De volta ao Brasil, banda manda um clássico atrás do outro no show que marca os 35 anos de carreira
Não era por falta de fôlego que a língua de estimados 17 centímetros de Gene Simmons ficava à mostra. A marca registrada do "demônio" do Kiss foi apenas um dos muitos artifícios que empolgaram as cerca de 37 mil pessoas que foram na terça, 7, à Arena Anhembi conferir o show da banda de 35 anos de carreira e mais de 80 milhões de cópias vendidas.
O grupo mostrou pique olímpico das 21h35 às 23h45, tempo suficiente para 20 canções, piruetas em cima de saltos plataforma de quase 20 centímetros, pirotecnia, labaredas de fogo, solos de bateria e guitarra, goladas de "sangue" e voos pelo palco - enfim, o de praxe em se tratando de Kiss.
Se no sábado, 4, foi a vez da massa alva conferir a maratona eletrônica do Skol Sensation - traje branco obrigatório - no mesmo Anhembi (no Pavilhão), o público da Arena vestiu, basicamente, preto. Mesmo sem lançar disco de inéditas há 10 anos, o Kiss mostrou que faz bonito com jovem e infante guarda, com muitos fãs que usavam fraldas não tem uma década atrás - e alguns que, de fato, ainda recorriam aos calções descartáveis, trazidos a tiracolo por papais e mamães ávidos por testemunhar as estripulias do grupo.
Às 21h30, rapazes da produção desencaparam os equipamentos no palco e revelaram a fileira com várias caixas de som, que em breve dariam a impressão de que o chão do Anhembi atingiu alguns graus na Escala Richter. Cinco minutos depois, uma gigantesca bandeira preta, com o nome da atração no meio, faz as vezes de cortina e ouve-se a voz de Simmons: "Você queria o melhor, você tem o melhor. A banda mais quente do mundo: Kiss!".
Como já havia sido anunciado, a maioria das faixas tocadas na noite veio de Kiss Alive, o álbum que condensa os 35 anos de estrada dos mascarados. O intensivão de hard rock começou com a porradaria de "Deuce", e os primeiros efeitos especiais foram postos em ação, com lingotes de fogo engolindo o palco. Toda vez que isso acontecia - e de fato o truque se repetiria mais de uma vez na noite - os que desembolsaram R$350 para estar um tantinho mais perto da banda, na pista VIP, sentiam o bafo quente no rosto.
Paul Stanley, que, assim como Simmons vem da formação original do Kiss (Tommy Thayer, guitarra, e Eric Singer, bateria, entraram no lugar de Ace Frehley e Peter Criss), assumiu a parte que lhe cabe e foi o frontman do espetáculo - faz jus, pois, à estrela que lhe pinta o rosto desde 1973. Só dos gritos nos quais ele louvou "São Paulo!" - com os acompanhantes "vocês são família!", "o exército do Kiss te ama!" e "sentimos saudades!" -, contou-se entre 20 e 25 vezes.
Alguns podem ter saído com a impressão de "ah, eles dizem isso para todos", mas os quatro integrantes fazem de tudo e um pouco mais para agradar a legião de fãs. Vêm à beira do palco, conversam com a plateia, fazem juras de amor eterno e, mesmo com os dois veteranos da banda próximos de virar sessentões, se movimentam para lá e para cá com fôlego de deixar muito rapazote no chinelo.
O show segue com "Strutter" e "Got To Choose", mas é em "Hotter Than Hell" ("mais quente que o inferno") que a coisa pega fogo. Hora de Simmons mostrar os dotes piromaníacos: no número mais do que esperado, o baixista empunha uma espada com a ponta em chamas, aproxima o bocão e cospe fogo. Em seguida, encrava a arma no chão, com violência. Sirenes ensurdecedoras são ativadas no fundo do palco. A multidão mal se segura de tanta excitação.
Na pista, fã-clubes, casais - em boa parte dos casos, eles têm cabelos maiores do que o das namoradas - e muita gente com cara pintada à moda Kiss. A apresentação segue com "Nothin' To Lose", "C'mon and Love Me" e "Parasite". Em "She", Stanley (com colete de brilhos e peito nu, o mais glam dos componentes da banda) deita no palco e leva a perna ao alto, como uma pin-up do rock.
