Rapper encerra festival tão cheio de discursos políticos com uma apresentação poderosa e sem concessões
Por cinco músicas seguidas, Kendrick Lamar não precisou falar diretamente com o público. Deixou que suas músicas falassem por si, no encerramento da última noite de Lollapalooza 2019, neste domingo, 7, no Autódromo de Interlagos. Veloz, Lamar rima como se não precisasse do ar para respirar. Dispara palavras, frases, ideias e ideais, num volume impressionante.
Na véspera do show, Kendrick Lamar não permitiu que a apresentação fosse transmitida ao vivo pela televisão brasileira. Ou seja, quem esteve no Lollapalooza viu e viveu, mas só.
Depois de estrear em Santiago, no Chile, em 29 de março, e em San Isidro, cidade da grande Buenos Aires, na Argentina, dois dias depois, em 31 de março, Lamar fez sua estreia em solo brasileiro.
“Brasil, levei uma vida para chegar até aqui”, disse ele, para delírio de quem se manteve até às 21h no Autódromo de Interlagos. “Eles vão ter que me expulsar daqui do palco, eu não quero ir embora”, brincou ele.
Lamar não é músico de mudar drasticamente seu repertório nos shows. Até porque sua performance não traz somente um artista e seu microfone. O rapper é um artesão e cada canção, com seus respetivos jogos de luz e projeções de telão é escolhidaa para contar uma narrativa. Nessa história contada por Lamar, poesia, melancolia, dias difíceis e voltas por cima se amarram por um emaranhado de linhas dadas pelo rapper e, depois, costuradas pelo mesmo.
O show se ergue sobre DAMN., disco mais recente dele, de 2017, e com o qual Lamar entrou para a história - vamos falar disso mais para frente. Do disco, veio por exemplo “D.N.A.”, faixa responsável por abrir a apresentação. Depois, outras como "ELEMENT.", "HUMBLE.", "LOVE.", "LOYALTY.", "LUST.", "PRIDE." e "XXX."
Faz sentido para o momento do rapper. Com DAMN., ele levou o maior prêmio já dado para qualquer artista do rap, do pop ou de qualquer espectro que não fosse música clássica ou jazz. O telão do show mesmo avisa: Lamar é vencedor do Pulitzer de Música com o álbum de 2017.
E ele só não tem também um Oscar porque a Academia de Artes Cinematográficas decidiu não premiar "All The Stars", da trilha sonora de Pantera Negra, o que gerou muita controvérsia. Lamar usou a faixa para encerrar a sua apresentação de forma grandiosa.
DAMN.é a consolidação de todos os aspectos de Lamar explorados até aqui. Como o personagem lutador de kung-fu que estrela os vídeos de interlúdio do show, o rapper colecionou técnicas, enquanto usava-as para expandir seus horizontes estéticos e sonoros.
DAMN.não é tão experimental na roupagem quanto o antecessor, no qual suas rimas sobrevoarem um ambiente músicas de jazz. O disco mais recente é direto, com o dedo na ferida que marcou a carreira do rapper parece ir ainda mais fundo ali.
Mas o jogo realmente mudou para Lamar em 2015, quando saiu o disco To Pimp My Buterfly, consagrado no Grammy do ano seguinte.
Ali, ele flertava com o jazz ao falar da superação em ser um artista saindo do Compton, um dos bairros mais perigosos dos Estados Unidos, na periferia de Los Angeles.
To Pimp My Butterfly, disco que rompeu as barreiras estéticas já citadas, ao trazer a aproximação com o novo jazz produzido atualmente na Costa Oeste dos Estados Unidos, entra no repertório do show para pontuar as transformações artísticas pelas quais Lamar passou.
Dele, vieram muitas como “King Kunta”, mais no início do show, e “Alright”, transformada em hino das disputas raciais dos EUA, presente nos protestos do movimento Black Lives Matter. Foi um dedo metido sem medo numa ferida da sociedade longe de cicatrizar. E, pior, com sinais de infeção. Lamar é mestre nisso.
Cinematográfico, To Pimp a Butterfly era o retrato de um país em frangalhos, levando a arte no seu limite para expressar os horrores, as agonias, tristezas e vitórias da população negra dos Estados Unidos.
Aos 31 anos, Kendrick Lamar não é uma novidade para quem está minimamente interessado no rap fora do mundo mainstream, das rádios e premiações. Vindo das ruas sujas e perigosas do Compton, em Los Angeles, Kendrick já foi K-Dot e, junto de outros nomes em ascensão do gênero, como Schoolboy Q e Ab-Soul, no grupo Black Hippy.
