A Rolling Stone Brasil conversou com os diretores da comédia dramática com Jim Carrey no papel do golpista que namora os personagens de Rodrigo Santoro e, depois, Ewan McGregor
Gay. Nas primeiras décadas do século 20, se você não fosse um, o problema era todo seu. Um termo para definir a sensação de ser gay? Alegria. Acontece que, naquele tempo, a palavra, em inglês, significava exatamente isso: alguém contente. Pais de família podiam ser gays. Presidentes que mandavam bem no mandato? Gays. Abençoada a mãe que descobrisse ter um filho gay. Só mais tarde o termo ganhou popularidade como forma de reconhecer as pessoas com atração pelo mesmo sexo. E aí ser gay virou algo tão feio para tanta gente que, por muito tempo, esconder-se no armário era a melhor solução.
Com I Love You Phillip Morris, os diretores Glenn Ficarra e John Requa querem resgatar, ao menos um bocadinho, o sentido original da palavra. "Queríamos fazer um filme em que um gay se sentisse maravilhado por ser gay. O Segredo de Brokeback Moutain? Um ótimo filme. Mas lá as coisas eram meio, 'ai, meu Deus, eu sou gay, e agora?'", justifica Requa. Convidados da 33ª Mostra Internacional de Cinema, os dois conversaram com a reportagem do site da Rolling Stone Brasil no saguão de um hotel paulistano, na última quarta, 4.
Na comédia dramática, Jim Carrey é Steven Jay Russell, um ex-policial do Texas que abandona a vida com esposa religiosa e filha para dar um abraço no homossexual que existe dentro dele - e fazer o mesmo com os futuros namorados, Rodrigo Santoro e Ewan McGregor, o tal Phillip Morris.
Russell de fato existe, mas Requa e Ficarra só encontraram com seu cinebiografado uma vez. O motivo: ele cumpre pena perpétua no Texas depois de ser "um embaraço para o estado de Bush", como ironizam os créditos finais da produção. Não que tenhamos voltado tanto assim no tempo. O pecado de Russell, aos olhos da lei, foi levar um trambique atrás do outro no melhor estilo Prenda-me Se For Capaz. Só da prisão, Russell fugiu mais de 10 vezes. Mas foi durante o confinamento que o golpista apelidado "Houdini" conheceu o grande amor de sua vida, o doce Phillip Morris, que chegou a frequentar o set ("Steven nos fez prometer que incluiríamos e pagaríamos Phillip", explica Ficarra).
Nesse ponto, a indústria de cinema pode até ter aberto a porta do armário. Mas ainda precisa de um empurrão para escapulir de lá. O filme, que só entra em circuito comercial daqui a cinco meses (neste domingo, 8, haverá sessão na repescagem da Mostra de São Paulo), terminou de ser rodado em meados de 2008. Mas encontrar distribuidora não foi tarefa fácil. Tanto que, ao tentar angariar dinheiro, antes de iniciar as filmagens baseadas no livro-reportagem I Love You Phillip Morris: A True Story of Life, Love and Prison Breaks, de Steve McVicker, chegou-se a falar em transformar Phillip Morris numa personagem feminina.
O papo nunca foi sério, mas só a menção prova que trazer a homossexualidade ao cinema ainda é pisar em ovos com salto 15. Fala-se, inclusive, de censura (interações mais tórridas entre os personagens de Carrey e Santoro, por exemplo, não entraram no resultado final). A dupla de cineastas é reticente: "Não, não", eles dizem juntos, após troca rápida de olhares. Requa joga a culpa na necessidade de reduzir o tempo de fita: "Santoro não foi o único chateado. A verdade é que tivemos que cortar muitas cenas, de todos os tipos".
Apesar de pequeno, o papel de Santoro é decisivo para a trama. Como os diretores chegaram ao ator brasileiro que anda se engraçando com Hollywood? Glenn o viu em Simplesmente Amor com a esposa (sim, os dois cineastas são muito bem casados, obrigado). Depois ouviram os elogios efusivos do autoral David Mamet, que dirigiu Santoro em Cinturão Vermelho. Requa trouxe o óbvio à conversa: "Pensei, 'este cara é extremamente bonito!'".
Ainda hoje, fazer um filme como I Love You Phillip Morris exige certa dose de coragem. Hollywood pode ser liberal nos bastidores. Fora deles, a vida complica. Carrey trabalhou praticamente de graça (...Phillip Morris custou menos de US$ 20 milhões, quantia não muito distante do que o ator costuma receber por filme). As parceiras dele, no cinema, vão de Zooey Deschanel (Sim, Senhor) a Jennifer Aniston (Todo Poderoso). Já McGregor "pegou" Nicole Kidman (Moulin Rouge - Amor em Vermelho) e Scarlett Johansson (A Ilha). Estaria o mundo preparado para vê-los dormindo de conchinha nas telas?
"Nos Estados Unidos vai ser mais chocante", diz Ficarra em tom confessional e, ao mesmo tempo, entretido. Em seguida, ele lembra de Fazendo Amor (1982), pioneiro do mainstream na abordagem da homossexualidade sem "filtros". "A carreira de Michael Ontkean e Harry Hamlin nunca voltou a ser a mesma. Eles arruinaram a carreira."
Para Requa, gays, até pouco tempo atrás, só apareciam em papéis cômicos, que o lembravam "os homens-de-cara-preta" (alusão a indivíduos que pintavam a cara de preto para representar um negro necessariamente estereotipado, em shows bem populares no século 19). Os diretores, colegas no Pratt Institute, onde estudaram cinema, tiveram um professor homossexual e, nesta entrevista, dedicaram o filme a ele.
I Love You Phillip Morris vai no mesmo caminho de Será Que Ele É?, em que Kevin Kline descobre que sim, ele é, mas demora um tempo para ficar numa boa com a descoberta. Eventualmente, também Hollywood pode expulsar do armário o que há de gay dentro dela. No velho e novo sentido da palavra.
I Love You Phillip Morris na Mostra de SP
8 de novembro, às 14h
Cine Bombril - Av. Paulista, 2073
Informações: 3285-3696