Funk “é som de preto, de favelado, mas, quando toca, ninguém fica parado” - e isso pode ser a chave do Brasil para a cultura mundial
A apresentação daCardi B com Megan Thee Stallion no Grammy 2021 foi tudo aquilo que provavelmente esperávamos. Mãos, toques, dança, uma cama, sexy. Mas também uma total surpresa: a finalização da música foi um funk brasileiro - um remix de “Wap” feito pelo DJ Pedro Sampaio. “Fica de quatro” alternou-se com “Make it jump” (um verso pedindo para - vamos ser diretos - sacudir a bunda) e criou a síntese de um belíssimo funk do Rio. Baixaria no palco dos Grammys.
A reação das redes, imediata, variou: no Twitter, alegria. Nas redes sociais de pessoas mais velhas, mais conservadoras e amantes do “bom e velho rock ‘n’ roll”, não foi nada positivo.
As críticas dos conservadores não foi uma surpresa. A repulsa ao funk carioca vem desde o final dos anos 1990, quando surgiu. Afinal, é o pesadelo do “bom cidadão”: música feita por pretos, pobres, tocada em festas na rua regadas a bebida e sexo. Letras sensuais, sobre a vida na favela, ostentação… E mais sexo. Contra a moral.
Mas… A ideia de odiar o funk não faz sentido em um mundo onde existiu Marilyn Manson ("Não quero bater em você / mas a única coisa entre o nosso amor / é um nariz sangrento / e um lábio arrebentado.", “Pistol Whipped”) e em um país no qual Raimundos foi um sucesso (“No coletivo o que manda é a lei do pau / Quem tem esfrega nos outros / Quem não tem só se dá mal”, “Esporrei na Manivela”).
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Aqui, fica quase desenhado: o funk, ao contrário do que dizem por aí, não é odiado pelas letras. É odiado por ser funk. A melodia tchun-tchá-tchá torce tantos narizes quanto um cachorro molhado e mal lavado. Por quê? Difícil dizer com certeza. Mas uma suposição certeira é pelo fato de ser novo, de jovens, para jovens, e vir das favelas.
Rick Bonadio (produtor de grupos controversos como Mamonas Assassinas, Ultraje a Rigor, e Rebeldes) deixou clara a ojeriza da classe média com toda essa ocasião no Twitter: “Já exportamos bossa nova, já exportamos samba-rock, Jobim, Ben Jor. Mas o barulho que fazem por causa de 15 segundos de funk na apresentação de Cardi B me deixa com vergonha. Precisamos exportar música boa e não esse 'fica de quatro,'” desabafou.
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Levou uma atravessada da maior funkeira atual: Anitta. “Tenho uma sugestão para você, também. Escolhe um ritmo brasileiro à sua altura, faz uma música e exporta para o mundo. É [fácil e rápido]. Claro, não dá para começar com míseros segundos no Grammy. Quando chegar lá, a gente comemora com você.”
(Depois, resumiu basicamente toda a crítica ao funk: “‘Essa é a merda que o Rio nos manda!’ ... 2021? Não!,” bradou Anitta. “Apenas um dos milhares de comentários pejorativos dos ‘entendedores’ de cultura na época em que a grande Bossa Nova foi lançada. Será que já vi esse filme?”)
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Controversamente para a crítica, Anitta é um dos exemplos mais claros do porque devemos levar o funk ao sério: dá dinheiro. É vendível. É contagiante, como bem deixou claro a própria Cardi B, também no Twitter: “Me apaixonei pelo funk brasileiro quando ouvi ‘Onda Diferente’ da Anitta e Ludmilla. Espero que um dia elas consigam fazer uma música como essa, ou como ‘Favela Chegou’. Obrigada, Brasil, por sempre me mostrar amor. Precisei mostrar como também amo vocês.”
Apaixonante, de fato, como mostram os números: o funk, além de ser o segundo gênero mais ouvido no Brasil, foi o estilo de música brasileira de maior sucesso no exterior em 2019, como mostra uma pesquisa do Spotify. Deve ser pela originalidade: os outros países têm rock, pop, country. Mas só existe um lugar que faz funk brasileiro.
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Entre 2016 e 2018, de acordo com a mesma pesquisa do Spotify, o consumo do funk fora do país cresceu 3.421% (não há dados mundiais dos últimos dois anos - mas, baseando-se no crescimento local, o número foi facilmente superado. Toma como exemplo Kevin O Cris, quem explodiu depois da pesquisa do Spotify. Entre dezembro e janeiro de 2020, por exemplo, o funkeiro ganhou 10 mil seguidores diários no YouTube).
Além dos números do Spotify, no YouTube, o funk impressiona. Kondzilla, canal especializado em música, é dono dos dois clipes de funk mais vistos no mundo: “Bum Bum Tam Tam” e “Olha a Explosão”, cada um com mais de 1 bilhão de views (alcançaram a marca na mesma época de “Smells Like Teen Spirit,” do Nirvana). Mas, somado, o canal tem mais de 30 bilhões de cliques. É o mais visto do Brasil. Além disso, é o maior canal de música do mundo inteiro. Os dois hits são os mais vistos no exterior, também.
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Um som jovem, controverso, regional e com explosão nos Estados Unidos e Europa. Já ouvimos isso antes? Sim, com K-Pop. Como Gregório Duvivier brilhantemente comparou no Greg News, também em 2019, o funk brasileiro poderia ser nossa chave para uma produção cultural (e reconhecimento) mundial. Mais que isso, talvez, a salvação para nossa crise econômica (na qual o dólar bate R$ 6; há cinco anos, era R$ 2,6. Haja inflação!) Funcionou na Coreia do Sul; poderia funcionar no Brasil.
O K-pop, como explicou Gregório, foi uma maneira encontrada pelo governo coreano de alavancar a própria economia. Viram o sucesso do gênero no país, e pagaram, com dinheiro público, um investimento na música - que cresceu, cresceu, cresceu. Embora não haja dados concretos de arrecadação, só o fomento para música na Coreia do Sul em 2019 foi de US$ 6,4 bilhões - ou R$ 36 bilhões. Isso sem contar os lucros, ou envolvimento indireto, como turismo.
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Agora: o funk tem o mesmo potencial. O sucesso brasileiro, consolidado agora há quase duas décadas - em festas que movimentam mais de 30 mil pessoas (a mesma multidão de um bom show pop - mas todo final de semana) e a ascensão da internet mostram como o estilo tem força e estabilidade, mesmo sem um fomento externo. Imaginem, por um momento, se tivesse dinheiro de investimento.
Voltando ao clipe de “Bum Bum Tam Tam,” outra prova de como o gênero pode se expandir internacionalmente: foi o primeiro vídeo de funk (na verdade, de todo o Brasil) a alcançar 1 bilhão de views. E, de cada três visualizações, uma veio de fora do país, como mostrou o G1. Outros momentos do funk fora do país incluem o clipe, também com bilhões de visualizações, de “La La La,” Shakira ft. Carlinhos Brown. O video de “Corazón”, também, de Maluma e Nego do Borel.
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No último domingo, então, o maior de todos: CardiB tocando o remix de Pedro Sampaio para “Wap” no palco do Grammy. Megan Thee Stallion rebolando ao som de “fica de quatro.” O ápice atual, provavelmente, do funk brasileiro no mercado bilionário da música, e uma chance para mostrar ao mundo como somos bons em contagiar. Quem sabe não viremos B-funk pelo mundo afora?
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