Exposição no Itaú Cultural traz vida e obra do mangueboy Chico Science
Maracatu misturado ao rock, hip hop e eletrônico na arte. Chapéu, óculos, roupas coloridas e sorriso largo na aparência física. Não é preciso ter conhecido Chico Science para dizer que ele transmitia uma vibração positiva - digna mesmo de alguém que costumava cantar que "segunda é um dia lindo". Pois, mais do que um indivíduo "simples, espirituoso, pé no chão e camarada", como descrevem os que eram mais próximos a ele, este foi um dos maiores nomes da música brasileira durante os anos 90. Chico pode ter deixado seus fãs em 1997, devido a um acidente de carro, mas seu trabalho permaneceu, de forma a não só inspirar outros artistas, como dar origem a uma grande exposição sobre sua vida, pela primeira vez, em São Paulo. O Itaú Cultural hospeda a partir desta quinta, 4, a Ocupação Chico Science, que abordará a trajetória do músico, contextualizando-a na realidade cultural e social de Recife, na última década do século XX.
Um dos principais objetivos do projeto organizado pelos núcleos de Música e de Comunicação do instituto foi o de focar no universo criativo no qual o cantor estava submetido, envolvendo das artes plásticas às referências musicais de Science. No ambiente, o grafite em uma das paredes, arte tão característica do universo urbano, aborda uma representação do mangue, junto às antenas comumente citadas na poética do cantor (conectando "as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop", como está escrito no manifesto Caranguejos com Cérebro). Os desenhos de chips no chão do local fazem alusão à tecnologia também sempre abordada por Science. Fotos pessoais, vestimentas, cadernos de anotações, óculos, cartazes de shows importantes na carreira de Chico Science e Nação Zumbi e credenciais de apresentações são alguns dos itens que integram a mostra, aproximando o público de materiais pessoais do cantor e dos momentos marcantes de sua vida.
Uma linha do tempo feita pelo produtor Paulo André, que, além de ser amigo de longa data da turma, acompanhou profissionalmente a banda, foi disposta em um espaço próximo ao da HQ (exposta em tamanho grande) feita pela dupla Dolores e Morales para o encarte do álbum Da Lama ao Caos (1994). O manifesto Caranguejos com Cérebro, escrito por Fred Zero Quatro, do Mundo Livre S/A, cujo trecho foi citado acima, foi também estampado em uma das paredes. Em outra parte da exposição, os visitantes poderão brincar com imãs com as palavras mais usadas nas composições de Science, podendo montar as frases que bem preferirem. Entre as fotos expostas, cedidas pela família e digitalizadas pelo Itaú Cultural, o cantor e seus companheiros aparecem em bastidores de shows (nacionais e internacionais), festas, entre outros momentos. Trechos de livros de Josué de Castro, que foi a grande referência teórica do manifesto, também estão presentes. No aspecto das artes plásticas, entre as obras figura uma escultura de Evêncio Vasconcelos (amigo de Chico), na qual personagens dialogam com a temática do espaço urbano negligenciado, com figuras mais sombrias (uma referência ao Recife Antigo). Em um canto especial, objetos como os famosos óculos, os chapéus e seus cadernos estão expostos de forma a acolher o visitante em seu universo pessoal.
Entre os itens que deram bastante trabalho para serem instalados está uma réplica do Landau de Science, que abre a Ocupação. Segundo Ana de Fátima Sousa, gerente de Comunicação do Instituto, a exibição do carro é fundamental, pois mostra a composição estética do cantor. "Ele criava um personagem não só pro palco, mas também para andar no meio da rua", explica, em entrevista ao site da Rolling Stone Brasil. No porta-malas do veículo foi colocada uma televisão que exibe clipes, documentários e trechos de shows do grupo, tudo em um ambiente que simula a Soparia, de Roger de Renor (agitador cultural de Pernambuco), que era um dos points da turma de Science. No mesmo local, será possível ouvir uma mixagem feita pelo DJ Dolores, que retoma as principais influências musicais de Chico e dos outros "mangueboys" durante a época.
