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Cerco fechado para os piratas digitais

Diversos países - inclusive o Brasil - intensificam a busca por meios de punir quem compartilha arquivos livremente pela internet. Mas será que é mesmo possível policiar a rede? Confira a primeira parte do nosso especial sobre pirataria na web

Por Anna Virginia Balloussier Publicado em 07/01/2010, às 21h56

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No princípio era o verbo. Insatisfeitos com a seca repentina na fonte de renda, artistas e gravadoras tentavam vencer na base da oratória a guerra contra serviços como o Napster, um dos primeiros a levar o compartilhamento gratuito de arquivos a mares piratas nunca dantes navegados, em 1999.

A estratégia, basicamente, era apontar o dedo na cara do usuário e falar: "Mau, mau garoto". Que bem faria empurrar a indústria fonográfica ao abatedouro? Dela vieram todos os filés que, por anos, empanturraram as paradas de sucesso. Cuspir nesse prato, e tudo por um punhado de arquivos de qualidade duvidosa, não poderia ser outra coisa que não má-fé. Maus, maus garotos.

Por conta de processo vencido, em 2001, pela RIAA, associação de gravadoras dos Estados Unidos, o Napster capitulou: saiu do histórico na internet para entrar na história de fora da tela de computador (para os nascidos a partir dos anos 90, acreditem: ela existe). Mas serviços afins sofreram o milagre (ou revés, dependendo do ponto de vista) da multiplicação. E, paralelamente a eles, fortaleceu-se a corrente que apoia medidas penais para combater o troca-troca de arquivos, antes que a máxima "libera geral" se instale de forma incontornável. Até então, era blablablá demais para punições de menos. Em algum momento seria preciso fazer valer a lei.

Passados 10 anos do nascimento do Napster, e oito de seu velório (hoje o site oferece arquivos em streaming e downloads pagos), muitos governos - em geral, pressionados pelas equivalentes à RIAA em cada país - se mexem para coibir o download ilegal. A França saiu na frente: seu parlamento aprovou este ano lei que prevê desconexão, multa e até mesmo prisão para quem insistir em baixar material protegido por direitos autorais. No Reino Unido, foi Lily Allen quem jogou malagueta nesse caldeirão. Ela apimentou debate público sobre o assunto ao fazer picadinho de "colegas ricos e bem-sucedidos" convenientemente simpáticos à causa pirata - a lógica do "melhor perder grana do que simpatia".

"Fiquei chocado ao descobrir que apenas uma de 20 faixas baixadas é download legal", declarou em outubro Lorde Peter Mandelson, secretário de Negócios britânico. Naquelas bandas, o governo vai pegar mais leve do que a França, mas só até 2011. É que, até lá, eles vão testar a estratégia dos "três golpes" ("three strikes"): um trio de notificações para ver se o transgressor se manca. Se, até abril de 2011, a pirataria não sofrer queda de 70%, a desconexão dos mais espertinhos vira realidade.

A discussão pipoca nos quatro cantos do planeta. Estados Unidos, que tanto zela pela liberdade individual, quer dar sinal verde para oficiais vasculharem bagagens à caça de mídia eletrônica ilícita. Na Suécia, fundadores do site Pirate Bay, referência para a busca de arquivos do tipo torrent, foram condenados à prisão - num julgamento em que não faltaram críticas à parcialidade da decisão, já que um dos juízes era vinculado a grupos de proteção a direitos autorais. Em novembro, o Mininova recebeu uma dura da justiça holandesa e saiu de cena. E o Parlamento Europeu deu sinal verde para que os 27 estados-membros que representa despluguem os piratas, após abandonar uma emenda que dificultaria esse bloqueio.

Definitivamente, não dá para se dizer que é muito barulho por nada. A Federação Internacional da Indústria Fonográfica estipulou que, em 2008, cerca de 40 bilhões de downloads não renderam um tostão ao bolso do autor - e, por tabela, aos cofres das gravadoras. Isso significa que 95% das músicas baixadas pela internet vieram, naquele ano, de fontes piratas. Dá para entender o desespero de uma indústria que, há menos de duas décadas, lucrava bilhões.

Crime e castigo

Vamos adivinhar que a maior parte de vocês é brasileira. E que boa parte pensou: "E eu com isso?". De fato: e você com isso? Onde o país entra nessa história? Concedemos aos corsários virtuais a vilania do Capitão Gancho ou o escracho bem visto do Capitão Jack Sparrow? Até que ponto artistas, selos e governantes se unem para erguer da justiça a clava forte contra a pirataria em nosso território?

Por partes: o Brasil não é a Atlântida perdida da pirataria. Há gente, sim, tentando enquadrar tanto distribuidores como receptores de arquivos ilegais - um mundaréu de músicas, filmes e games baixados sem que a classe artística receba um centavo por isso. Só que, por aqui, a coisa é muito mais frouxa do que em países como a França. Quem garante, aliás, é o autor de um projeto de lei bastante parecido com o recém-aprovado pelos franceses.

Deputado federal pelo DEM, o paulista Geraldo Tenuta Filho, conhecido como Bispo Gê, idealizou uma lei que, se vingasse, criaria penalidades civis para qualquer troca na internet desobediente à propriedade intelectual. A ideia era obrigar "provedores de acesso à internet (...) a identificar os usuários de seus serviços que estejam (...) compartilhando ou oferecendo em sítios de qualquer natureza obras (...) sem a autorização dos autores".

