Guelã se afasta da "MPB tradicional" e tem regravação de Maurício Pereira
Surfando nas águas da world music e pagando menos tributo à MPB e aos ritmos brasileiros, a cantora e compositora Maria Gadú afirma que a maturidade que vive atualmente, com o terceiro disco da carreira, Guelã, é mais pessoal que musical. Ela conta que os últimos quatro anos na estrada foram muito “apoteóticos” e que hoje encara as coisas de forma menos displicente. “A disciplina é uma coisa madura”, declara.
“Guelã” é um nome enigmático. Esconde um conceito?
Tem um conceito de amarração, sobretudo sonora. Primeiro, eu tenho adoração por outras identidades de fonemas, desde “Shimbalaiê”, que não tem um significado, mas ainda assim tem esse lance fonético. “Paracuti”, outra palavra que inventei, também não tem sentido algum. Eu tenho adoração por essa fonética mais “xamânica”, e isso tem a ver com Guelã.
Dá para dizer que esse disco está menos MPB?
O meu trabalho até agora tinha um quê cultural nacional, mais aterrado com os ritmos. Sempre tive essa coisa mais folclórica brasileira. Neste álbum, os timbres e a rítmica ficaram menos folclóricos, e talvez remetam mais a outros lugares, não sei. São milhares de influências. Eu tenho ouvido muita música internacional nestes últimos tempos.
O que você tem ouvido?
Eu ouço Yael Naim, uma menina israelense, e Ibeyi, que são gêmeas franco-cubanas. Nesse meio tem também Mayra Andrade. Eu passo longas temporadas com ela. A gente divide muito som e ela me apresentou muita coisa legal.
Por que você gravou “Trovoa”, a única no disco que não é de sua autoria?
Em 2011, eu e o [produtor e jornalista] Marcus Preto estávamos na casa de uma amiga comentando o show Recanto, da Gal Costa, a que tínhamos assistido e com o qual estávamos muito emocionados. Marcus me disse: “Você tem que ouvir ‘Trovoa’, do Maurício Pereira, que tem tudo a ver com o que você está vivendo agora”. Daí eu fiquei ouvindo a música umas sete horas em looping, chorando. Foi a primeira canção do disco e eu nem sabia que ia gravar naquele momento... se fosse fazer alguma coisa, “Trovoa” seria o meu ponto de partida. Ela acabou sendo gravada em um único take.
Mas para ter essa naturalidade você deve ter ensaiado muito?
Na verdade, nada foi ensaio. Apenas tive vontade de ficar cantando “Trovoa”. E a letra entrou no meu coração como uma foice. Sabe quando você não faz o exercício de decorar e a letra pertence ao seu sentimento? Eu senti que ela pertencia a tudo o que eu sentia, então não tive dificuldades de memorizar. Ela foi genuinamente entrando em mim. Quando percebi, já tinha decorado.
Você acha que é uma música que vai funcionar em palco?
Entre as pessoas que acompanham o meu trabalho, sei que muitas delas não conhecem o Maurício Pereira. Através das redes sociais, contudo, muitos têm comentado "é a minha música favorita do disco". Estou surpresa com essa aceitação e com o entendimento dos fãs.
Mais de 2 milhões de pessoas que te seguem nas redes sociais...
É muita gente né? Tenho consciência da responsabilidade do que significa isso. São mais de 2 milhões de pessoas interessadas na minha vida como um todo. Tem gente querendo saber qual é o sapato que eu está usando, os planos de interesse vão se confundindo. Da mesma forma que existe o interessa na música, também há um interessa na minha vida pessoal. Isso é um balé. Você ocupa um lugar diferente que causa curiosidade e tem muito um quê de idolatria, sei lá, porque sou gay, sou isso, sou aquilo, sou casada com uma mulher e assumo isso sem problemas.
E aquele público que fica na primeira fila e canta junto. Quem são essas pessoas?
Eu vejo que esses fãs estão sempre se renovando e, para mim, isso é muito especial. Eu acho incrível, mas, ao mesmo tempo, eu me preocupo com eles. Fico o tempo todo de olho para verificar se está tudo bem durante o show. Já vivi isso do outro lado da grade. É um público interessado em música e fico feliz com isso. Quando eu vou a shows de vários amigos meus, como Dani Black, Tulipa Ruiz e Leo Cavalcanti, percebo que eles também estão lá curtindo, compartilhando e consumindo música. Afora essa idolatria pessoal, há um interesse mútuo na minha geração e no que estamos falando. Acho isso tão bonito!
Você vê meninas copiando o seu cabelo e a sua roupa? Você muda sempre, é camaleônica.
Muitas! Copiam o cabelo, o modelo dos óculos, a correntinha, o estilo da roupa e a tatuagem. Eu acho isso um barato.
Como aconteceu o primeiro contato com o Caetano Veloso?
Enquanto eu gravava meu disco de estreia, fiz uma temporada de shows no Rio de Janeiro, no Cinemathèque, um lugar pequeníssimo para umas 100 pessoas no máximo. O Caetano esteve em uma dessas apresentações. Ele entrou no camarim e me lascou um beijo na boca, assim do nada... que situação, eu queria morrer! Sou muito fã dele. Aquele momento de ousadia implantou uma intimidade entre a gente e começamos a desenhar uma amizade linear.
E você já cantava coisas dele?
Sempre! Daquele dia em diante nós começamos a nos falar direto, nos encontrávamos com frequência e íamos a shows juntos. Então surgiu um convite para uma apresentação de inauguração de uma sala da Globosat. Eles queriam o Caetano e uma pessoa da nova geração, que estava pintando. Foi então que concretizamos um plano sonoro. O projeto acabou se tornando um show.
Você já consegue falar com a Marisa Monte sem chorar?
Isso é uma coisa que eu venho atravessando na minha vida, mas já. A Marisa é sempre muito receptiva comigo. Isso virou uma meta, me destravar. Eu estive com ela agora e foi tudo tranquilo.
Cantou muito “Bem que se Quis” em bares?
Acho que esta foi a música que menos cantei, aliás, acho que nunca cantei essa. Que loucura! Eu sei executar toda a obra da Marisa, só que eu cantava muitas coisas do disco Mais, especialmente “Diariamente” e “Alta Noite” que eu adoro.
Como o pessoal da nova geração musical chega até você?
Na verdade, nós somos todos da mesma turma. Dani Black, por exemplo, é meu amigo desde a adolescência. Tem o lance de ser da mesma turma e de se conhecer de muitos anos. Somos jovens unidos!