Escravidão: Uma História de Injustiça – Nova série de Samuel L. Jackson apresenta diferente e necessária perspectiva sobre o tráfico de escravos [ANÁLISE]
Lançada no canal National Geographic, a produção dialoga a jornada pessoal do astro com uma importante investigação de naufrágios de navios que transportavam escravos
Camilla Millan
Se você pensa que os 400 anos de tráfico humano começaram nos países da África e terminaram nas Américas, você está enganado. Muitos dos que foram escravizados encerraram a viagem de navio antes, no meio do mar – e a série Escravidão: Uma História de Injustiça, de Samuel L. Jackson, deixa isso evidente.
Dirigida pelo jornalista investigativo Simcha Jacobovici, a produção estreou no canal National Geographic dia 20 de novembro, para mostrar aos espectadores uma nova perspectiva sobre a escravidão, dialogando com a jornada pessoal de Samuel L. Jackson (que também é co-produtor) para se reconectar à ancestralidade. Para isso, a série de seis episódios foi filmada em diversos países, inclusive no Brasil
A produção consegue, à la National Geographic, apresentar os corpos negros não só pelos horrores da escravidão, mas pela beleza cultural das diversas culturas pretas ao redor do mundo – e isso só é possível com diversos recursos utilizados pela produção.
Para uma abordagem completa, a série consegue intercalar experiências pessoais de Jackson, algumas dramatizações, viagens dos outros jornalistas como Afua Hirsch, e o estudo de naufrágios de navios que transportavam escravos – e o resultado é impressionante.
Investigação submarina
Escravidão: Uma História de Injustiça aborda o que, para muitos, pode ser uma nova forma de olhar para o tráfico de escravos. Os episódios acompanham o DWP (Diving With a Purpose, em português, “Mergulhando com um Propósito”), que reúne mergulhadores cujo objetivo é explorar navios negreiros naufragados.
Encabeçada por Kramer Wimberley, Alannah Vellacott e Kinga Philipps, a equipe consegue recontar acontecimentos ligados ao tráfico de escravos a partir da descoberta de artefatos e da ajuda de historiadores, arqueólogos marinhos e profissionais de mergulho especializados.
Como aponta a série, mais de 12 milhões de pessoas foram sequestradas e vendidas como escravas. Pelo menos dois milhões morreram no mar, seja por naufrágios ou pelo assassinato cruel, ao serem jogadas ao mar, mal-alimentadas ou trancadas para morrerem – e tudo isso é explorado ao longo dos episódios.
O envolvimento é algo a ser, definitivamente, trazido à tona. Não se trata de um grupo de mergulhadores realizando algo para ser transmitido na TV, mas indivíduos que se conectam à história por eles investigada. Por isso, eles não são apresentados apenas enquanto profissionais, mas também em toda a emoção que sentem.
Como é dito no primeiro episódio pelos próprios mergulhadores, fazer uma descoberta no fundo do mar é uma mistura de felicidade e tristeza. Isso porque um navio naufragado com escravos é um “local de enterro” que envolve muitas histórias de pessoas que, arramadas às correntes no fundo das embarcações, não tiverem uma chance de se salvar.
Mais do que histórico, fica evidente o valor simbólico dos mergulhos, de forma que os profissionais se conectam ao sofrimento dos escravizados durante as viagens – e isso proporciona que os espectadores da série também se relacionem e reflitam sobre o tráfico de escravos.

Jornada pessoal de Samuel L. Jackson
A jornada pessoal de Samuel L. Jackson em busca de se reconectar à ancestralidade é intercalada com a investigação dos mergulhadores. No primeiro episódio, o astro faz uma análise de DNA e descobre que os antepassados dele vieram do Gabão – e ele decide fazer uma viagem ao local.
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Contudo, antes disso, uma visita de Jackson à prima dele, Hilda, merece destaque. Apesar de a cena ter poucos minutos de tela, é extremamente importante. O astro explica que a parente rastreou a árvore genética da família até chegar à época da escravidão – e o trabalho, feito majoritariamente no boca-a-boca, é de fato impressionante.
