Mark Lanegan e Greg Dulli mostraram show acústico nesta quarta, 1º, com direito a versões de Screaming Trees e Afghan Whigs
Mark Lanegan e Greg Dulli têm concorrentes de peso: Mark Lanegan e Greg Dulli. Nos anos 90, eles estiveram, respectivamente, à frente do Screaming Trees e do Afghan Whigs, grupos que, na aba do Nirvana, ajudaram a pegar a cena roqueira pelo colarinho e dela chacoalhar o grunge. Ao subir no palco do Bourbon Street, quarta, 1°, em São Paulo, para o primeiro show do Gutter Twins no Brasil, a dupla não teria feito mal em sacar uma flanela xadrez para limpar parte das expectativas do público - em sua maioria, ex-garotões que, num passado não tão remoto assim, economizaram no cabeleireiro tudo o que torraram nas aulas de guitarra.
Embora o show anunciado fosse o dos "gêmeos da sarjeta" (em português, nome de batismo da parceria que, desde 2003, sacramenta duas décadas de amizade), o que rolou para valer foi o projeto "Uma Noite Com Mark Lanegan & Greg Dulli". A diferença está nos decibéis. Ou melhor, na falta deles. Com apenas um músico de apoio (o guitarrista Dave Rosser), eles largaram mão do "rock-barulheira" de suas carreiras passadas, com show acústico de pouco mais de uma hora de duração. Com versões desplugadas de faixas do álbum Saturnalia (cozinhado por cinco anos, até ser lançado em 2008), além de bocados das diferentes fases da carreira dos músicos, eles prenderam a atenção do público.
Saem os porões apinhados e os shows sobre lama, entra o Bourbon Street, casa conhecida por abrigar apresentações do "pomposo" jazz. E há certa graça no paralelo: assim como o grunge, o jazz nasceu tão elitizado como uma lata de salsicha. Quis o destino, sempre com uma quedinha pela ironia, que o movimento surgido nos guetos de Nova Orleans virasse "coisa fina". Pois, na noite de quarta, foi a vez do estilo exportado de Seattle ser acolhido por uma plateia esparramada em mesinhas, ou espremida mais ao fundo, em pé - mas a palavra "rodinha", ali, soaria apenas... arqueológica.
O show começou por volta das 23h, com "The Stations", "God's Children", um dos carros-chefes da dupla, e "The Body". Logo percebe-se que as vísceras do grunge ficaram expostas a um bisturi pouco metódico, porém cortante, do blues (principalmente) e do country. Também dá para notar que os melhores amigos (eles se declaram como tal) têm a sintonia das pessoas que, por se conhecerem há tanto, podem completar a frase do outro antes que este pense em pronunciá-la.
Não que eles tenham conversado muito com o público - para chateação de alguns, não rolaram historinhas sobre os tempos de bad boy, em que a rodada de mulheres, drogas e bebida era por conta da casa (Lanegan, no palco, agora só bebe água e olhe lá). Mas a cumplicidade entre os timbres de Lanegan e Dulli vale mais do que qualquer tentativa de interação ou falsa simpatia. O ex-líder do Screaming Trees, que já emprestou seus serviços ao Queens of the Stone Age, tem um vozeirão e tanto, com cordas vocais que parecem ter se ensopado, ao longo dos anos, em banho-maria preparado com uísque e temperado com cinzas de cigarro - se você lembrou de Tom Waits, saiba que não foi o único. A voz de Dulli, mais suave e pronta para entoar um blues "dulli-cizado", já cativou fãs nos projetos Twilight Singers (que, por sinal, teve Lanegan como convidado) e Backbeat Band, a parceria com Thurston Moore (Sonic Youth), Mike Mills (R.E.M.), Dave Grohl (Foo Fighters), Don Fleming (Gumball) e Dave Pirner (Soul Asylum) - juntos, eles gravaram a trilha do filme Backbeat.
Ora se alternando, ora justapostos, os vocais de Lanegan e Dulli propiciam um dos momentos mais bonitos do rock atual, com notável harmonia e um quê melancólico. É fechar os olhos e se imaginar em um bar de estrada, só você, um camarada na sua "décima saideira da noite" e o dono do bar apoiados no balcão. Experimente escutar "Sworn and Broken" (Screaming Trees) e saberá do que estamos falando. Há, ainda, destaque para "Down the Line", cover do sueco José González, o trampolim confessional em "If I Were Going" (Afghan Whigs) e outras como "Creeping Coastline of Lights", "Ressurrection Song" e "I Am In The Heavenly Way".
É claro que, para certos fãs, era necessário dar a má notícia: o Papai Noel do grunge não existe. Não dava para acreditar que, em um só show, eles cobririam todas as músicas que o pessoal desejava ouvir - leia-se mais faixas das "bandas de origem". Houve, por exemplo, certa insistência de alguns fãs por Congregation (1992), álbum por muitos tomado como bolacha mais recheada da discografia do Afghan Whigs. Mas o bis funcionou como espécie de compensação, para êxtase da ala saudosista (e majoritária) da plateia: o hino grunge "Dollar Bill", do Screaming Trees.
Com o fim do show, a impressão era mais ou menos esta: não, os Gutter Twins não vão repetir a história. Ou mudá-la. Nenhum novo capítulo do rock será rabiscado. Nenhuma nudez groupie será castigada. A vida continuará. Mas, ao assistir a tantas bandas novatas no cenário (e não é que muitas entram no bonde com dois, três anos de carreira e já querem sentar na janela?), você pode se pegar refletindo: será que a honestidade musical da dupla encontra muito páreo por aí? Porque, mais do que uma reedição do passado, é isso o que Lanegan e Dulli têm a oferecer: um grunge "fora da tomada" e com suficiente poder para te fazer sair pelas ruas de Moema, bairro que abriga o Bourbon Street, com uma sensação de ter valido a pena.