'Não posso ser gado do entretenimento': A partir de uma parceria com Diogo Nogueira, Mahmundi amplia estéticas, faz um disco de banda e apresenta o mundo novo dela, justamente durante o nosso mundo novo
No primeiro "fala, Pedro", dito pelo outro lado da linha, era possível perceber que Marcela Vale, a Mahmundi, sorria. "Já tá tudo bem por aí?". Ela se diverte com o atraso de 6 minutos para a entrevista, por telefone, causados pelo copo de água esparramado por um dos gatos daqui de casa justamente às 14h, hora marcada para o papo. Tempos de home office. Novos tempos. E uma nova Mahmundi, também, está do outro lado da linha.
O papo tinha um motivo, o novíssimo disco da artista carioca de 33 anos, lançado com o nome profético Mundo Novo (Universal Music), embora finalizado antes mesmo do mundo como o conhecemos entrar em estado de inanição diante do inimigo invisível e terrível, da Covid-19. Era para ser o mundo novo de Mahmundi, mas agora o álbum se confunde com o que é o nosso, coletivamente, mundo novo.
Saída de um ambiente sonoro ligado aos sintetizadores e beats, descoberta no MySpace no início dos anos 2010, Marcela tem um caminho muito próprio pelo mercado, pela indústria, pela música. A cada disco, ela entrega uma nova versão do eu-artístico dela. Para Dias Ruins, disco de 2018, era ensolarado, mas ainda muito solitário (dentro do processo de criação das músicas e gravação).
Com Mundo Novo, ela está mais acompanhada do que nunca na carreira solo. E isso fez um bem danado a ela. É um disco solar para dias sem cor. Tudo funciona bem ali, nesse universo particular, enfim, partilhado.
Tudo começou em julho de 2019, quando fez 33 anos. Quase 1 ano depois, na beira de um novo aniversário, Marcela relembra do projeto com Diogo Nogueira, materializado na música "Coisa Boa", na qual atuou como produtora, e da participação no programa Música Boa Ao Vivo, apresentado pela IZA no Multishow. Esses dois momentos ampliaram a consciência artística da Mahmundi, aliados à promessa de aniversário: apresentar a perspectiva dela a respeito da vida.
"Cada pessoa me dá um impulso diferente e eu vou aprendendo do meu jeito", conta ela, ao telefone naquele início de tarde.
Mundo Novo, o álbum, apresenta uma Mahmundi atuando como produtora e cantora. Ela não toca instrumento algum ali. Um time de músicos da cena instrumental capitaneado por Frederico Heliodoro, também produtor do disco, é responsável pelas camadas de som quente que brotam desse trabalho.
"Um disco orgânico", ela diz, "em que eu conseguisse fazer uma banda. Não toco nada. Faço produção e direção dele. Mas não era só chamar 5 músicos e pronto. A ideia era criar uma narrativa de som." Ela completa, sobre eles, em outro momento da entrevista: São [músicos] de uma cena diferente da minha, mas que gostam da mesma coisa que eu."
É a voz de Mahmundi que costura as canções em um discurso único sobre inquietações e descobertas - ora feliz, ora melancólico, como em "Vai", faixa que encerra o disco.
"É a estética da música. A gente lembra de Mahmundi [disco de 2017], de Efeito das Cores [o primeiro EP dela, de 2012], de Para Dias Ruins [2018]. Sou eu aprendendo a mexer nessas coisas, sem almoçar, pegando um computador emprestado e atravessando a cidade com ele. Eu vejo tudo isso como um projeto de arte."
Marcela também se experimenta como intérprete aqui, com algumas letras que não são suas, mas que dizem o que ela quer a respeito desse mundo novo. É o caso de "No Coração da Escuridão", de Dadi e de Jorge Mautner, "Convívio", de Paulo Nazaré, e "Vai", de Heliodoro.
Dadi, aliás, ela conheceu nos tempos em que trabalhou no Circo Voador, lendária casa de shows do Rio de Janeiro. "Depois que fui descobrir quem era ele".
Em outras canções, ela divide os créditos com Castello Branco (em "Nova TV" e "Nós de Fronte") e Felipe Lau ("Sem Medo").
"Eu tinha o desejo de cantar essas músicas", ela explica, ao citar "Convívio" e as canções de Castello, a quem ela chama de "irmão de uma realidade próxima da minha" - tanto Castello quanto Mahmundi foram criados em ambientes ligados à religião. "Nova TV", aliás, é um texto de Castello publicado no Instagram sobre o hype criado em torno do disco Jesus Is King, de Kanye West. "As pessoas querem o hype", ela evalia.
Mahmundi mostra fazer valer os versos de "Sem Medo" (Tudo é pra aprender / Tudo é pra evoluir / Tudo é pra aprender / Tudo é pra evoluir) nesse momento de vida. "Quando a gente começa a se enquadrar nas coisas, é quando o mercado tem o controle. Isso é desesperador. Vou produzindo o que é melhora para mim, isso é muito mais duradouro."
Ela segue: "O que é 'rolar'? Fui adotada, já trabalhei na praia, tive arma apontada na cabeça. Rolar é estar na capa da Rolling Stone? Isso é muito relativo. Estar em uma gravadora, estar no Rock in Rio [ela se apresentou em 2019 ao lado da banda Plutão Já Foi Planeta], isso eram sonhos da minha vida."
Mahmundi provou do hype ao ser "descoberta" e sobreviveu a ele com uma sequência de discos consistentes até a chegada de Mundo Novo, que soa como uma brisa, mesmo, de leveza, como se desse continuidade à ideia de ser feito "para dias ruins", como o álbum anterior. "Faz parte da nossa geração ser diferente, ser criativa, ser ousada", ela diz.
Ela não quer ter seu trabalho colocado dentro de uma caixa pelo mercado. E faz, desse Novo Mundo, a libertação de Mahmundi. "Eu tenho um público e trabalho para ele", ela diz, "é importante eu ter um entendimento sobre mim, sobre o meu trabalho. Cada vez que um artista tem um pensamento criativo, ele é infinito. Cabe a ele não sucumbir a esse sistema padrão. Ainda ser gado. Eu não posso ser gado do entretenimento."
Pelo contrário, Mahmundi está livre. E convida quem ouvi-la em Mundo Novo a fazer isso também. Mesmo que seja nesse novo mundo.