Nelson Gonçalves tinha medo de ser esquecido, mas sobrevive na memória de velhos e jovens admiradores; confira galeria de fotos raras, a discografia essencial e trecho inédito do livro de Marilene Gonçalves, filha do músico
Nelson Gonçalves era um homem sem medo. Fazia questão de proclamar seu desassombro - mas tinha, claro, suas preocupações. E um pensamento que o afligia era o de cair no esquecimento. O gago boxeador que esmurrou o destino e se tornou um dos maiores cantores do Brasil transformou esta melancolia em uma dessas frases que entram para a história: "O Brasil é um país sem memória", cuspiu Nelson. "Alguém se lembra de Francisco Alves?."
Neste 18 de abril, o Brasil completa 11 anos sem um de seus maiores artistas: Nelson Gonçalves. Até hoje, depois de Roberto Carlos, o cantor que mais vendeu discos: 78 milhões de cópias. Em sua trajetória fonográfica, gravou mais de duas mil canções. Cantor e compositor, foi também jornaleiro, mecânico, polidor, tamanqueiro, engraxate, garçom e boxeador. Viveu a glória de ser coroado Rei do Rádio e o inferno do vício da cocaína. Apaixonado e lutador, tornou-se um dos personagens mais ricos da história do País. Porém, atualmente, anda um tanto relegado pela "inteligência nacional".
Não era sem motivo, portanto, a amargura antecipada que Nelson sentia quando anunciou sua vontade: "Quero ser cremado. Uma semana depois de morto, estarão fazendo xixi sobre a minha tumba. Alguém lembra de Francisco Alves?" Onze anos se passaram desde que o destemido boêmio morreu, aos 78 anos de idade, vítima de um fulminante ataque cardíaco. Felizmente, contudo, a data não passará em branco.
Lançamentos à altura de Nelson vão presentear seus fãs, velhos e novos, com o talento daquela que, provavelmente, foi a maior voz que já cantou no Brasil. Em Eternamente Nelson - Especial e Registros Raros da Carreira de Nelson Gonçalves, show captado e exibido pela Rede Globo em 1981, a Sony/BMG reavivou som e imagem do espetáculo que marcou quatro décadas de carreira do valentão. A major anunciou o lançamento do DVD para o início deste ano, mas até agora, nada.
Em Eternamente Nelson, o aveludado vozeirão emenda um pout-pourri de grandes clássicos: "Normalista", "Maria Bethânia", "A Volta do Boêmio" e "Saudade", de Lupicínio Rodrigues, samba-canção interpretado por ele com lirismo e entrega sentimental absoluta. Beirando os 60 anos, Nelson ainda cantava de maneira soberba - a voz, no auge da força e do vigor. No show, com participações especiais do compositor Evaldo Gouvêa e do xará Nelson Cavaquinho, Nelson também canta a belísisma "Nem às Paredes Confesso" (numa versão fado), e as másculas "Carlos Gardel" e "Negue". Em ambas, sua admirável extensão vocálica se faz a toda prova.
A edição de Eternamente é histórica. Não apenas por se tratar de seu primeiro (e diga-se, muito atrasado) registro audiovisual lançado no mercado, mas por também juntar extras incríveis. Os mais reveladores são os que não escondem detalhes sobre sua "célebre" fase junkie: "Em casa, eu tinha guardado um quilo de pó", Gonçalves revela de forma drástica. Musicalmente, o material recupera duetos gravados com artistas como Martinho da Vila, Alcione e Tim Maia, nos anos 1980, muitos no extinto programa televisivo Globo de Ouro.
A gravadora também vai relançar o debut do cantor em LP (long-play), Nelson Interpreta Noel, de 1954 (confira galeria com a discografia essencial do cantor). A novidade principal, contudo, deve ser O Canto Que Me Embalou - Poemas para Meu Pai, Nelson Gonçalves, livro da filha Marilene Gonçalves, a primogênita, que deve atrair grande número de admiradores interessados na face humana do ídolo (clique aqui para ler um trecho). O livro deve chegar ao mercado até o final deste semestre; Marilene também prepara uma peça de teatro baseada na obra, que pretende estrear no Rio de Janeiro.
Há cerca de um ano, a boemia de São Paulo ganhou uma casa noturna com o nome do cantor. A empresária Lilian Gonçalves criou o "Bar do Nelson - o Bar do Boêmio", todo ambientado em homenagem à vida do cantor. A casa serve os drinks prediletos do Metralha, como "A Volta do Boêmio" (suco de abacaxi, vodka, curaçau blue e leite condensado).
Coisas de Nelson
Para Lobão, fiel amigo de Nelson, o Rei do Rádio deveria ter sido o "milionário da canção no Brasil", como Elvis e Sinatra: "Na (gravadora) RCA, ele escarrava no tapete talagões enormes, depois dizia: 'Posso cuspir nesta porra à vontade. Fui eu mesmo que paguei por isto'."
O roqueiro retrata uma história que ilustra bem a personalidade do cantor - afável com os amigos e punk quando achava que tinha de ser. "Dia desses fui a São Paulo e, coincidentemente, peguei o mesmo chofer que conhecia Nelson Gonçalves e o tinha transportado algumas vezes. Ele me contou que, certa vez, já de saco cheio, a caminho de um show, o Metralha perguntou: 'Eu quero saber a quantos quilômetros fica o local do show'. O motorista respondeu: 'Fica a 200 km, Seu Nelson'. E ele: 'Você jura que são 200 km mesmo?!'. O motorista: 'Sim, claro'."
Seguiram viagem batendo papo - Nelson no papel de copiloto. No meio da estrada, entre vales e montanhas, de repente ele disparou: "Pára, pára, pára!". No meio do nada, abismado, o cara só conseguiu falar: "Mas por que, Seu Nelson?". Ele respondeu: "Eu estava contando o velocímetro. Aqui são 200 quilômetros. É aqui que vou cantar. Não vou mais a lugar nenhum". Abriu a porta e começou: "Boemia...".