No segundo capítulo dessa série sobre os principais nomes das HQs independentes nacionais, conheça o manifesto da contracultura chamado Miolo Frito, o ativismo artístico de Amanda Miranda e a mente perfeccionista de Jéssica Groke
Como prometido na última semana, estamos de volta para trazer a segunda parte dessa série de textos que tem como objetivo evidenciar os principais nomes atuais das HQs independentes no Brasil.
Estamos aqui para contar a história de quem conta histórias, para apresentar novos artistas a quem não conhece e também para contar coisas novas a quem já se considera fã.
+++LEIA MAIS: Por Trás dos Quadrinhos, Histórias (Parte 1)
Nesse novo episódio, você vai conhecer (ou, se já conhece, descobrir ainda mais sobre) o quarteto mantendo viva a chama da contracultura nos gibis, chamado Miolo Frito, o ativismo artístico de Amanda Miranda e a mente perfeccionista e excepcional de Jéssica Groke.
Se na semana passada, na primeira parte da série Por Trás dos Quadrinhos, Histórias, eu abri a matéria com a jornada do lobo solitário Lobo Ramirez (com o perdão da piada tosca) e a criação da Escória Comix, inauguro essa segunda etapa das entrevistas com o trabalho coletivo do O Miolo Frito.
O projeto é o resultado da junção de quatro mentes criativas bem distintas, mas que trabalham na mesma frequência para dar vida a narrativas comicamente desconexas, que transbordam estilo e são habitadas por personagens tão carismáticos quanto bizarros.
Adriano Rampazzo, Benson Chin, Breno Ferreira e Thiago A.M.S. se conheceram em 2005, no curso de Artes Plásticas da ECA-USP. O gosto por histórias em quadrinho com certeza foi um dos fatores que uniu o quarteto, mas esse filho chamado Miolo Frito nasceu bem depois dos anos de universidade nos quais, segundo eles, o ato de desenhar esteve menos presente do que deveria, graças a uma grade de disciplinas mais focada em teoria.
Página dupla da HQ feita para o encarte do disco Cruzeiro Novo (2017), da banda 3Cruzeiros
Finalizada a etapa estudantil da vida, e distantes do mundo erudito e pomposo das artes plásticas, os quatro amigos decidiram então colocar em prática aquilo que por diversas vezes ensaiaram nos momentos nos quais substituíram as carteiras da sala de aula por uma mesa de bar.
O Miolo Frito nasce dessa substituição de ambientes igualmente acadêmicos, e como um manifesto a favor de uma forma alternativa e boêmia de pensar. O projeto surge com o objetivo de ser um espaço para os integrantes contarem histórias que mesclam o absurdo e o cotidiano de uma forma tão despretensiosa que podem até ser classificadas como kafkianas.
Dentro dessa sociedade anárquica formada por quatro artistas inquietos, a única entidade respeitada é a trindade formada pela liberdade de expressão, descompromisso com estrutura narrativa e criatividade ilimitada.
Mas apesar de esse cenário soar idealisticamente impecável, toda utopia tem seus pontos negativos. Ou melhor, os pontos que quebram a cúpula de vidro que mantém toda e qualquer idealização utópica suspensa da realidade.
Imagem: Bill Murray, feito por Thiago A.M.S, publicado no Miolinho Monstraum (2015)
"Às vezes a gente se perde na nossa própria piada, e a história diverge daquilo que era pra ser. Um acontecimento besta leva a outro, e aquilo que tava acontecendo no começo evapora", conta Adriano, o autointitulado "mais chato em vários aspectos" do grupo.
A compreensão do leitor é deixada de lado quando o assunto é colocar no papel ideias elaboradas em conjunto por quatro amigos, e por isso, cada tirinha, gibi ou livro do Miolo Frito é muito mais uma celebração frutífera dessa amizade e compatibilidade criativa do que de fato um produto comercial.
E se por algum segundo você achou que os caras são apenas uns artistas que "só querem fazer arte" e não têm a menor noção do mundo real, acertou parcialmente.
Eles colocam sim a produção artística como prioridade absoluta, isso é indiscutível. Mas acontece que eles têm uma visão de mundo e mercado editorial bem diferente daquela propagada por grandes empresas que colocam o lucro financeiro em primeiro plano, como Marvel e DC.
Pode ter certeza que Adriano, Benson, Breno e Thiago estão bem cientes de todos esses aspectos que distanciam drasticamente O Miolo Frito de um coletivo institucional de quadrinistas.
Eles usam dessa sabedoria nada ilusória para subverter a noção do que não fazer, em um ato que, na teoria, soa como auto sabotagem, mas na prática, resulta em um dos principais projetos que mantém viva a contracultura nos gibis atuais.
Imagem: As Aventuras da Coxinha Voadora #5, publicada no Miolo Frito 3 (2015)
Hoje com 24, mas muito em breve com 25 anos, Amanda é uma artista que, assim como grande parte das pessoas que trabalham com ilustração, carrega consigo memórias afetivas de bancas de jornal.
Vestindo uma camiseta vermelha dos ícones do punk Black Flag, ela me conta, em uma videoconferência no Zoom, que se lembra muito bem de quando era criança e conseguia ler gibis de graça, pois o dono da banca era vizinho dela.
