Com direção de David Fincher e protagonizada por Kevin Spacey, a produção é a aposta do serviço de streaming para dar partida a projetos originais com qualidade de TV
O texto abaixo é baseado nos dois primeiros da série, que foram exibidos para a imprensa.
A Netflix tem muitas fichas apostadas em House of Cards, sua segunda produção original a ver a luz do dia. A levemente esquisita Lilyhammer, parceria entre Estados Unidos e Noruega, cumpriu sua função de abrir o mercado nórdico para o serviço de streaming e teve alguma repercussão. Agora, com um trabalho que usa da expertise de uma equipe norte-americana reconhecida internacionalmente, com David Fincher (A Rede Social, Clube da Luta) dirigindo os dois primeiros episódios e Kevin Spacey (Beleza Americana) protagonizando, a empresa realmente aposta em seu potencial para produções originais e abre caminho para suas próximas séries, Orange is the New Black, Hemlock Grove e a repescagem de Arrested Development. A estreia dela é global, simultânea e completa no dia 1º de fevereiro, esta sexta: a primeira temporada inteira, com 13 capítulos, estará disponível de uma vez em todos os países em que a Netflix está presente. No Brasil, por causa da diferença de fuso, essa simultaneidade quer dizer que a estreia acontece às 6h.
A premissa é de que Frank Underwood (Spacey), um parlamentar da Carolina do Sul, ajudou o recém-eleito novo presidente dos Estados Unidos a conseguir o cargo e, “em troca”, lhe foi prometido que ele seria o novo secretário de Estado. Às vésperas do anúncio do novo ocupante do cargo, a Casa Branca opta por mantê-lo no Congresso, defendendo os interesses do partido. Então, Underwood, um homem prático e controlador, quer sangue. Não literal (pelo menos nos dois primeiros episódios), mas quer bastante sangue no sentido figurado, se lançando em uma missão de acabar com o presidente. Ele conta, primariamente, com o apoio de sua esposa Claire (Robin Wright), que carrega as mesmas características de eficiência. House of Cards é uma adaptação norte-americana (em larga escala, já que as estruturas políticas são muito diferentes) de uma série homônima da BBC, que nos anos 90 levou à TV os livros de Michael Dobbs, um assessor da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher.
A série é recreativa. Mas ao contrário de quase tudo que é produzido para a internet, não é um programa de baixo orçamento. A qualidade e a ambição são de TV – e a cabo. A primeira coisa que deve ser dita sobre ela é que a base da narrativa é a quebra da quarta parede. Ao assistir ao piloto, leva algum tempo até a mente se acostumar com a cumplicidade que o político protagonista da trama tem com o público. Tudo que ele pensa, fala e pretende fazer é compartilhado de forma shakesperiana com a câmera, para a qual ele olha diretamente e com a qual interage (recurso já existente na versão original). As explicações podem ser excessivas, por vezes, como um narrador desmedido, deixando bem pouco para a gente concluir por conta própria. Por exemplo, ele nos avisa que em uma reunião vindoura fará uma proposta e prevê a reação da outra parte. Quando tudo acontece conforme ele descreveu, há uma piscadela desnecessária para a câmera, já que a piada estava feita, não precisava de reforço.
A estratégia, talvez, seja fazer uma série política um pouco mais pop e abrangente. The West Wing foi um grande sucesso, Boss colecionou louvores em sua curta vida e Veep, que retornará para a HBO para uma segunda temporada, continua extremamente elogiada. Porém, séries políticas tendem a ter um público mais restrito. Dificilmente acontecerá de o maior salário da TV ser de um ator de uma atração com essa temática ou de alguma delas quebrar recordes de audiência. Somando a isso as mil particularidades da política norte-americana, dá para entender a razão pela qual a série pega leve nos jargões e substitui um potencial diálogo igualmente pedante e genial que Aaron Sorkin colocaria em The West Wing por algo próximo de “Secretária, limpe minha agenda pelo resto do dia”, uma frase típica de personagens de poder.
Uma das personagens decisivas na trama é a de Kate Mara, irmã de Rooney Mara, que Fincher dirigiu em Millenium – Os Homens Que Não Amavam as Mulheres. Mara vive a jornalista Zoe Barnes. Como a maioria das jornalistas que ganham destaque na TV e no cinema, ela é ambiciosa, charmosa e segue uma ética duvidosa. Desesperada por reconhecimento no jornal de Washington em que trabalha, faz um acordo de cooperação com Underwood criando uma simbiose questionável, mas saída diretamente das páginas de livros que elucubram sobre quarto poder. Ele planta as histórias que precisa ver na mídia (as que já aconteceram e as que se tornarão verdade depois que estiverem impressas no jornal) para se beneficiar e é favorecida pelo fato de ter a informação exclusiva. Underwood quer controlar a opinião pública da mesma forma que tenta controlar a opinião do espectador quando se dirige a ele e o instrui a seguir a cena da forma como ele determina.
A lógica entre política-imprensa e a manipulação são simples e uma segunda análise faz pensar que tendem para o lado da ingenuidade. Apenas com seus anos observando o funcionamento do alto poder norte-americano e alguma manipulação, em dois episódios Underwood consegue derrubar de maneira irrecuperável pelo menos dois políticos com uma facilidade que espanta, mesmo que estivéssemos diante do menos misericordioso dos anti-heróis diabólicos.
A Netflix nadou contra a maré das webséries, que tendem à comédia simplista e fácil e ao baixo orçamento. Ousou ao escolher a Casa Branca e a dramédia. Porém, não foi tão longe assim em seu arrojo, já que a ideia aqui é fazer história, atrair atenção e assinantes, e não virar o hit de nicho que foi a outra aposta deles, Arrested Development, em seus anos na TV. Vale a maratona no fim de semana. Mara, Spacey e Wright estão todos bem em seus papeis e há algumas características tipicamente Finchianas escondidas nos primeiros episódios que certamente agradarão aos fãs do diretor.