Hilda consegue nomes e até fotos de várias gerações da família, montando-os em uma árvore genealógica admirável. Esse momento inicial do primeiro episódio da série é, infelizmente, pouco explorado. Fica a vontade de se aprofundar no processo que levou a prima de Jackson ao resultado.

No entanto, a jornada do astro continua, e é explorada em diversos locais ligados ao tráfico de escravos. No primeiro episódio, em visita ao Gabão, ele participa de diversos rituais e cerimônias para ser reintroduzido à comunidade ancestral dele.
Respeitosamente, todos os objetos sagrados dos rituais são apresentados aos espectadores – e o encontro de culturas fica evidente. A jornada de Jackson faz um contraponto à investigação comovente nos naufrágios, e instiga o espectador a revisitar a própria ancestralidade.
Realidade ambígua do tráfico de escravos
Ao longo da produção, os espectadores acompanham diversas paisagens naturais muito bonitas. No primeiro episódio, a costa do Gabão, na África, é apresentada em toda a sua beleza – mas o paraíso tropical tem a marca de injustiças.
Vários locais de tráficos de escravos visitados na série são considerados paraísos, o que revela a ambiguidade destes espaços. Apesar da beleza do local, é impossível ignorar a história de escravidão e sofrimento vivenciada no mesmo espaço – e os dados mostram isso.
São abordados nos episódios diversos números que também contextualizam sobre a violência sofrida pelos pretos escravizados – e expõe que muito aconteceu no período em que mais de 45 mil viagens de navio foram realizadas transportando negros para as Américas.
Tal ambiguidade entre paisagens, injustiças e dados acompanha a série em todos os 12 países, incluindo o Brasil. Em um dos episódios, o cenário é a capital pernambucana Recife, considerada por especialistas o quinto maior centro mundial de tráfico de escravos.
Relação com o Brasil
É impossível falar sobre o tráfico de escravos e não falar sobre o Brasil. O país foi o que mais recebeu escravos no mundo: 4,9 milhões segundo dados da The Trans-Atlantic Slave Trade Database.
A relação com o Brasil fica evidente no seriado. No Gabão, apresentado no primeiro episódio, é dito que a maioria dos escravos dos portos do país foram transportados para o Brasil.
Por isso, a produção de Samuel L. Jackson também explora a escravidão no país, apontando diversos locais em Recife e no Rio de Janeiro que são considerados marcos do tráfico de escravos – mesmo que isso raramente seja retomado.
A tentativa de apagar os horrores da época é praticada tanto no Brasil, quanto em outros países visitados pela série. Contudo, Escravidão: Uma História de Injustiça faz questão de deixar essas feridas escancaradas, dando uma aula sobre o passado escravista.
Importância histórica
Repleto de dados, investigações e filmagens inéditas, o seriado é um marco histórico de grande importância. Não é apenas um produto para a TV, mas uma produção que se aprofunda no tráfico de escravo de forma didática e inédita.
As dramatizações, característica das produções do National Geographic, são um aspecto relevante para essa importância história. Por meio delas, os espectadores se conectam ainda mais à realidade tratada ao longo dos episódios – e isso aumenta o alcance da produção.
O momento histórico no qual a sociedade vive, com grandes protestos de movimentos antirracistas, também exemplifica as ramificações desse tráfico de escravos, cuja violência é observada até a atualidade. Escravidão: Uma História de Injustiça consegue falar sobre escravidão e ser muito atual – o que mostra que ainda falta muito para os corpos pretos receberem a tão almejada justiça.
Racismo, violência e a morte de diversos corpos pretos é uma realidade, infelizmente, ainda não extinta – e é preciso falar sobre isso. Contudo, os episódios não deixam de explicar o necessário: os negros não se resumem à escravidão. Muito pelo contrário.
Além de falar sobre as injustiças e a violência sofrida pelos escravizados, a produção exalta a pluralidade e a beleza das culturas pretas, mostrando como a escravidão foi uma interrupção injusta e violenta das histórias pretas.
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