Com quatro integrantes que se destacam como protagonistas, Living Colour fez um dos melhores shows do ano, em São Paulo
Em vários sentidos, todos eles positivos, a noite de quinta, 15, na Via Funchal, foi um cabo de guerra sem vencedores.
Quando as luzes se apagaram, às 22h15, e Corey Glover (vocal), Vernon Reid (guitarra), Doug Wimbish (baixo) e Will Calhoun (bateria) começaram a tocar seu hard rock de apetite funk em "Middle Man" (do álbum de estreia, Vivid, 1988), o domínio dos instrumentos foi tamanho que ficou fácil deixar o cineminha mental rolar: quatro partes tão boas só poderiam render soma de egos ainda mais descomunal. Cada músico, portanto, tentaria puxar a corda para seu lado, naquele jogo chato de vamos-ver-quem-chama-mais-atenção. Roteiro manjado. Desfecho óbvio. Quero meu dinheiro de volta. Certo?
Errado. Cria de Reid - um alquimista do jazz avant-garde que, para horror de muitos virtuosos, tomou gosto por riffs roqueiros nos anos 80 -, o Living Colour dispensa qualquer Bolsa Talento. Todos se garantem. E como. Acontece que a consequente dificuldade em discernir coadjuvantes e protagonistas não sinaliza uma batalha interna para ver quem manda no pedaço - e olha que deu até para desconfiar de uma cena dessas, quando o integrante seminal do LC se apresentou ao público, expressão cheia da marra e estilo que parece ter feito escola para Kanye West (paletó xadrez, jeans rasgado, chapéu de cauboi e óculos escuros vermelhos).
Não foi uma noite de casa cheia. Assim, de vista, a impressão é que, para cada 10 homens, tirava-se uma mulher - eles, do tipo que apararam as madeixas com a maturidade, mas não o espírito roqueiro; elas, tão animadas quanto os rapazes, apesar da minoria numérica. Lá e cá, alguns pais iniciavam filhos à aula de história da música que estavam prestes a assistir.
Outro sinal de que o concerto seria um cabo de guerra sem intenção real de derrubar o outro lado, e sim criar tensão central de poder: de um lado, a euforia do rock, associado mais à barulheira intuitiva do que a técnicas musicais apuradas (alguém falou Ramones?); de outro, o tal do "virtuosismo" do jazz, gênero que nasceu nas ruas mas passou a ser visto como "coisa daquela gente rica que bebe vinho caro". Novamente, em vez de se engalfinhar, os dois oponentes se descobrem cara-metade. Saldo: improvisos que, embora longos (pessoas de braço cruzado, mas admiração irradiando dos olhos feito raio laser), nada tinham de gratuitos ou fora do lugar.
Várias faixas vieram do álbum lançado em setembro, The Chair in the Doorway, o segundo desde a reforma da banda, em 2000, e quinto ao longo da carreira. Caso de "Decadance", "Behind the Sun" e "Method", canções que não deixam a dever ao pique do cancioneiro passado. Curiosidade: mesmo em alguns hits antigos, como "Glamour Boys", "Hound Dog", o cover de "Papa Was a Rolling Stone" e a performática "Elvis Is Dead", muitos da audiência não se esgoelavam a ponto de expulsar o pulmão deste corpo que não lhe pertence. A impressão era de que o Living Colour não suscita nos fãs aquela vontade de sentar na frente do computador para fazer o dever de casa e decorar todas as letras para fazer bonito na hora do show. Mais importante, desta vez, parecia sentir a música. Sentir de verdade, e não para se contentar com uma camisa de "Living Colour - Eu Fui" quando tudo acabasse.
De especulação mobiliária, peteleco inicial do soco que foi a recente crise financeira, a racismo, tópico caro à banda de rock formada só por negros (o pioneirismo fica por conta dos punkeiros do Death), os temas abordados nas letras continuam atuais. Carregam mais em significado do que em primor poético, tudo bem, com frases-manifesto bem exemplificadas em "Cult of Personality" ("Conheço sua raiva/ Conheço seus sonhos/ Já fui tudo o que você quis ser/ Sou o culto à personalidade"). Mas o prato principal fica por conta do vocal de Corey Glover, que mescla a energia de um metaleiro incansável ao vozeirão de um soul man nato.
Ora com o baixo de quatro cordas, ora com o de cinco, Wimbish deslizava pelo palco como se o piso fosse gelo. Em "Bi", a polêmica canção de Stain, ele fez mais do que isso: desceu à plateia e deu um rolê interminável, para alegria dos fãs e lamento dos seguranças. Então, o baixista se estabeleceu no meio de uma roda e, aos gritos de "chão, chão, chão", improvisou brevemente em cima do assobiável tema de O Poderoso Chefão e sobre o grito clássico de torcidas de futebol ("olê, olê, olê, olê"). Mais tarde, ensaiaria um mosh (aquele ato de pular em cima do público). Nesse sentido, a estampa de sua camisa - uma botina gigante à beira de esmagar uma avenida que poderia muito bem passar pela vizinha Paulista - dizia muito: faça estrago, e faça com estilo.
Logo mais, Calhoun - que, assim como o guitarrista Reid, passou pelo Brasil ano passado, ambos com projeto solo - ficou sozinho no palco por cerca de 15 minutos. Estourado o tempo, o recado ficou claro: não tentem fazer isto em casa. O artista fez jus à máxima "a mão é mais rápida que o olho" em solo que contou com interferências curiosas - certa hora, vocais que remetiam a gritos tribais da África; em seguida, influência eletro sublinhada pelo efeito "malabares" das baquetas ensandecidas de Will, com feixes luminosos na ponta superior.
As luzes se acenderam com mais de 2h30 de show, mas a frase-síntese da noite foi entoada bem antes, na quarta música, "Sacred Ground" (que faz menção a Chico Mendes). O Living Colour toca "para todos aqueles tentando tomar partido". Escolha seu lado. Mas, no final, o que conta é juntar forças. E fazer um concerto em que todos os lados vençam - o público, a banda e o calendário de shows paulistano, que ganhou um dos melhores exemplos de 2009 até o momento.