Funcionaria assim: o internauta sob vigília recebe o primeiro de cinco alertas por e-mail. Se reincidir, ganha mais um puxão de orelha do provedor. De novo? Desconexão por três meses. No quarto repeteco do delito, dobra o tempo de suspensão da internet. O touché: o quinto aviso significa cancelamento em definitivo do contrato com o provedor - sendo que nada disso "isenta o usuário do pagamento pelos serviços de acesso à internet". O projeto, que faz alusão às autoridades francesas, pode ser lido na íntegra aqui.

Ferrenho defensor dos direitos autorais, Bispo Gê foi o primeiro a tirar pangaré de chuva. No Brasil, não cola. De Brasília, por telefone, ele explicou à reportagem do site da Rolling Stone Brasil por que preferiu deixar o projeto de lado. "A não ser que se faça tocaia a uma pessoa, e a use como exemplo, fica difícil vigiar e punir. Se for só o YouTube, por exemplo, você tem alcance. Mas P2P [tecnologia peer-to-peer, que descentraliza a distribuição de arquivos na web] é toda uma rede. É impossível!"

O político também frisa que nem tudo no esquema francês lhe agrada. Exemplo: por lá, até os pais que não mantivessem seus piratinhas sob controle poderiam pagar pelo crime. Menos radical, Bispo Gê afirma que sua intenção era caçar "o olho d'água", ou seja, o responsável por colocar o conteúdo protegido no ar, e não quem se banhasse neste abundante manancial de arquivos dispostos gratuitamente na rede. "Às vezes o menino ou a senhora vão pegar para ouvir e são penalizados", ele critica.

Como é por P2P que a maioria das músicas se espalha na internet, chegar até o primeiro culpado é tão difícil como cobrar a autoria de uma ideia original no Twitter. E assim o projeto do deputado foi da fila de votações em Brasília direto para o limbo.

O dia em que a música morreu?

O recuo de Bispo Gê deixa em maus lençóis artistas como Fred Zero Quatro. Ele é vocalista da banda pernambucana Mundo Livre S/A, que, entre outros incentivos à horizontalização na internet, licenciou para Creative Commons o manifesto "Caranguejos Com Cérebro", marco do manguebeat. Tal qual o crustáceo-símbolo do movimento cultural, Fred decidiu andar para trás: nos últimos meses, foi a público em diversas ocasiões para condenar o que chama de "fundamentalismo tecnológico".

À RS Brasil, ele esclarece a questão que tanto lhe encuca. "Me pergunto: será que cada moleque na frente do laptop, compartilhando tudo, tem a mente invadida pela questão principal: 'Pô, será que posso estar ajudando a matar o rock?'".

Acontece que, para o artista, "a internet nivela por baixo". É, ao mesmo tempo, parque de diversões do medíocre, "aquele bem na média mesmo", e cemitério "dos brilhantes e talentosos". Vai, Fred: "Você pode até gravar uma coisinha lá e colocar no MySpace. Isso qualquer um faz. Mas que cara, hoje, vai largar tudo para se dedicar a compor um material 'foderoso'?".

Para ilustrar seu ponto, Fred concebeu uma situação hipotética com Gilberto Gil. "Imagina o Gil em início de carreira. Quando se interessou pela música, já era um cara altamente estabelecido [o baiano tem diploma em administração e, em São Paulo, chegou a trabalhar para multinacionais]. Se alguém hoje estivesse na situação dele, saído da faculdade e com uma puta proposta de emprego, vai largar tudo? Na época, Gil saiu do festival com contrato assinado."

Não deixa de ser curioso. Ex-ministro da Cultura e com vaga cativa no panteão da música brasileira, Gil é, notoriamente, um dos defensores mais apaixonados de um verdadeiro "mundo livre" na internet - praticamente um Gandhi do meio fonográfico, para quem a pirataria é "desobediência civil" contra uma indústria que por décadas monopolizou as relações entre público e artista.

Sem vida boa

Túlio Vianna, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná e professor da PUC de Minas Gerais, já ouviu discursos similares ao de Fred Zero Quatro. Continua achando todos um atraso de vida. "O problema é que se criou esta ideia de que o artista deve viver de renda, que pode viver às custas de uma única música de sucesso. Não é assim com o resto das profissões. Você pode ser um advogado e ganhar uma causa brilhante, mas não vai deixar de trabalhar por causa disso", argumentou Vianna, referência entre os defensores da descriminalização da pirataria.

Para o advogado, o braço da lei até serve para afugentar algumas moscas no caminho, mas nunca será capaz de suprimir o livre vaivém de arquivos. "Quando a lei é muito dissociada da realidade, não tem eficácia. A repressão não é interpretada pela população como algo bom, justo."

Até porque, para não virar conversa para boi dormir antes de a vaca ir para o brejo, a represália judicial à pirataria implica em seguir todos os passos do usuário. Descriptografando: invasão de privacidade. "Para saber se alguém viola, é preciso saber o que está lá." Vianna acredita, e fãs de George Orwell (escritor de 1984, clássico sobre vigilância e poder) seguem o bonde, que qualquer proposta do gênero seria "violadora de um direito fundamental". Uma fronteira que poucos desejam ultrapassar.

Pois um de seus conterrâneos, o senador e ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo (PSDB), quis algo bem perto disso.

Nesta quinta-feira, 10, você confere a segunda parte da reportagem sobre pirataria digital. Saiba mais sobre o projeto de lei de Azeredo, que prevê até três anos de cadeia para quem compartilha arquivos livremente, e as alternativas propostas por quem entende do assunto para os artistas que perdem a cabeça com a internet.