Para a realização da exposição, que é a primeira deles com a temática musical, o Itaú Cultural contou com intensa colaboração dos familiares e amigos mais próximos do cantor, entre eles, Goretti França (sua irmã), Jorge du Peixe, Helder Aragão (Dolores), Hilton Lacerda (Morales) e o produtor Paulo André. Louise Tainá, a filha de Science, hoje com 18 anos, também auxiliou na escolha dos objetos que estão sendo exibidos na mostra. "Os organizadores conseguiram agregar várias pessoas que conviveram com a cena musical e que conviviam com Chico. Pessoas de outros campos da arte que influenciaram e que foram influenciadas", diz Goretti. "Acho que isso é a beleza máxima da Ocupação."
O evento também conta com uma programação paralela de debates e filmes - tudo relacionado à cena Mangue. Obras como Baile Perfumado (1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, Texas Hotel (1999), de Cláudio Assis, Josué de Castro - Cidadão do Mundo (1995), de Silvio Tendler, e Amarelo Manga (2003), de Cláudio Assis, serão exibidas. Os debates ficarão a cargo de nomes que presenciaram o movimento, como Carlos Eduardo Miranda, Fred Zero Quatro, Paulo André, e outros, além de personalidades e jornalistas internacionais. Além disso, todo o material de arquivo da exposição foi digitalizado e agrupado no site oficial da mostra, e permanecerá na rede mesmo após o termino do evento.
Diversão levada a sério
Sempre relacionado à arte de rua, Chico dançava break, arriscava no grafite e ouvia o rap que musicava a cultura hip hop. Mas o cantor não ficava só nesse estilo, caminhando por diversas sonoridades, entre elas a eletrônica, sempre compartilhando com os amigos suas descobertas. "Ele era uma pessoa que gostava de socializar o saber, compartilhava o que via de novo", diz Goretti. E justamente essa sede de conhecimento e abertura cultural auxiliou no que viria a ser a mistura do manguebeat (tão diversificada quanto os manguezais, como diriam os que a desenvolveram). Chico não era o único no meio, já que o grupo era grande. Porém, não há como negar que sua imagem acabou sendo mais difundida que a dos demais participantes, fazendo de Science uma espécie de porta-voz do movimento. "Ele era muito focado", afirma Jorge du Peixe. "Era de se esperar que algo de relevante fosse acontecer nesse sentido." Focado e detentor de um carisma inegável. "A gênese do mote maior de Chico era a da diversão levada a sério [risos]", diz Jorge du Peixe, que assumiu os vocais da Nação Zumbi após a morte do amigo.
Contudo, alguns se questionam se, de fato, o Brasil compreendeu a arte de Chico Science, 13 anos após sua morte. O produtor Paulo André diz que não. "Acho que havia uma grande ignorância. As rádios rock de São Paulo diziam que éramos regionais. E as rádios que tocavam música nordestina em SP diziam que éramos rock", conta. O produtor acredita que, de fato, há um grande reconhecimento da crítica musical, de outros artistas e de parte do público, porém afirma que boa parte da sociedade quase nem sabe quem Science foi - e um dos principais motivos para isso seria a pouca execução de suas faixas nas rádios do país. "Acho uma grande injustiça, e por isso falo que ele não tem o reconhecimento que merecia. Pela importância dele pra música brasileira como um todo, ele deveria tocar nas rádios com mais frequência", diz Paulo André. Sobre isso, du Peixe comenta: "A gente nunca teve dinheiro pra pagar os jabás. Talvez nunca tivesse sido pop o suficiente para as rádios. É difícil explicar."
Na discussão sobre a obra ter sido compreendida ou não, a mostra poderá servir para o surgimento de novas interpretações a respeito do trabalho de Chico Science e dos outros integrantes que estiveram envolvidos em todo o processo de desenvolvimento e criação do manguebeat. Suas relações com o contexto pernambucano da época, críticas sociais e misturas musicais, aos serem, em parte, reunidas na exposição, poderão, além de dar margem a diferentes interpretações, agregar olhares das novas gerações ao tema. "Acho que a ocupação vai permitir ver um pouquinho mais. O olho que vê, transforma e faz outra leitura. Acho que é uma forma também de manter viva a memória e, de certa forma, reproduzir de outra maneira, sem perder a essência", afirma Goretti.
Ocupação Chico Science
De 4 de fevereiro a 4 de abril (de terça a sexta, das 10h às 21h; Sábs., doms. e feriados, das 10h às 19h)
Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149)
Entrada franca