Pela terceira vez seguida, o rapper mineiro lança um álbum no dia 13 de março
No camarim de um festival de música de Belo Horizonte (o Breve Festival), Djonga recebia a reportagem para uma entrevista quando alguém, do lado de fora, bate na porta. Antes de qualquer reação do lado de dentro, a maçaneta gira e aparece a cabeça de Mano Brown, adornada de uma boina vermelha.
"Dá licença", diz a voz grave do rapper paulista. Djonga nem responde, só sorri. Levanta-se, posa para algumas fotos com Mano Brown, trocam alguma palavras difíceis de entender por conta do alto som que vem dos shows que ocorrem naquele momento no festival.
Brown está todo vestido na estica, com camiseta também vermelha, coberta por um paletó azul marinho. Tem uma corrente dourada e pesada pendurada no pescoço. Djonga, por sua vez, molecote de 24 anos, usa um boné amarelo pastel, camisa com listras na horizontal, bermuda de futebol. Mais diferentes, impossível. São duas gerações distintas, afinal.
Djonga nasceu somente três anos antes do lançamento de Sobrevivendo no Inferno, o segundo e mais importante disco do Racionais MC's. "Temos uma relação muito boa", conta Djonga, depois. "Nunca fui atrás para puxar o saco. Mas sou um fã incondicional. Ele sempre me dá conselho, alguma ideia. Eu o considero um amigo, mesmo."
Brown, com o Racionais MC's, abriu o caminho nos anos 1990 para algumas ondas de rappers virem e surfarem na sequência. Já Djonga é quem está na crista da onda mais recente. Faz parte de uma safra excelente de nomes do rap, mais ou menos integrantes de uma mesma geração, formada por B.K., Fabrício FBC, Don L, Nego Gallo e, claro, Baco Exu do Blues.
No momento, o mineiro está realmente no centro da luz dos holofotes. É o cara cujo som você deveria parar tudo o que está fazendo para ouvir neste instante. Dele vem Ladrão, um novo álbum, com dez faixas inéditas, já forte candidato às listas de melhores do ano de 2019, mesmo ainda em março.
Aliás, sim, estamos em março. Esta quarta é dia 13. Djonga passa mais um 13 de março com um novo álbum lançado. E ele garante, realmente, que nada disso foi planejado. "Aconteceu", diz o rapper, em entrevista à Rolling Stone Brasil.
Ele afirma não ser tão supersticioso, de qualquer forma. Na virada de 2018 para 2019, contudo, ele percebeu que o álbum estava próximo de estar pronto. "Eu não durmo, cara. Durmo em lugares improváveis e tal, no avião, no carro. E quando não consigo dormir, eu escrevo. Fazer turnê também me faz viver muita coisa", ele avalia. Normalmente, Djonga faz 14 ou 15 shows por mês.
Esse é um álbum mais sério. E Djonga admite isso. "É mais sério porque reflete tudo aquilo que a gente tá vivendo. O final do ano passado foi conturbado. Veja quantas coisas aconteceram? Brumadinho [cidade do interior de Minas Gerais que foi afetada pelo desastre causado rompimento da barragem da Vale S.A.]... Foi nessa atmosfera que eu escrevi o disco"
Bom, lá vamos nós tratar um novo álbum de Gustavo Pereira Marques, artista ainda de 24 anos (ele comemora o 25º aniversário em 4 de julho). Em 2017, veio o estonteante Heresia, no ano seguinte, barreiras se dissolveram com O Menino Que Queria Ser Deus.
Lançado pelo selo dele Ceia Ent, Ladrão tem dez músicas, nove delas inéditas e algumas delas com parcerias, como é o caso de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (uma referência ao cineasta Glauber Rocha), com Filipe Ret; "Tipo", com MC Kaio; e "Voz", com Doug Now & Chris.
A única regravação é linda, só voz, sem instrumento. Trata-se de um mix entre "Moleque Atrevido", de Jorge Aragão, com rimas criadas por Djonga, com o nome de "Mlk 4tr3v1d0".
O rapper se propõe a fazer um resgate. De relembrar origens. Não que sua obra não fosse autobiográfica antes, porque ela é (e muito!), mas ele trouxe rimas ainda mais para próximo de si.
O mineiro abre o disco dessa forma. Em "Hat-Trick", primeira música álbum, ele recita: "Desde pequeno geral te aponta o dedo / No olhar da madame eu consigo sentir o medo / Você cresce achando que é pior que eles / Irmão quem te roubou te chama de ladrão desde cedo / Ladrão / Então peguemos de volta o que nos foi tirado".
Ali, ele desenha o conceito, na sétima música, ele deixa tudo bem claro:
"Esse disco é sobre resgate / Pra que não haja mais resquício / Na sua mente que te faça esquecer / Que você é dono do agora mas o antes é mais importante que isso", ele canta em "Bença".
No Instagram, ao apresentar a capa de Ladrão, Djonga faz um depoimento emocionante, também para explicar o que significa esse "resgate" e o que é "ser ladrão".
"Quando eu era criança, andava na rua e me sentia ladrão mesmo quando nunca tinha roubado. As pessoas olhavam com medo. Quando cresci mais um pouco, roubei pra ter e pra me sentir melhor, me sentir f...", escreve ele.
