Se a China não reduzir a quantidade de carvão que queima, nada do que for feito para estabilizar o clima adiantará
Por dentro da lenta e frustrante luta para encontrar um novo caminho para o futuro
Jeff Goodell
Publicado em 08/11/2014, às 10h06Enquanto o sol nasce em meados de julho na Base da Força Aérea Andrews, perto de Washington, D.C., o secretário de Estado norte-americano John Kerry sobe rapidamente a escada carpetada do avião presidencial branco e azul. Ele está indo para Pequim falar com líderes chineses sobre, entre outras coisas, uma das maiores prioridades do presidente Barack Obama na reta final do segundo mandato: a necessidade urgente de reduzir a poluição por carbono e limitar o dano causado pelas mudanças climáticas. No entanto, o resto do mundo não está dando nenhuma folga a Kerry – há problemas nas eleições no Afeganistão, conflitos no Oriente Médio e negociações com o Irã sobre armas nucleares. Quando entra no avião, ele já está falando com intensidade ao celular, profundamente mergulhado no caos global.
Há quase uma década, Estados Unidos e China, as duas nações mais poderosas do planeta, reúnem-se todo ano para falar sobre como comandar o mundo juntas. Quando as conversações começaram, em 2006, o foco eram questões como taxas de câmbio, barreiras comerciais e as infinitas disputas da China com Taiwan. Em 2009, pouco depois de Obama tomar posse, os EUA pressionaram para adicionar a mudança climática ao caldeirão, esperando que um melhor entendimento com a China levaria a um melhor acordo na cúpula sobre o clima em Copenhague (não ajudou – a desconfiança entre os países foi um grande motivo para a implosão das negociações).
A delegação norte-americana neste ano inclui muitos dos representantes mais influentes da administração no que tange a questão climática – o secretário de Energia, Ernest Moniz; Todd Stern, o principal negociador sobre o clima; e John Podesta, conselheiro de Obama que se tornou o verdadeiro líder do governo para a política sobre o clima. Nos últimos anos, Obama tomou algumas medidas importantes, como investir bilhões de dólares em energia limpa, aumentar os padrões de eficiência para veículos e propor regras para limitar a poluição por centrais a carvão nos EUA. No entanto, a mudança climática é um problema global. Se o Ocidente não conseguir persuadir outros países a levar a ação climática a sério, nada que qualquer país fizer importará muito quando se trata de resolver o problema.
Exceto a China. A verdade é que o que a China decidir fazer na próxima década provavelmente determinará se a humanidade poderá ou não interromper – ou pelo menos amenizar – o aquecimento global. A visão de diversos proeminentes cientistas climáticos é que, se as emissões da China chegarem ao auge por volta de 2025, poderemos – talvez – ter uma chance de estabilizar o clima antes de ser tarde demais. No entanto, os chineses têm resistido à pressão internacional para reduzir suas emissões. Durante anos, usaram o argumento de que são pobres, o Ocidente é rico e que os altos níveis de carbono na atmosfera foram causados pela grande queima de combustível fóssil promovida pela América e pela Europa durante 200 anos. A mudança climática é problema seu, argumenta – lidem com ele. Só que essa lógica não se sustenta mais. A China se tornará a maior economia do mundo neste ano e, em 2006, ultrapassou os Estados Unidos como maior poluidora por carbono do planeta. O país despeja 10 bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera todo ano. Esse número deve aumentar para 15 bilhões até 2030, fazendo a poluição do resto do mundo parecer insignificante. Se isso acontecer, as chances de o mundo cortar a poluição por carbono a tempo de evitar uma mudança climática perigosa são “praticamente zero”, de acordo com Kevin Anderson, vice-diretor do Tyndall Centre for Climate Change Research, no Reino Unido. John Kerry sabe disso – e também sabe que, quando os países do mundo se reunirem em Paris, em dezembro, para tentar chegar a um acordo sobre o clima global, poderá ser a última chance de abordar o problema antes do início dos Anos em que Viveremos em Perigo.
