Trunfo traz cartas da artista narradas por Cat Power para ajudar a contar a história
Janis: Little Girl Blue, dirigido por Amy Berg, tem cenas históricas e performances arrasadoras de Janis Joplin, mas ele não é necessariamente focado em música. O documentário investiga outros aspectos da vida da intérprete, como as relações pessoais, as frustrações e as motivações que tomaram conta dos intensos 27 anos de vida da artista. O longa traz entrevistas com parentes, biógrafos e todos os músicos que foram primordiais na evolução da cantora. Apesar de reforçar muito sobre o que sabemos sobre ela, o filme também desmonta algumas concepções. Janis aparece multidimensional: o final dela foi trágico, mas a vida, em si, teve momentos de grande brilho. Janis também era bem-humorada e uma pessoa moderna, sempre enxergando adiante.
A diretora narra a trajetória de Janis de uma forma linear e tem um grande trunfo para unir as pontas soltas: as cartas que ela enviou para os pais, irmãos, amigos e namorados. Elas são narradas pela cantora Cat Power em um trabalho de amor: grande fã de Janis, Cat Power investe nas emoções e acrescenta credibilidade às palavras de Janis, que tentava se justificar aos pais por ter resolvido virar cantora na Costa Oeste em vez de ganhar a vida como professora na provinciana Port Arthur, Texas, onde nasceu e foi criada. Janis enviava recortes de jornal contendo relatos dos triunfos dela para esfregar na cara deles. É um pouco triste, contudo, ver como ela inventava para os amigos e irmãos que tinha uma vida feliz e equilibrada, sendo que hoje sabemos que não era bem assim.
É importante também comparar Janis: Little Girl Blue com o recente Amy, dirigido por Asif Kapadia. Janis Joplin e Amy Winehouse eram duas intérpretes de imenso talento que cantavam as tristezas e morreram depois de muitos excessos, justamente com 27 anos. Mas existe uma grande diferença entre elas e os documentários deixam claro. Amy recebeu um tratamento vil da imprensa sensacionalista britânica, que transformou a vida dela em um reality show. Já Janis, sempre articulada, adorava os holofotes e gostava de falar. Um dos maiores amigos dela, inclusive, era o apresentador de talk show Dick Cavett. Janis Joplin sempre podia se abrir no programa dele.
Depois de relatar os primórdios de Janis no Texas, o filme começa a ganhar força quando enfoca a primeira viagem dela para São Francisco, que terminou em rejeição artística e confusão sexual. Mas foi importante para que Janis investigasse o que acontecia musicalmente na cidade. Louca por Bob Dylan, ela a princípio queria ser uma cantora folk purista, sem muita ambição comercial. Logo viu que o que estava funcionando mesmo era o rock lisérgico. Depois de fazer amizade com o pessoal da Big Brother and the Holding Company, foi convidada para cantar com eles. A essa altura, já era um espírito livre: cheia de estilo, a antiga garota geek do Texas se reinventou usando peles, gigantescos óculos cor de rosa, calça boca de sino e toneladas de anéis. Quando Janis ouviu Otis Redding, descobriu um novo patamar artístico – uma das metas delas era bater o mestre da soul music em intensidade emocional.
Quando o assunto era música, Janis nunca foi “doidona”. Era focada, ambiciosa e profissional. Um dos aspectos mais polêmicos da carreira de Janis foi a relação dela com o Big Brother. Janis era simplesmente sobrenatural, mas os músicos do Big Brother era apenas medianos. Em algum momento ela teria que deixar “os irmãos” e toda aquela coisa hippie para trás. Havia se tornado grande demais para os modestos amigos de São Francisco. Uma prova de como os pontos de vista eram conflitantes fica evidente quando o filme mostra a lendária participação da banda no Monterey Pop Festival, em junho de 1967. Os integrantes não queriam ser gravados em vídeo, mas Janis bateu o pé exigiu a presença das câmeras. Foi a devastadora performance dela cantando “Ball and Chain” que fez com que o mundo tomasse nota deles. Ela estava certa desde o começo.
Janis cometeu alguns erros, mas isso ocorreu mais por uma falta de temor para correr riscos e evoluir do que por desleixo ou despreparo. Após sair do Big Brother, ela fundou a Kozmic Blues Band, que tinha um naipe de metais e era mais soul e menos rock. O álbum que gravaram (Got Dem Ol' Kozmic Blues Again Mama!) e as turnês resultantes foram um grande sucesso, mas a crítica achou que Janis estava apenas “imitando Aretha Franklin”. O filme tem uma seqüência maravilhosa em que é revelada a dedicação de Janis para com a arte que fazia. Ela aparece gravando “Summertime” nos estúdios da Columbia Records e, com enorme paciência e zelo, repete os vários takes e segue alterando a música até que o resultado seja o melhor possível. No palco, ela era pura energia e improviso, mas no ambiente controlado do estúdio, não deixava nada ao acaso.
A relação de Janis com as drogas era complexa. Ela descobriu os aditivos químicos na primeira vez que foi a São Francisco. Para a cantora, as drogas não funcionavam como estimulo criativo no estúdio ou então como uma ferramenta para “dar um gás” no palco. Ela as usava para aliviar a depressão e a solidão, que eram recorrentes na vida dela. A morte de Janis, em 4 de outubro de 1970, devido a uma dose de heroína, pode se comparada a de um boxeador no ringue, ou um corredor a 300 quilômetros por hora. Algo trágico, mas que estava fadado a acontecer.
Uma pena, já que Janis não tinha nenhuma intenção de ser apenas queimar intensamente e depois desaparecer. Nos últimos tempos, estava aos poucos largando as drogas – a dose fatal que a acabou matando foi um acidente infeliz. Depois de anos sendo cortejada pelo produtor Paul Rothchild (do The Doors), ela gravou com ele as canções do que se tornaria o álbum póstumo Pearl. O LP, que tinha o acompanhamento da Full Tilt Boogie Band, se revelou como o ápice artístico e comercial de Janis, e o single “Me and Bobby McGee”, canção country de Kris Kristofferson, chegou ao primeiro lugar das paradas enquanto o mundo chorava a morte dela. Janis ainda tinha muito a oferecer como artista e pessoa.