Era o início dos anos 2000 e o música que furava a sua bolha do hip-hop, como expoente, o movimento do rap ostentação. Artistas estrelavam videoclipes na MTV com suas correntes de ouro, rodeados de garotas desnudas e destilavam rimas sobre seus feitos e a quantidade de carrões existiam nas suas garagens.
Esse nunca foi o movimento de K-Dot. O rapaz cresceu como testemunha de uma realidade muito diferente daquela e, ao microfone, preferiu contar com rimas que poderiam ser crônicas, o que viu, viveu ou ouviu.
O rap é a expressão das ruas, dos becos que muita gente tem medo de atravessar, de bairros com altas taxas de desemprego, criminalidade e violência policial. Conforme a sociedade norte-americana encarava a verdade - uma segregação ainda viva e terrível - o rap que nunca teve medo de tocar nesse assunto ganhou destaque.
Em 2010, ele já assinava pelo nome de batismo e pelo qual é conhecido atualmente. Uma mixtape daquele ano, Overly Dedicatedcriou um burburinho em torno do californiano, mas foi com Good Kid, M.A.A.D City, o disco de 2012, que a mensagem de Lamar passou a ser ouvida por mais gente.
De Good Kid, M.A.A.D City, vieram mais canções, como “m.A.A.d. city” e “Bitch, Don’t Kill My Vibe”, todas bem recebidas pelo público.
Não existe outro artista tão premiado e bem quisto pela crítica quanto Lamar na atualidade. Além do Pulitzer de Música, sua estante ainda tem 13 estatuetas do Grammy. O ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama já se declarou fã do artista.
Kendrick Lamar está no topo e, quando você pensa que ele chegou ao limite, o rapper vindo de Compton, na periferia perigosíssima de Los Angeles, encontra um novo degrau para subir. Isso não o impede de parar alguns segundos em seu show de São Paulo para respirar e receber a ovação em silêncio.
A história do Lollapalooza é confusa com o rap. Há shows muitíssimo bem-sucedidos na história do festival no Brasil, iniciado em 2012. Naquele ano de estreia, por exemplo, os paulistanos Racionais MC's levaram muita gente para a tenda na tal se apresentavam, no mesmo horário do "headliner" Arctic Monkeys.
O mesmo aconteceu com o Planet Hemp nas duas ocasiões que a Esquadrilha da Fumaça foi escalada, em 2013 e 2016.
Por sua vez, o Lollapalooza teve suas decepções. É o caso da edição de 2016, um ano lembrado pela evasão de público durante a apresentação de Eminem, headliner da primeira noite, e de Florence & The Machine, na segunda. O rapper ainda fez um excelente show, mas o espaço diante dele, no principal palco do festival, aos poucos se esvaziou de uma forma nunca vista na história do festival no Brasil.
Kendrick Lamar sofreu do mesmo mal. Escalado como último artista do último dia de festival, ele encarou um público quente, mas não tão numeroso quanto Arctic Monkeys ou Kings of Leon, estrelas de sexta, 5, e sábado, 6, respectivamente.
Diferentemente dos outros headliners, que já vieram ao Brasil quatro e cinco vezes, Arctic Monkeys e Kings of Leon, respectivamente, essa foi a estreia de Kendrick Lamar no país. Até a turnê do Lollapalooza, o rapper não havia se apresentado na América Latina.
O show do Lollapalooza 2019 é a única chance de assistir à performance de Kendrick Lamar no Brasil. No site oficial do artista, aliás, não consta qualquer outra data de show para 2019, algo que possivelmente será atualizado.
Setlist do show Kendrick Lamar neste domingo, 7, Lollapalooza 2019:
1 - "DNA."
2 - "ELEMENT."
3 - "YAH."
4 - "King Kunta"
5 - "Big Shot"
6 - "Goosebumps"
7 - "Collard Greens"
8 - "Swimming Pools (Drank)"
9 - "Backseat Freestyle"
10 - "LOYALTY."
11 - "LUST."
12 - "Money Trees"
13 - "XXX."
14 - "m.A.A.d city"
15 - "PRIDE."
16 - "LOVE."
17 - "Bitch, Don't Kill My Vibe"
18 - "Alright"
20 - "HUMBLE."
Bis:
21 - "All the Stars"