"Uma cena de oito páginas realizada entre quatro paredes e de frente para uma mesa de aço inoxidável dessas de fazer piquenique? É comigo mesmo!", brinca o cineasta
"São os aspectos mundanos, assim como os aspectos depravados, que fazem toda a diferença”, diz Holt McCallany, protagonista da série Mindhunter, referindo-se ao poder que serial killers têm de conquistar a imaginação do público. "É a natureza incompreensível dos crimes que ao mesmo tempo aterroriza e fascina”. O sucesso da série, que estreou a primeira temporada, com dez episódios, na semana passada na Netflix, tem muitos jeitos de ser explicado. Enquanto o “como?” por trás das atividades desses criminosos pode ser entendido a partir da leitura de diversos artigos da Wikipédia, o “por que?” escondido nas patologias é o que mantém as coisas interessantes.
Em Mindhunter, criada por Joe Penhall e pelo renomado David Fincher, há um refinamento da narrativa tradicional vigente na cultura pop, especialmente em séries policiais ou envolvendo o FBI, ao mesmo tempo em que ela é refutada. O programa nos leva de volta para o espírito 1977, no nascimento da unidade da instituição responsável por perfilar os criminosos. Baseada no livro de 1995 do ex-agente John E. Douglas, a série acompanha Holden Ford (Jonathan Groff), que atua negociando com criminosos em casos que envolvem reféns e é requisitado no QG do FBI em Quantico, Virgínia. Ele ganha como parceiro o veterano agente Bill Tench (McCallany) e os dois recebem a missão de cair na estrada e dar palestras a respeito das técnicas policiais que dominam tão bem. Ford, contudo, está mais interessado em tentar descobrir que tipo de coisas interessam a mentes assassinas. Depois de fazer algumas entrevistas esclarecedoras com criminosos encarcerados, como "Big Ed" Kemper (Cameron Britton), os dois homens convencem um superior a deixá-los concentrar as energias nisso em tempo integral. "Como poderíamos nos adiantar em relação aos malucos se não sabemos como os malucos pensam?", questiona Tench mais ao final do segundo episódio.
O resultado é parte uma série de época retratando os costumes daquela década e parte série de procedimento, com todos os horrores estilísticos típicos dos trabalhos assinados por Fincher. Ele e Penhall compilaram informações a respeito dos mais notórios “assassinos em sequência” daquela era e é tudo filmado em vários graus de preto muito escuro, verde rançoso e tons de cinza (apesar de ser creditado oficialmente como produtor executivo, Fincher também dirigiu quase metade dos episódios). Embora o cineasta tenha um longo histórico de produção dentro desse subgênero, a base aqui não é seu influente thriller Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995), é mais a obra de 2007 Zodíaco, em que senhores com ternos baratos ficam para lá e para cá e as cenas longas de conversa mantêm a sensação constante de apreensão em ponto de fervura.
"Ah, eu amo interrogatórios!”, admite Fincher, falando por telefone de Los Angeles. "Amo cenas em que alguém está tentando resistir à tentação de revelar coisas. Uma cena de oito páginas realizada entre quatro paredes e de frente para uma mesa de aço inoxidável dessas de fazer piquenique? É comigo mesmo! Muitos cineastas pensam ‘Ah, saco, isso vai ser um tédio. Preciso colocar uns flashbacks no meio'. Mas eu sempre lembro de Tubarão. Na minha cabeça, é muito mais interessante ouvir Robert Shaw contar a história do USS Indianapolis do que cortar para mais de mil homens sendo comidos por milhares de tubarões.”
Aliás, desde 2000, quando Fincher teve o primeiro contato com o livro sobre a história da unidade de perfis do FBI – não o livro de John E. Douglas, mas o de Robert Ressler, uma crônica complementar chamada Whoever Fights Monsters: My Twenty Years Tracking Serial Killers for the FBI, a discussão já era em torno de como abordar a história de origem dos investigadores de serial killers por meio de uma narrativa serializada. O cineasta admite, contudo, "que eu não estava vendo muita TV naquela época, então não sabia nem o que estava procurando em um programa de televisão. Deixei de lado. Mais ou menos em 2009, a Charlize [Theron] me deu o livro de John e eu devorei inteiro com um fervor apaixonado. Vi ali a confirmação de todas as minhas preconcepções a respeito dos caras [daquela unidade]".
Ainda assim, a ideia de trabalhar em televisão, mesmo que o meio já estivesse bem estabelecido em sua nova Era de Ouro, parecia algo muito longe do universo de Fincher. Foi só depois que ele conseguiu explorar esse território estranho com a Netflix, com um papel de supervisor em House of Cards – e, assim, ajudou a elevar o serviço de streaming ao prestígio que tem hoje – que conseguiu ter uma noção melhor das possibilidades dessa mídia. "Será que ainda dá para chamar só de televisão?", ele pergunta. "Lembro que pensei que aquele era um híbrido muito esquisito, com uns personagens muito mais introspectivos e, de certa forma, mais sinistros, que têm mais espaço para ir longe e para mostrar melhor quem eles são. Quando a Charlize voltou a falar nisso e mencionou que achava que esse era o momento, eu entendi e concordei.”
"Começamos a debater o que nos intrigava na narrativa de John. E era: como você combate um antagonista que não consegue entender? E como começa a entender o inimigo se não consegue sentir qualquer tipo de empatia por ele?" Fincher e Charlize, então, assinaram como produtores executivos.
Groff e McCallany admitem que a ideia de poder fazer uma série da Netflix com Fincher era algo que não deixava espaço para dúvida, porém, não interessava a nenhum deles fazer uma versão com maior prestígio de CSI. "Ah, sim, o conceito do supervilão serial killer!", Fincher diz quando surge o assunto dos assassinos em massa famosos da TV. "É engraçado, fomos até Quantico conhecer analistas de comportamento e em algum momento fomos ao porão, onde tinha uma estátua meio Madame Tussaud de Hannibal Lecter! O assessor falou: ‘Ah, sim, nossos serviços passaram a ser exigidos com muito mais frequência depois de O Silêncio dos Inocentes, o que você achou do filme?’ E eu falei que Mindhunter era para ser meio que o oposto desse conceito do serial killer como um gourmet fã de ópera e bon vivant. Na realidade, acho que eles são incrivelmente reais, incrivelmente humanos e incrivelmente maus. Não são vilões de filmes do James Bond."