Em 2000, apuração demorou mais de um mês por confusão com cédulas; em 2020, mais de 300 mil votos foram 'perdidos' nos correios. Por que, mesmo assim, os EUA não usam urna eletrônica?
O mundo foi dormir na expectativa na terça, 3 de novembro de 2020. Depois de um longo período de votação (estendido pela pandemia de coronavírus) os Estados Unidos finalmente votaram o novo presidente. Entre Joe Biden e Donald Trump, qual será eleito? Mas o mundo também acordou na expectativa: a contagem de votos ainda não terminou.
Durante a quarta-feira, a maioria dos votos variou entre Biden e Trump enquanto as urnas desse ou daquele estado eram apuradas. Ainda não está perto de terminar: enquanto isto é digitado, ainda faltam terminar as contagens de oito dos 50 estados - alguns deles ainda têm 60% das urnas para analisar.
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A demora nem é novidade por lá. Em 2000, na votação que elegeu Bush, cédulas confusas e contagens erradas fizeram o resultado das votações demorarem mais de um mês para saírem!
É uma diferença gritante do Brasil. Aqui, tradicionalmente, as eleições vão até as 17h - e, na maioria das vezes, antes das 22h já temos o resultado. Isso vale-se da praticidade e agilidade da urna eletrônica brasileira. Mas a pergunta que não quer calar… Por que os EUA insistem em votar em cédulas, e não de modo eletrônico?
Em quase todas as eleições, corre na internet que o Brasil é o único país bobo o bastante para confiar em votos eletrônicos (pois, dizem boatos falsos, é um modo fácil de manipular). Nas eleições de 2018, inclusive, surgiram fake news afirmando que além de nós, só Venezuela e China também usavam urnas eletrônicas. Balela!
De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a nota divulgada para abafar a notícia falsa, 23 países usam votação eletrônica. Nesses, incluem-se Canadá, Austrália, Nova Zelândia Índia, França - e até parte dos EUA.
Cada país seleciona um modo de votação eletrônica. Há opções pela internet, computadores, máquinas, e até testaram um aplicativo. Aqui no Brasil, usamos uma invenção natal: a urna eletrônica.
O aparelho começou a ser usado nas eleições de 1996, como explica o TSE. Desde então, foi o responsável por transformar a votação brasileira em algo 100% digital - além da nossa urna ter recebido prêmios de inovação e servir como exemplo de tecnologia.
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Mas… A urna é realmente um modo seguro? Para entender isso, primeiro é necessário destacar que uma urna não pode ser manipulada ou alterada: ela não está ligada a nenhuma rede de dados, como a internet, pela qual é possível invadir. Também não é possível alterar ou adulterar um voto, algo que acontecia bastante com cédulas, pois o registro é eletrônico.
Para garantir a integridade do desenvolvimento, a programação da urna é feita pelo TSE e mantida com eles: nem mesmo os fabricantes do aparelho conhecem o código. As urnas são testadas para terem certeza que não estão com programaçoes adulteradas. Para os mais discrentes, desde 2009 (e obrigatoriamente desde 2015) o TSE promove testes públicos para o código, onde hackers e programadores podm tentar invadir - para provar que o código é seguro.
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Então, se as urnas não estão conectadas com a internet… Como é feita a contagem? Há alguns anos, depois de finalizada a votação, cada urna faz a contagem própria e os dados são gravados em um pendrive. Depois, esse relatório é transmitido por uma rede de internet própria do TSE - ou seja, uma internet “separada” da que usamos no nosso dia a dia. Só os poucos pontos de acesso dessa rede conseguem captar essas informações - e um terminal não é ligado ao outro.
O processo todo - votação, apuração e divulgação - acontecem em um dia só.