Depois de 25 anos de negociações fracassadas, é fácil ser cínico sobre essas próximas discussões, mas há pelo menos três fatores que possibilitam um acordo significativo. O primeiro é que a mudança climática não é mais um problema hipotético – está acontecendo em tempo real ao nosso redor. Secas, enchentes, mais tempestades destruidoras, tempo esquisito de todo tipo – é só olhar pela janela. Nos últimos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, os maiores cientistas do mundo afirmaram que o aquecimento da Terra é um fato “inequívoco” e declararam que os seres humanos são a causa disso. Sem ações drásticas, o planeta pode esquentar até 4 graus Celsius até o final do século, o que seria catastrófico.
O segundo fator é que, até agora, o maior obstáculo a um acordo internacional têm sido os Estados Unidos – mas isso está começando a mudar. Graças à recente restrição de Obama à poluição, além da explosão na oferta de gás natural barato, que substituiu o sujo carvão, as emissões de carbono nos EUA estão em declínio. “O que o presidente fez é muito importante”, afirma Robert Stavins, diretor do Projeto Harvard sobre Acordos Climáticos. “Isso permite que os Estados Unidos olhem para outros países e digam ‘Ei, o que você está fazendo?’” O último motivo para esperança, paradoxalmente, é a incansável demanda por energia da China. O país está no meio de uma profunda transformação econômica e social. Ao mesmo tempo, mantém altas taxas de crescimento e reduz a dependência de combustíveis fósseis. A demanda energética deve duplicar até 2030 e, neste ritmo, não há petróleo, carvão e gás suficientes no mundo para manter a economia do país funcionando. Então, a atual segurança energética da China depende de o país desenvolver fontes de energia alternativa. “Precisamos de mais de tudo”, diz Peggy Liu, líder em sustentabilidade que trabalha em toda a China. “Eólica, solar, uma grade modernizada. Precisamos deixar o passado para trás e seguir para um futuro com energia limpa.”
Os líderes chineses estão acordando para o fato de que as décadas de hipercrescimento majoritariamente movido a carvão impuseram um preço alto. A poluição do ar nas grandes cidades da China é uma das piores do mundo; um relatório recente constatou que a má qualidade do ar contribuiu para 1,2 milhão de mortes prematuras em 2010. Como diz Hank Paulson, ex-Secretário do Tesouro norte-americano e observador de longa data sobre a China: “De que vale mais um ponto no PIB se o ar sujo está matando as pessoas?” Pode-se facilmente argumentar que a China já fez muito mais do que os EUA para transformar o abastecimento de energia: incluindo a hidroelétrica, as energias renováveis agora compõem 20% do mix (contra 13% nos Estados Unidos), uma fatia que deve dobrar até 2030. A China é a maior produtora de energia eólica e solar do planeta. Em 2013, quase 60% da geração de nova energia era renovável. O país também tem 28 novas usinas nucleares em construção, mais do que qualquer outro. Em termos de política, os líderes chineses também têm sido inovadores. Nos EUA, não está sendo considerado nenhum sistema de impostos sobre carbono ou de comércio de licenças de emissão, de forma a colocar um preço na poluição por carbono. Enquanto isso, o programa de comercialização de créditos de carbono da China, que inclui mais de 2 mil fontes de poluição, é o segundo maior do mundo (só perde para o da União Europeia). “Se a China obtiver sucesso no uso de forças de mercado para limitar o carbono e transformar a economia, essa pode ser nossa melhor chance para limitar a mudança climática afirma Dan Dudek, vice-presidente do Fundo de Defesa Ambiental.
O problema para a China é o carvão: cerca de 70% da energia elétrica do país vem dele. Os chineses consumiram quase 4 bilhões de toneladas em 2012, praticamente tanto quanto o resto do mundo combinado. “As escolhas que os líderes chineses fizerem na próxima década serão absolutamente cruciais para resolver a crise climática”, diz o ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore. Para a estabilidade social e econômica da China, as consequências não poderiam ser maiores. “Politicamente, é muito difícil ser apontado como o maior responsável por uma catástrofe iminente”, continua Gore.