E talvez o mundo das HQs deva agradecer a esse simpático dono de um estabelecimento que infelizmente se encontra hoje em extinção, por ter oferecido o terreno propício para florescer ali uma quadrinista capaz de contar histórias pesadas com uma sutileza atípica.
Imagem: Broken Dolls
Amanda sempre desenhou, mas demorou para perceber que era realmente o caminho da arte que queria seguir.
Em nossa caminhada verbal (e virtual) pelo passado, ela lembra que tudo mudou lá por volta de 2013, quando o ativismo nas redes sociais tomou proporções nunca antes vistas e ela começou a se envolver com o movimento feminista.
Rodeada por artistas já experientes e outras iniciantes, ela encontrou um ambiente não apenas criativamente estimulante, mas também pessoalmente gratificante.
"Não consigo consumir uma mídia sem me questionar por que não estou vendo tantas mulheres ali"
Imagem: capa da HQ Juízo, publicada em Tabu (2019)
Desde então, envolvimento com pautas sociais e os quadrinhos que escreve e ilustra andam de mãos dadas. Um ótimo exemplo é o conto "Juízo", publicado pela Editora Mino em 2019, na antologia Tabu, e organizada por Janaina de Luna.
Amanda me conta que, com a narrativa, quis abordar o tema do aborto (surpreendente cada vez mais relevante) sem cair no clichê de escrever uma história que tivesse um apela à vítima, ou que justificasse a motivação da personagem a optar pelo procedimento.
"Só mostro que as pessoas fazem, e vão continuar fazendo, independente da sociedade aceitar ou não."
Ela levanta alto a bandeira do feminismo, mas me diz que apesar de se orgulhar em fazer parte do movimento, gostaria de conseguir "camuflar" esse carimbo estampado no trabalho que faz, para driblar a resistência que muita gente tem com esse tipo de conteúdo, e pegar o leitor desprevenido.
Imagem: Juízo, publicado em Tabu (2019)
Quando fui reassistir aos quase 60 minutos de entrevista com a Jéssica, para finalmente escrever esse texto, me dei conta de que, muito mais que um bate-papo sobre influências e gibis, ela, ao mesmo tempo, me deu uma aula de determinação e me explicou com precisão a forma como sua mente perfeccionista e autocrítica funciona.
Com 24 anos, a quadrinista mineira é o exemplo perfeito de como dedicação conta muito mais do que idade. Em 2018, venceu o prêmio HQ Mix de Roteirista Revelação, pelo quadrinho Me Leve Quando Sair, trabalho de estreia dela e publicado de maneira independente.
Assim como na escrita, Jéssica é expressiva e facilmente compreensivel também na fala. E para exemplificar isso, selecionei trechos das falas dela que ilustram a artista singular e genial que ela é.
Imagem: Me Leve Quando Sair (2018)
O início do interesse por gibis e a primeira HQ:
"Quando entrei no ensino médio, me tornei uma estudiosa dos quadrinhos. Percebi que meu interesse ultrapassava o da mera leitura."
"Quando eu era adolescente, li muito quadrinho de super-herói, mas satura muito rápido. Esse gênero acendeu em mim uma chama, mas me deixou com falta de nutrientes."
"Depois de 5 anos fazendo vários cursos, decidi que estava na hora de produzir alguma coisa. Me dei conta de que sempre quis fazer, mas me achava incapaz. Eu tinha expectativas muito altas, não queria fazer algo medíocre. Se era para fazer algo de fato, tinha que ser muito bom."
"Optei por começar com uma obra que não fosse muito convencional, por medo de me acusarem de não ser uma boa quadrinista. Na minha cabeça, não era para ser tão quadrinho, mas no fim das contas é bem quadrinho sim."
Imagem: Piracema, publicado em Tabu (2019)
Processo de criação de uma mente perfeccionista e por vezes autocrítica demais:
"Sou uma desenhista meio preguiçosa. Não gosto de usar tinta porque gosto que a coisa fique pronta logo. Não gosto de esperar nada secar."
"É um processo de muita tortura quando estou desenhando para HQ. Quando eu sei que aquele desenho vai virar uma página, fico pilhada, porque ele tem que ser 100% uma ferramenta para a narrativa."
"Todos os quadrinhos que eu fiz até agora, no mínimo as 5 primeiras páginas eu joguei fora e comecei de novo. Mas preciso me controlar muito, senão a coisa não anda."
"Sou uma entusiasta do quadrinho, não gosto nem de falar que sou ilustradora, desenhista ou artista. Não sou artista porra nenhuma, eu sou quadrinista."
Imagem: Piracema, publicado em Tabu (2019)
A relação com a busca pelo próprio estilo:
"Tenho uma relação muito complicada com o meu desenho. Não acredito muito nisso de estilo. Não encontrei o meu, e nem pretendo encontrar."
"Cada história vai pedir um estilo. Não é toda história que eu vou poder desenhar no grafite. Talvez chegue a hora em que eu vou contar uma história que precise do peso do nanquim."
"No começo eu até me preocupava, tipo 'como vão reconhecer meu trabalho?', mas aí me dei conta: vão me reconhecer pelo jeito que eu conto a história."
Imagem: Babilônia (2018)