Nos solos, baixista e guitarristas iam até a boca do palco e faziam coreografia, de lá para cá - na medida do possível, o movimento era espelhado pelo baterista, sentado atrás da coluna, uma verdadeira muralha da China de tambores e pratos.
Terminada a música, o "homem do espaço" Thayer (com a mesma maquiagem de Ace, o pioneiro no posto) ataca em solo: em sua primeira apresentação no Brasil, precisa, afinal, mostrar a que veio. Não consegue se livrar do fantasma de Ace, mas dá conta do recado (o músico já tocou com Black Sabbath e Alice Cooper). "Olha lá, tem cara de quem aprendeu hoje os efeitinhos!", esnoba um fã da formação original, no canto direito da pista VIP.
Antes de "Watchin'", Paul - apesar do linguão de Gene, é ele o mais linguarudo da noite, com declarações entrecortando quase todas a músicas - diz: "Nós amamos as mulheres. Gostamos dos homens. E adoramos a polícia". Eric Singer faz, agora, seu solo, com duração de aproximadamente cinco minutos. Como "novato", também precisa mostrar serviço - ele tomou o posto de "gatinho" de Criss (a maquiagem o deixou um pouco parecido com uma mistura do musical Cats e Quiabo, o Sancho Pança de Marcelo Adnet no programa da MTV 15 Minutos). Na reta final, o solo começa a acelerar. Nessa hora, a plataforma na qual se encontrava a bateria é içada - outra "surpresinha" manjada do Kiss, mas que todo mundo adora mesmo assim.
Após leva de músicas, Paul ameaça tocar "Stairway To Heaven", do Led Zeppelin, mas faz beicinho e o público fica só na vontade. Engata "Black Diamond". O triunfo vem mesmo com "Rock And Roll All Nite" - com direito a quantidade de efeitos especiais digna de um filme de George Lucas, de chuva de papel picado a espetáculo de luzes e fogo. Foi a música mais aclamada pelo público.
Pausa para retomar com o bis. Minutos depois, Paul chega empunhando uma bandeira do Brasil. Gene (que volta ao palco com o baixo do modelo "machado", que o acompanhou no primeiro show no Brasil, em 1983) faz o mesmo com outra bandeira, jogada por um fã, com o retrato do Kiss. "Shout It Out Loud" e "Lick It Up" (com solo de "Won't Get Fooled", do The Who) abrem a bateria de seis músicas na parte final do show.
Tudo funciona na lógica do mágico: o ilusionista sempre deixa a plateia de boca aberta, mesmo que esta saiba desde o início que tudo se trata de um truque. É assim com o Kiss, e a graça está aí: em querer acreditar na mágica que faz Simmons vomitar sangue e "voar" pelo palco, para subir a uma plataforma elevada e cantar "I Love It Loud" - embora o fiozinho que o suspende esteja lá para todo mundo ver.
Na sequência, Paul também ganha ato próprio, em "Love Gun". O guitarrista sobe em um cabo aéreo, que o leva para uma plataforma no meio da Arena. Momento de glória para os fãs da pista comum, que mal viram os ídolos em carne e osso (o jeito era se virar aos telões) diante da massa de pessoas.
"Detroit Rock City" fecha a noite, e os efeitos são maiores do que nunca: catavento de faíscas saindo da bateria de Eric e até fogos de artifício no céu de São Paulo. O Kiss, mais do que um show, promove um espetáculo. Não teve o óculos 3-D usado na turnê de 1999, a inovação de 1994 (quando a banda se apresentou sem a icônica maquiagem) ou o fôlego da juventude de 1983, quando tocaram no Brasil pela primeira vez. Mas ninguém lá reclamou. Para os brasileiros, os shows de 2009 ficarão como prova do que já é bem sabido por aí: o Kiss não foi uma banda que parou no tempo. O tempo, esse sim, parou para dar passagem a demônio, gato, estrela e homem espacial.
Confira o setlist do show:
1- Deuce
2- Strutter
3- Got to Choose
4- Hotter Than Hell
5- Nothin' to Loose
6- C'Mon and Love Me
7- Parasite
8- She
9- Watchin' You
10- 100.000 Years
11- Cold Gin
12- Let Me Go Rock 'n' Roll
13- Black Diamond
14- Rock & Roll All Nite
Bis
15- Shout It Out Loud
16- Lick It Up
17- I Love It Loud
18- I Was Made For Lovin' You
19- Love Gun
20- Detroit Rock City