É assustador testemunhar a incompatibilidade entre a urgência de tomar uma ação e o logro autodestrutivo da diplomacia. Algumas semanas antes de ir à China com Kerry, participei de uma conferência da UNFCCC sobre o clima em Bonn, na Alemanha. O encontro de duas semanas, um dos vários projetados para começar a mapear um acordo para Paris no ano que vem, foi realizado no cinzento e de aparência burocrática hotel Maritim, às margens do rio Reno, e teve a participação de quase 2 mil representantes de mais de 180 países. Em Bonn, o fedor de quase 25 anos de promessas não cumpridas e acordos fracassados era palpável. Os EUA eram vistos com ceticismo e desdém especiais, não somente porque o país assinou, mas não ratificou, o Protocolo de Kyoto, mas porque, até o atual governo, presidentes e líderes do Congresso norte-americano nunca fizeram nada intencional para reduzir substantivamente a poluição por carbono, apesar dos óbvios impactos que isso teria sobre nações mais pobres. “Você fala muito, mas não é sincero”, disse um representante da Turquia torcendo o nariz para mim. A confiança nos negociadores dos Estados Unidos havia sido ainda mais minada quando documentos divulgados pelo WikiLeaks e Edward Snowden revelavam que o país estava espiando as negociações de outros países antes de e durante Copenhague, tentando obter informações sobre suas posições. As revelações foram particularmente condenatórias dada a natureza de boa fé das negociações sobre o clima. “Depois de quase 30 anos desse tipo de coisa”, um participante de longa data dessas conversações comenta, “que confiança pode existir? Como você chega a um acordo sobre questões cruciais para a sobrevivência do seu país com alguém que, na sua visão, está querendo te ferrar?”
Quando o avião de kerry aterrissa em Pequim, imediatamente entramos em uma fila de SUVs e somos levados para a Grande Muralha, ao norte da cidade, para o que um funcionário do Departamento de Estado chama de “um pouquinho de turismo cultural”. Quando visitei a muralha há alguns anos, a poluição do ar era tão grande que mal consegui enxergar 4,5 m à minha frente; hoje, está limpo o suficiente para ver as montanhas Xishan, a 19 km de distância. Depois vamos em comboio até o hotel Marriott, no centro de Pequim, onde o governo norte-americano ocupa dois andares. A segurança é forte: a entrada do hotel está bloqueada e agentes armados estão por toda parte. A maior preocupação parece ser com espiões chineses; em uma viagem anterior à China, cinco membros da equipe de Todd Stern receberam e-mails falsificados que continham um bot que poderia ter dado a um hacker controle dos computadores e, logo depois que faço check-in no meu hotel, alguém me diz que posso presumir que meu quarto esteja grampeado e meus e-mails sejam lidos.
Na manhã seguinte, o presidente chinês Xi Jinping abre as discussões no hotel Diaoyutai State Guesthou- se, um elegante retiro na região oeste de Pequim. O discurso dele para cerca de 500 participantes norte-americanos e chineses não é exatamente um clamor à ação sobre a mudança climática. Em vez disso, ele fala sobre a importância de manter a economia chinesa em movimento, declarando que a China “mais do que nunca” precisa de um ambiente pacífico e estável. “É natural que a China e os EUA possam ter visões diferentes, e até atritos, sobre determinadas questões”, diz, acrescentando: “O confronto entre China e Estados Unidos definitivamente significaria desastre para os dois países e para o mundo”. Xi só menciona a mudança climática uma vez, em uma referência passageira a ela como um desafio considerável que ambas as nações enfrentam.
