Documentário Marcelo Yuka no Caminho das Setas, de Daniela Broitman, mostra as diferentes faces do músico
O mito encontra o homem; o músico encara o silêncio; o homem é coberto pelo medo e pela desesperança. A cineasta e jornalista Daniela Broitman derrubou as paredes e máscaras que cobriam Marcelo Yuka no imaginário popular – e eram muitas – ao longo de sete anos. O resultado é a crueza do ser humano escancarada no documentário Marcelo Yuka no Caminho das Setas, que chega aos cinemas nesta sexta-feira, 30.
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E o tal “caminho das setas” veio de uma frase que Yuka ouviu do poeta Waly Salomão. “É preciso encontrar o caminho das setas”, dizia ele. O enigma, descoberto de forma trágica e dolorosa por parte de Yuka. As setas apontavam para aquela rua aparentemente deserta na trágica noite de novembro de 2000. Levaram seu carro até lá, onde uma parte de Yuka morreu, após ter seu corpo alvejado por nove balas. Mas nasceu ali, na visão de alguns, uma espécie de herói – uma garota alega ter sido salva pela chegada do músico, embora ele diga não ser capaz de se lembrar.
Mas o próprio Yuka tem dificuldade em se enxergar neste papel – como pode existir um herói quebrado?, é a questão dita sem palavras. Ele, ao mesmo, refuta e busca o título de salvador da pátria. Quer mudar o mundo, mas também deseja simplesmente voltar a mover suas pernas e, quem sabe, casar-se e ter filhos.
Entre tantos interesses, ainda há o lado de músico. Há a pressão interna para que todo o fluido criativo extrapole e ganhe o formato físico do prometido disco de Yuka. A demora, contudo, já dá a ele ares mitológicos. As músicas vão e voltam, como massa de modelar nas mãos de uma criança. O próprio Yuka brinca com as lendas sobre o seu disco – o bom-humor, contudo, logo some e o rosto do músico ganha um ar de preocupação e dúvida sobre o seu futuro álbum.
O cinema visceral de Daniela Broitman não dá espaço para grandes maniqueísmos e dicotomias. As complexidades estão justamente nas imperfeições de Yuka. Ele se diz dono de uma autoestima baixíssima, inseguro de todo modo. O criador de canções tão politizadas como “Pescador de Ilusões”, “Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero)”, “Todo o Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro”, sucessos com O Rappa, sua antiga banda, agora, questiona seu próprio trabalho, sua função social e seu papel. “Tenho medo de que minha passagem pela Terra seja em vão”, diz ele, em dado momento.
Não poderia ser mais egocêntrico e altruísta que isso – sim, os dois ao mesmo tempo. É um impulso de ter a sua presença neste plano, cujo combustível é o bem-estar do próximo, prolongada e lembrada após sua partida. Dentro das suas próprias imperfeições, ele briga pelos seus – a família Yuka envolve até menores detidos que ele tenta ajudar com cursos de informática.
As brigas com sua antiga banda, O Rappa, escancaram o pior lado de ambos: uma separação por desavenças sobre dinheiro e direitos autorais. Na cabeça, fica o eco de uma das primeiras frases ditas no início do documentário: “O nosso melhor disco será o próximo”, grita o vocalista Falcão, ao fundo, em uma conturbada cena na qual Yuka é mostrado sendo levado em uma maca para uma ambulância, logo depois de ser baleado. Mas as promessas, no momento de dor, perdem a força com o passar do tempo. Yuka foi demitido porque não aceitou dividir a sua parte do dinheiro recebido por cada música. O grupo alega que a poesia dele chegava bruta demais e era lapidada por todos. Ainda que o músico tenha obtido algum sucesso com a banda F.U.R.T.O., nunca mais conseguiu um grande hit.
Yuka segue até hoje com dores lacerantes que percorrem o corpo todos os dias. É duro ser o ativista, quando o seu próprio corpo lhe traí. Ele busca soluções para a sua própria vida: muda de casa, procura tratamentos alternativos e busca por uma cirurgia arriscada, mas recusada por um médico português. Yuka, então, segue da mesma forma. Ao longo desses sete anos em que acompanhamos nesta uma hora e meia, cada nova porta é aberta nesse imenso labirinto de corredores que é Marcelo Yuka. São surpresas nem sempre agradáveis, faces obscuras, outras coloridas e solares. Esperanças e desilusões caminham lado a lado, e no caminho apontado pelas setas há espaço para as duas.