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Ícone perdido da cultura black brasileira, Nelson Triunfo enfim celebra o merecido reconhecimento

Carlos Juliano Barros Publicado em 13/08/2013, às 12h17 - Atualizado às 12h19

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<b>O SOM DA RUA</b> - Arquivo Pessoal; Caue Angeli
<b>O SOM DA RUA</b> - Arquivo Pessoal; Caue Angeli

Em um ensolarado fim de tarde de maio, Nelson Triunfo está de bermuda na laje da casa que construiu com as próprias mãos, na favela do Tiquatira, zona leste de São Paulo. Munido de uma mangueira, o cineasta Caue Angeli tenta fazer a água penetrar o emaranhado de fios que compõem a mais célebre cabeleira black power do Brasil, intacta desde 1973. “É minha marca registrada. Nunca mais cortei. Nem precisa: quando penteio, o cabelo quebra”, explica Triunfo, ou “Nelsão”, com a voz potente e carregada de sotaque pernambucano, do alto de seu 1,90 metro de altura.

Estamos em meio à gravação da última cena do documentário Triunfo, o filme que promete fazer justiça ao legado de Nelson Gonçalves Campos Filho. A obra, com previsão de lançamento para o segundo semestre, recupera a infância dele vivida em Triunfo, município do sertão pernambucano (que virou “sobrenome” de Nelson e dá título ao filme), passa pelos bailes da Chic Show, no Palmeiras, entre as décadas de 70 e 80, e chega até a consolidação da cultura hip-hop. “O documentário bebe do Faça a Coisa Certa, do Spike Lee: as cores, a estética, as pessoas ouvindo rádio”, explica Caue Angeli, que dirige o longa-metragem em parceria com o pai, Hernani Ramos.

A filmagem na laje remonta a um incidente ocorrido durante as tempestades de verão de 1985, o pior ano da vida de Triunfo. “Deu uma enchente aqui no bairro e eu nadei em quase 2 metros de altura. Quase morri. Precisei de mais de seis meses para me recuperar”, relembra. Até esse episódio, ele comandava uma revolução cultural na esquina das ruas 24 de Maio e Dom José de Barros, no centro de São Paulo. Ao som do boombox, toca-fitas que marcou época nos anos de 80, atraía multidões ao dançar clássicos do soul e do funk, ocupando os espaços públicos com a vanguarda da cultura black.

Em tempos de ditadura, a visibilidade de Nelsão era uma afronta e tanto. “Imagina eu com esse tamanho, com esse cabelão, no meio dos militares, como é que eles me viam?”, indaga, exaltado. “Fui preso várias vezes porque sabiam que eu não tinha carteira assinada. Me levavam em cana para averiguação. Essas marcas na minha canela, isso foi chute de coturno”, afirma, exibindo as cicatrizes que coleciona nas pernas, para comprovar a autenticidade da narrativa.

“Muito office boy que passava na rua 24 de Maio parou de trabalhar e virou b-boy [dançarino de break]. Eu fui um deles”, conta KL Jay, do Racionais MC’s, presente no documentário. O rapper Thaíde também credita sua entrada no universo do hip-hop ao contato com o mestre. “Ver o Nelsão foi surreal”, rememora. “Antes de se falar de hip-hop, a gente já o assistia na TV, dançando soul. Ele recepcionou James Brown no aeroporto e participou da abertura da novela Partido Alto (1984), da Globo, com os passistas da Mangueira”, acrescenta. No documentário, Thaíde faz o papel do locutor de um programa de rádio fictício que conta a história de Nelsão.

As apresentações ao ar livre na rua 24 de Maio seduziram KL Jay e Thaíde e abriram alas para o surgimento do break. O movimento da dança de rua migraria para as imediações da estação de metrô São Bento. Mas a mudança de endereço não tirou Nelson Triunfo de cena. Em 1994, ele fundou a Casa do Hip-Hop, em Diadema, no ABC Paulista – centro de educação popular para jovens em situação de vulnerabilidade social, referência na formação de novos talentos do rap, do grafite e da dança.

“Talvez eu seja o mais velho do hip-hop no Brasil em idade, mas talvez seja o mais novo pela forma de pensar”, filosofa Nelsão, que em outubro completa 59 anos. “Muitos b-boys tradicionais falavam mal do pessoal com cabelo pintado, piercing. Fui eu que defendi essa nova geração”, exemplifica. “Quando apareceram o Emicida, o Projota, eu falei para alguns rappers mais velhos: ‘A vida é uma evolução. Essa é a nova safra’.”

BNegão foi outro que se impressionou com Nelsão. Em um show na extinta casa de shows Olympia, em São Paulo, estavam no palco Funkadelic e Maceo Parker, acompanhados da banda de James Brown. Os seguranças da casa proibiam as pessoas de dançar. “Até que subiu no palco uma gordona, que cantava com o James Brown, para fazer um som da Aretha Franklin”, BNegão relembra. “Quando ela começou, o Nelson deu um salto mortal muito louco, com aquela cabeleira, e aí vieram umas 40 pessoas atrás dele que estavam esperando para dançar – eu inclusive! Depois, foram mais 200, 500. Ele comandou a rebelião da dança e o show cresceu!”


Até o fim deste ano, além do lançamento do documentário, também estão previstos a publicação da biografia Nelson Triunfo – Do Sertão ao Hip-Hop, de Gilberto Yoshinaga, e o lançamento de um CD com letras escritas por Nelsão. “O momento é especial, apenas com uma exceção: está faltando o mónei”, ele brinca, movimentando os dedos indicador e polegar da mão direita. “Na hora em que chegar, vou dar um salto mortal para comemorar”.

No sofá da sala da modesta casa onde mora, com um violão em mãos, Nelson arranha acordes e canta versos de uma de suas composições. Curiosamente, ele se diz rotulado pela figura do revolucionário dançarino de rua que construiu a duras penas. “Acho que a dança me fodeu, cara!”, diz, abandonando o violão e mergulhando no sofá. “A dança virou um carimbo. Já fiz trilha sonora de um bocado de coisa por aí, estou gravando um CD, envolvido com movimentos sociais, e só veem a dança”, desabafa. “As pessoas têm que saber que meu joelho parece um cupim de tanto buraco que tem dentro.”

“Todo o reconhecimento que o Nelsão teve veio da postura bandeirante dele, de sair para a rua em uma época de ditadura militar, com aquele black power enorme e roupas coloridas, para mostrar para a gente uma onda que chegava”, analisa Thaíde. “Mas acho que falta reconhecimento, sim. Ainda são poucas as homenagens a ele.”