação de ambas.
Ao invés disso, Bahrani opta por algo, apesar de toda a energia e intriga iniciais do filme, comparativamente linear. O Tigre Branco é um drama capaz, atraente e tópico, a história de uma Índia em ascensão — Bangalore se transformou em uma espécie de Vale do Silício, como Balram o descreve — narrada por um homem cujo crescimento espelha o de seu próprio país. É uma boa configuração: um picaresco cujas dimensões culturais específicas e as relações com o sistema de castas da Índia e (como vistos nesse filme) seu determinismo social rígido, dão gordura extra para mastigar.
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Entretanto, O Tigre Branco, apesar de possuir muito mérito, sofre em nos dar uma configuração mais rica do que o desenvolvimento dos acontecimentos. Rrra ao reduzir tudo ao básico, para uma sequência repetida de símbolos, slogans e traições, lições aprendidas e reaprendidas, e essas falham em se tornar mais complexas ao longo do filme — mesmo com essas oportunidades de crescimento constantemente se anunciando na história.
A perspectiva de Bahrani nas circunstâncias atuais de Balram é restrita do começo ao fim do filme, e começa a parecer uma conclusão abandonada, mais do que a curiosidade realmente é. É fácil entender por quê: esse é um clássico círculo narrativo, uma história sobre como chegamos onde chegamos já batida e rebobinada muitas vezes. Então é, de certo modo, abandonada.
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A história de fundo também é mais tentadora e sugestiva do comparado ao retrato feito pelo filme em última análise. As ideias sobre o sistema de castas da Índia, a ascensão nacional do país, as oportunidades limitadas para a mobilidade de classes passam a parecer simples demais. O sistema de símbolos e metáforas do filme, emprestadas do romance, se tornam muito fáceis — não porque são, mas por causa da representação no filme.
Gradualmente, carrega o ferrão de uma oportunidade perdida, um ferrão que nos perfura mais nos 15 minutos finais do filme, quando fica claro o quão pouco tempo teremos para aproveitar com o Balram de 2010. De volta a Delhi, algo ruim acontece — um ato de violência catapulta o protagonista de uma classe para outra — e com rapidez sugestiva, ele faz o necessário para fazer o certo com o que o destino lhe deu.
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Essa pressa crescente e bastante climática é intencional: é possível sentir o filme esforçando-se por uma sensação de conhecimento e até mesmo condenação de castigo que ilumina a dupla ligação da identidade de Balram. Tranforma-se em um amálgama condenado do homem idealizado por ele e, após suas experiências com os ricos, o homem que passou a odiar.
Há uma versão dessa história que sem dúvida funciona e surpreende o público com a força de uma piada perfeitamente irônica e severa. Ou uma variedade de outras atitudes. O filme Burning(2019), de Lee Chang-Dong, outra história de um encontro de classes fatal, termina em uma nota inesquecível e esmagadora — uma tragédia que nos choca, parcialmente porque opta por iludir e atordoar enquanto outro filme, um filme como O Tigre Branco, se apoia fortemente em explicações e exposições, satisfazendo uma necessidade de limpar e explicar uma forma de raiva de classes que não precisaria ser tão limpa ou explicável para nos compelir ou até nos convencer. O tom do filme é de parábola, e tem uma dependência em um indivíduo excepcional — o tigre branco — da mesma forma implantado para explicar o mundo social vasto do filme.
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Ao final, o filme de Bahrani cobre os pontos propostos com drama e mantém o público entretido, na maioria das vezes. A força de tudo ali, do embaraçado, o motor raivoso responsável por catapultar a história no início, diminui até quase se tornar um choramingo. Não é necessária uma fórmula restrita para uma história como essa, mesmosendo, em sua base, classicamente picaresca.
O Tigre Branco, entretanto, eventualmente torna-se vítima dessa fórmula, e torna-se mais vítima ainda da redundância de suas ideias até o ponto de esmagá-las completamente, deixando pouco espaço para explorar as reais curiosidades do Balram com quem nos familiarizamos no final.
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É um elogio para o romance modesto mas bem afinado de Gourav. Eu queira saber mais sobre esse homem no segundo quando aparece e apenas me torno mais interessado ao decorrer da história — até quando o filme começa a se estabelecer, por fim, nas ideias menos originais.
Os outros atores são igualmente dignos. O Ashok de Rao, por exemplo, varia do gentil ao cruel, amigo do “mestre”, com uma facilidade não apenas dramaticamente consistente, mas se torna irritante. Aqui está um homem aparentemente justo, apesar das pessoas com quem se associa, e cuja justiça está enraizada em seu cosmopolitismo. Ele é gentil com Balram porque, tendo estado fora do país, viu como era a situação no exterior. Não é o suficiente fazê-lo renegar seus privilégios, mas é o suficiente fazê-lo parecer como ele deseja ser. Essa é a perigosa armadilha da gentileza dos confortavelmente ricos — e Rao acerta na mosca.
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Enquanto isso, há uma perceptível mudança de temperatura quando a personagem de Chopra deixa a trama; as coisas se tornam cada vez menos interessantes quando Pinky Madam e a tensão inspirada por ela, os códigos colocados em questão, se tornam subitamente ausentes. Esvazia-se o filme não pela mudança em si, mas pela sensação de Bahrani, tendo perdido a textura e atitude crucial e curiosamente fora do lugar dada pela personagem de Pinky, fica sem nada de interesse similar para substituí-la. É notável, quando a personagem vai embora, os conflitos do filme começam a se mover lateralmente ao invés de em frente, tornando-se repetitivos, mesmo quando o filme está obviamente chegando perto de seu clímax.
Bahrani é um bom diretor. Ele consegue contar uma história boa, revigorante e bem pensada. Quem acompanha o seu trabalho já sabia de tudo isso, e o material de fonte do filme lhe deu um esboço bom, senão refrescantemente original para a sua história. Mesmo com seus pontos fracos, O Tigre Branco oferece ao seu roteirista-diretor uma tela grande e encorajadora, estimulante para um artista cujo trabalho inicial conseguiu pegar uma polegada e correr uma milha inteira, provando ser ainda mais evocativo por ser tão esperto e restrito.
O novo filme de Bahrani sinaliza a postura do diretor: claramente não perdeu sua ambição, mesmo se o resultado ficar um pouco aquém desse objetivo. Esse, entretanto, é o prazer de ver um diretor de mérito crescer, mudar, ao longo do escopo de uma longa carreira — e Bahrani o merece. O Tigre Branco sinaliza não é um retorno ruim em sua promessa inicial. Ele realiza o oposto: me faz ficar ansioso para o que está por vir.
+++ PAI EM DOBRO | ENTREVISTA | ROLLING STONE BRASIL