Alguns dos estados dos Estados Unidos usam votação eletrônica - mas não a urna eletrônica. Dos 50 estados, somente sete deles usam a votação 100% eletrônica (sem acompanhamento da clássica cédula de papel). A maioria deles tem formato misto. Mas, de qualquer maneira, dentro de um estado, existem várias cidades - e cada uma delas adota um sistema diferente. Na Flórida, por exemplo, existem seis tipos diferentes de urnas eletrônicas, cada uma funcionando de uma maneira.
O favorito nos EUA, porém, é a ‘boa e velha’ cédula de votação. De modo similar à folha de respostas de uma prova, a cédula de votação deve ser preenchida para escolher o partido no qual o eleitor estadunidense quer votar. A folha varia de acordo com o local, também, e pode ser com caixas de seleção para análise manual ou preenchimento de espaços para apuração virtual de máquinas (como no ENEM).
Este ano, o formato físico permitiu algo extraordinário: votação remota e antecipada. Nas últimas semanas, os eleitores dos EUA puderem preencher as cédulas de voto e enviá-las pelo correio. Depois, todas elas foram reunidas e enviadas às autoridades eleitorais de cada estado.
Essas cédulas foram somadas às preenchidas até a quarta-feira nos postos presenciais. Então, começam as contagens em cada estado, e a verificação da identidade. Em alguns lugares, isso é feito de modo automatizado. Em outros, é manual: cada cédula é analisada individualmente por alguém. A pessoa confere o voto e compara a assinatura do eleitor à cadastrada no sistema (via O Tempo).
Com o envio dos votos pelo correio e os métodos manuais, é comum que a apuração dos EUA demore. E o resultado das votações não quer nem dizer resultado das eleições: as pessoas lá não votam diretamente nos candidatos (como no Brasil), e sim em partidos. A maioria dos votos, então, define quais “delegados de estado” vão para o Colégio Eleitoral. E são esses delegados que votam diretamente neste ou naquele presidente (via CBN)
Isso, é claro, forma peculiaridades nas eleições dos EUA. Em 2016, por exemplo, Hillary Clinton recebeu vários milhões de votos a mais que Trump. Mas ele ganhou nos estados com maiores números de delegados, e acabou eleito (via G1). Em 2008, nas eleições ganhas por Barack Obama, o ex-presidente saiu vitorioso nos estados mais populosos (e consequentemente com mais deputados), e foi eleito pela maioria bem antes do fim da apuração dos votos (o resultado saiu no mesmo dia).
A votação por cédulas é arcaica. É demorada. É facilmente manipulada. É perigosa (mais de 300 mil cédulas foram perdidas em 2020). Por que, então, os EUA insistem em usar? Não há resposta definitiva - apenas muitas opiniões e suposições.
Em meio à pandemia de coronavírus, os pedidos para votações na internet pipocaram aos montes. Muita gente achou ruim, porém, pelo motivo mais óbvio: vulnerabilidade. Com uma eleição nas redes gerais de internet, é muito mais fácil invadir o sistema e hackear as contagens, ou alterar os resultados. O Washington Post discutiu longamente a questão nos últimos meses.
Outra desconfiança deles é a aparente impossibilidade de confirmação de votos. Pois a filipeta de votação, feita à mão nos EUA, ou impressa na hora nas máquinas eletrônicas, não seria possível pela internet - para isso, ou haveria gravação no sistema (o que coloca em xeque toda a questão do voto secreto) ou a necessidade de inventar uma criptografia bem forte. (É, inclusive, isso que impede o inverso no Brasil. O voto impresso através de urnas eletrônicas foi amplamente discutido entre 2009 e 2015 - mas, no fim, a privacidade de voto levou a melhor, e a impressão foi esquecida).
Não houve, durante muitos anos, nenhuma discussão de implementar a votação eletrônica fora das redes, como acontece no Brasil. Portanto, a resposta mais clara de porquê os EUA não usam urnas eletrônicas é o aparente medo de manipulação de programação - e desconfiança do próprio sistema eleitoral. Além disso,a emancipação de sistema de cada cidade torna muito difícil uma unificação de modelos - ao contrário do Brasil, que usa o TSE para organizar eleições.