O texto segue: "O tempo passou e eu entendi o tipo de ladrão que eu devia ser. Esse que busca e traz de volta pras minhas e pros meus. Preparem-se pra ver meu melhor. Eu juro que eu dei meu melhor. E dessa vez eu tô falando sério. Quando eu disse que queria ser Deus, eu não sabia a responsa que estava chamando pra mim. Quando eu entendi, percebi o que eu devia fazer. Aí eu fui lá e fiz o que eu sempre fiz: roubei, roubei e trouxe de volta!"
No texto, ele cita "quando eu disse que queria ser Deus", em referência ao disco O Menino Que Queria Ser Deus. Parece que uma chavinha virou na cabeça de Djonga quando ele mirou alto. E fez com que Ladrão deixasse as nuvens e se encaixesse em um contexto mais pé no chão.
Em vez de buscar a entidade divina, seja ela qual for, Djonga se percebe mortal, humano e negro. "Olho corpos negros no chão, me sinto olhando o espelho", ele recita em "Falção", última canção de Ladrão. Na mesma canção, contudo, ele entende sua missão. "Que corpos negros nunca mais se manchem de vermelho", ele rima. E termina assim: "Vamos mudar o mundo, baby / Quero te dar o mundo, baby".
O conceito de Ladrão vem dessa ideia do Robin Hood, do sujeito que rouba dos ricos para dar aos pobres. Para Djonga, ele traz para o "meu povo", como ele diz. Djonga ainda mora no mesmo bairro de São Lucas, em Belo Horizonte. "Minha família mora toda em três ruas aqui", ele conta.
"Sempre fui um cara que agrega as pessoas", ele conta. Suas festas de aniversário, quando jovem, uniam tribos do rap, do samba, do funk, do pagode. "Quis agregar, mesmo. Abri meu estúdio e fortaleci uma galera. Tem gente que elogia e tal, mas para mim é natural, fui educado assim."
"Me chamam de ladrão desde pequeno. A [vereadora] Marielle [Franco], o [ex-presidente] Lula… Todo mundo é ladrão. Tudo o que a gente faz se ser ladrão? Então, beleza. Somos ladrão, mesmo. Com tudo o que a palavra traz de bom também", teoriza Djonga.
A verdade é que Djonga faz da improbabilidade a sua força. Força improvável no rap, ele galgou espaço na cena mineira e, hoje, está no topo. Não que ele se sinta dessa forma, quando o disco ainda é um projeto embrionário. "Na verdade, eu sou bem inseguro no começo do processo", ele diz.
"Tem uma rapaziada que faz uma 70 músicas ou participações por ano. Eu acho louco. Tenho inveja, até. Não sei se conseguiria escrever tanta parada."
"Não imaginava lançar um disco agora", ele admite, "mas eu precisava continuar falando com o meu público. Na música pop, e eu coloco o rap como música pop, é importante manter uma comunicação constante. É uma dinâmica acelerada demais. Então, temos que sempre estar trabalhando."
Duas semanas atrás, conta Djonga, Ladrão ficou pronto. Faltava tão pouco para o 13 de março que lançá-lo na mesma data dos antecessores fez sentido. "Eu não sei escrever algo e guardar para depois", ele admite. "Eu falo: 'vou sentar e escrever a letra mais f... ' E só levanto quando estiver terminado."
Ladrão tem semelhanças com os outros álbuns de Djonga, principalmente quando o assunto está nos instrumentais do disco. Djonga é um defensor do "rap sem banda", como ele diz, antes de garantir que isso "não quer dizer que ele não possa fazer um disco com banda em breve, o próximo, sei lá."
De novo, CoyoteBeats trabalha nas batidas. "Temos uma ligação muito boa", explica o rapper sobre o produtor. "Eu ligo para ele e falo algo como: Aê, Coyote, queria uma batida que seja como uma nuvem. E ele faz. A gente se entende muito bem."
Dessa vez, contudo, Coyote teve um coprodutor ao seu lado. Thiago Braga, que toca com o Pato Fu. Numa coincidência danada, Braga foi responsável por aproximar Djonga e Ladrão ainda mais das origens do rapper.
"Minha avó veio de Teófilo Otoni", contextualiza Djonga, sobre a cidade da matriarca da família, vinda do norte de Minas Gerais, antes de explicar a relação de Braga com o disco. "E ela veio para cá para tentar a sorte com o meu avô. Mas meu avô morreu cedo e ela tinha 20 anos e três filhas para criar. Foi trabalhar na casa de uma mulher e morou no cômodo de cima, que tinha um banheiro a céu aberto. Ali ela educou minha mãe, minhas tias."
Uma observação: parte dessa história é contada em "Bença", uma das melhores do disco. Mas Djonga segue:
"Hoje, minha avó mora na casa de baixo. Mas, em cima, o Thiago Braga, que é marido da minha prima, montou um estúdio. Eu decidi que queria gravar ali."
Todo a história de "resgate", martelada por Djonga ao longo da entrevista, se escancara ali. "Era isso. Queria essa atmosfera para o meu disco. Gravei um álbum na casa da minha avó. Onde aconteceu a origem da minha família. Tem muita carga pessoal."
O disco chegou às plataformas nesta quarta-feira, 15, distribuído pela OneRPM.
Ouça 'Ladrão', o novo disco do Djonga, no player abaixo: