“Ou o mundo se brasilifica, ou se tornará nazista”, diz o compositor durante apresentação marcada pelo clima festivo
No show deste sábado, 28, o segundo dos três que o veterano compositor e cantor Jorge Mautner, 73, está fazendo para lançar a caixa Três Tons, que traz remasterizados os LPs Para Iluminar a Cidade (1972), Jorge Mautner (1974) e Mil e Uma Noites de Bagdá (1976), o clima era festivo, com o teatro Paulo Autran no Sesc Pinheiros totalmente tomado. Talvez porque na tarde deste mesmo dia, este mesmo público tenha suportado o sufoco que foi o jogo do Brasil contra o Chile na Copa do Mundo. E, embora o sempre falante Mautner não ter feito nenhuma referência ao evento, era inquestionável que a vitória, mesmo que após a disputa de pênaltis, tenha ajudado a alargar sorrisos espalhados pelo teatro.
Acompanhado de uma banda com Bem Gil na guitarra, Bruno Di Lullo no baixo, Marcelo Cardoso no violão e Rafael Rocha na bateria, Mautner (violino e voz) escolheu um repertório baseado nos já citados discos. Deu início com “Sapo Cururu” (Mautner) e depois apresentou a banda. Já ia começar a falar mais, mas se autocensurou: “Preciso parar, se eu começar agora não paro mais”, brincou. Anunciou a segunda, faixa, lembrando que foi inicialmente gravada por Wanderlea no disco Maravilhosa de 1972. Foi a deixa para fazer “Quero ser Locomotiva”. Em seguida, anunciou “Guzzy Muzzy”, dizendo que a música têm umas palavras estranhas em inglês que seria explicada na execução e ele mesmo caçoou da sua fala.
O parceiro Nelson Jacobina, falecido em maio de 2012, foi o tema da próxima conversa entre Mautner e o público. O músico, emocionado, contou que o parceiro só suportava o sofrimento causado pelo câncer quando estava no palco e que antes de sua morte fizeram um show juntos com bis de uma hora. Depois da homenagem tocou “Herói da Estrelas” (parceria de Mautner e Jacobina) e emendou discurso citando poetas e profetas como Castro Alves, Maiakovski e Jesus de Nazaré.
Como show de Mautner sem longas falas seria um show incompleto, desta vez o compositor falou de sua ligação com o candomblé, de “sua mãe preta da primeira infância” e do amálgama da miscigenação brasileira, citando José Bonifácio de Andrade (“Diferentes são os povos e culturas, nós somos o amálgama, esse amálgama difícil de ser conseguido”). E emendou: “Além da multidiversidade, além do multiculturalismo, o mundo do século 21 precisa do Brasil. O mundo não bebe, não come e não respira sem o Brasil. Ou o mundo se ‘brasilifica’ ou se tornará nazista.” E tocou “Babá de Babá” (Waldemar Silva e A. Castilho) que trata do tema do candomblé.
Depois destas cinco músicas, com 30 minutos de show, Mautner chamou ao palco Caetano Veloso, que a partir daí ficaria até o fim. Caetano assumiu e fez três canções iniciais em voz e violão. A princípio disse que a primeira que faria, já havia cantado muitas vezes na vida, em situações diferentes e sempre com tristeza profunda. Depois passou a cantá-la com muito orgulho ao lado de duas pessoas cruciais na sua formação, João Gilberto e Gilberto Gil, e, ao cantá-la ao lado de Jorge Mautner, essa música passou a ter outro sentido diferente e emendou uma versão de “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso. Continuou com “Odeio” e nos aplausos ouviu um “Caetano eu te amo” e “Caetano eu te odeio”, recebendo as manifestações com um sorriso maroto. Ainda só com voz e violão fez “Trilhos Urbanos” e “Sampa” cuja letra traz uma referência explícita a Mautner quando diz “teus deuses da chuva”, que lembra o título do livro “Deus da Chuva e da Morte” do próprio Mautner, e que justifica a presença do tema no repertório.
Com a volta da banda ao palco, e ainda sem Mautner, Caetano fez “Abraçaço” do seu último CD homônimo. Mautner retornou e fizeram, em duetos, uma série de canções, começando com “Cajuína”, de Caetano, seguida por “Manjar de Reis”, outra parceria entre Mautner e Jacobina.
Caetano, que até então pouco tinha falado, começou a relatar as circunstâncias em que conheceu Mautner em 1969, e como ficou impressionado com a primeira música de Mautner que ouviu, já que ele nem mesmo sabia que Mautner compunha. Lembrou que a música “Vampiro”, cantada em seguida, é de 1958, contemporânea de “Chega de Saudade”. E ainda disse que o “Brasil é muito maior do que a gente pensa”, se referindo a propostas musicais tão modernas e ao mesmo tempo tão diferentes. Mautner aproveitou e lembrou que Caetano gravou essa música no disco Cinema Transcedental de 1979.
Caetano Veloso distribui "abraçaços" no show de estreia do novo disco em São Paulo.
Depois de “Vampiro”, Mautner passou a falar da próxima música, referindo-se a Vinicius de Moraes e a beleza da mulher, momento em que Caetano cochichou algo no seu ouvido e daí ele se desculpou com um “eu anunciei errado”, para gargalhada geral. E se corrigiu, contando uma história de sua infância quando não ia bem nas aulas de matemática. Foi a deixa para tocarem a esfuziante “Todo Errado” (de Mautner), logo emendada com “Tarado”, parceria dele com Caetano. Nesse momento aconteceu algo inusitado: um rapaz invadiu o palco, agarrou Caetano e começou a beijá-lo, e, ao mesmo tempo, um rapaz e uma garota se levantaram, caminharam até a frente do palco e se agarraram aos beijos, como que estivessem ilustrando o tema da canção.
Depois de 1h30 de show, terminaram o set com uma versão de “Maracatu Atômico”, outra de Mautner e Jacobina. Mas o público queria mais e Mautner e Caetano foram generosos no bis, brindando o público com mais três temas: “Hino da o Carnaval Brasileiro” (de Lamartine Babo), “Sassaricando” (de Luiz Antônio e Zé Mario) e “Chiquita Bacana” (de Braguinha e Alberto Ribeiro).
O que seria um show de Mautner com participação especial de Caetano acabou, na verdade, sendo um show completo de Mautner e Caetano. Neste domingo, 29, eles fazem a última apresentação da mini-turnê comemorativa.
Jorge Mautner com participação especial de Caetano Veloso
Domingo, 29 de junho, às 18 h
Sesc Pinheiros - Rua Paes Leme, 195 - Pinheiros