Já Kerry é conciliatório. Ele garante a Xi e outros líderes chineses que os EUA não querem “conter” a China e que dão as boas-vindas ao surgimento de “uma China pacífica e próspera que... escolha ter um papel responsável nos assuntos mundiais”. Kerry também fala muito sobre o crescimento econômico e como “a verdadeira medida de nosso sucesso não será apenas se nossos países crescem, mas como eles crescem”. Ele continuou: “Passo a passo, estamos mudando nosso foco... para a inescapável realidade de um futuro com energia limpa”.
Às vezes, o abismo que há entre como os chineses e os norte-americanos governam se revela. Um desses momentos ocorre no segundo dia das conversações no Grande Salão do Povo na Praça Tiananmen, a câmara parlamentar da China. Kerry e Yang aparecem em uma coletiva de imprensa para dar seis prêmios “EcoPartnership” a organizações norte-americanas e chinesas que colaboram em soluções de energia limpa e para o clima. No contexto das conversas, é um evento minúsculo, com poucos participantes e jornalistas chineses.
Os comentários de Kerry no evento são mais soltos e menos diplomáticos do que qualquer coisa que o ouvi dizer antes. Também são mais perigosos politicamente, porque ele fala sobre a coisa da qual a liderança chinesa tem mais medo: o poder do ativismo social. Kerry descreve como, em 1970, depois que 20 milhões de norte-americanos participaram de protestos no Dia da Terra, a revolta pública levou à criação da Agência de Proteção Ambiental, além da aprovação da Lei sobre Ar Limpo e, mais tarde, da Lei sobre Água Limpa. “Então, vi o poder da ação do povo, dos esforços locais sendo ampliados e, no final das contas, criando ação em um nível mais amplo, federal”, diz, com a voz subindo o tom. “E vejo esse mesmo tipo de gana, essa mesma semente de inovação, e de exigência por uma diferença, bem aqui [na China], hoje.”
As conversações terminam em uma tarde quente e úmida no complexo Zhongna- nhai, no centro de Pequim, que abriga os gabinetes dos membros mais seniores do Politburo, o mais alto órgão executivo do Partido Comunista. Mais tarde, Kerry me disse que estava impressionado com o que tinha visto dos chineses sobre o clima durante a viagem. Outras pessoas na comitiva norte-americana descreveram uma sensação de que os principais líderes chineses que haviam encontrado estavam “pendendo extraordinariamente para a frente.”
No entanto, ainda pairam imensas questões sobre quão longe EUA, China e cada grande poluidor do planeta irão para reduzir emissões. Para negociadores que estão pressionando por um acordo rígido com reduções consideráveis e clara responsabilidade financeira, o maior medo não é que Estados Unidos e China não entrem em acordo sobre as principais questões, mas sim que entrarão em acordo excessivo: “Tememos que EUA e China façam uma barganha que deixe ambos confortáveis, mas faça pouco ou nada para reduzir o risco de mudança climática”, diz Mohamed Adow, conselheiro sênior da Christian Aid, uma agência britânica de assistência que trabalha em muitos países em desenvolvimento. “Então, o resto do mundo terá de decidir se quer acompanhar ou lutar por um acordo mais forte.”
Poucas horas depois, Kerry e sua equipe partem para o Afeganistão. O mundo é um lugar grande e complicado e todos – até os guerreiros do clima mais comprometidos como Kerry – têm muitas outras coisas para pensar além de quanto carbono estamos despejando na atmosfera. E isso, de certa forma, é sempre o problema: sempre há algo mais urgente, mais imediatamente catastrófico para chamar a atenção dos elaboradores de políticas – e nos próximos anos muitas das crises que nos distrairão das realidades da mudança climática terão sido causadas, em boa parte, pela mudança climática. Em meio a todas essas emergências de curto prazo, a Terra continuará aquecendo, as secas piorarão, os alimentos ficarão cada vez mais escassos, o gelo derreterá, os oceanos subirão e, mais ou menos a partir de 2030, a mudança climática surgirá do plano de fundo e acabará se tornando a única coisa da qual falamos. Será a história do século.