Cantora, aos 67 anos, se prepara para o lançamento de Recanto Gal Ao Vivo, gravado no mesmo teatro onde ela fez história com Fa-Tal – Gal Total, de 1971
Gal Costa sabia que cantar “Vapor Barato” não seria fácil. Não que a canção, de Jards Macalé e Waly Salomão, estivesse fora do seu repertório habitual. Mas havia sido no Teatro Tereza Rachel, hoje conhecido como Net Rio, em 1971, que ela apresentou a canção pela primeira vez, naquele que é considerado um dos mais emblemáticos trabalhos da intérprete, Fa-Tal – Gal Total, seu primeiro disco ao vivo. Um álbum que marcou época, um momento duro para a cantora, que via seus companheiros tropicalistas (Gilberto Gil e Caetano Veloso) exilados e distantes. Ela precisava dar um passo sozinha, e o fez naquela temporada de shows dirigida por Lanny Gordin. Ali se confirmava o que alguns já sabiam: Gal poderia ser chamada de “A Voz”, e não seria exagero.
A máquina do tempo nos leva agora para aqueles dias 8 e 9 de outubro de 2012. A cantora, sob aquele mesmo teto, cantou a canção emblemática, regravada por Zeca Baleiro e O Rappa. E chorou. Manteve o braço estendido para o guitarrista Pedro Baby (filho de Baby do Brasil e Pepeu Gomes), durante o solo dele, contraiu em vão os olhos para evitar as lágrimas.
Mais uma viagem no tempo e chegamos a esta quinta-feira, 7, em um hotel na zona sul de São Paulo, onde Gal se reúne com alguns profissionais da imprensa para falar sobre o lançamento de Recanto Gal Ao Vivo, a gravação daqueles dois shows no teatro carioca, lançado pela Universal em dois formatos (CD e DVD, ambos duplos), calcado em canções gravadas no álbum de estúdio homônimo, maquinado, composto e dirigido por Caetano Veloso, em 2011.
“Foi uma emoção cantar ‘Vapor Barato’”, conta ela. “Chorei durante o solo do Pedro, que era um menino quando eu o conheci. Bem pequenininho. Sempre fui amiga da Baby, conversávamos muito quando morávamos ambas no Rio de Janeiro, antes de eu me mudar para a Bahia. Ele era como se fosse um filho meu. A presença dele me trouxe uma presença familiar muito forte”, completa. Naquele dia, ela fez força para conter as lágrimas. “Minha voz fica desmilinguida quando choro”, diz ela, rindo.
Várias Gals
O show, baseado no repertório de Recanto, é totalmente avesso a uma ideia de retrospectiva. Mas, ainda que sete das 23 faixas presentes no disco venham deste último trabalho e que as músicas costumeiras do cancioneiro dela tenham sido reinventadas por Gal e pela banda enxuta que a acompanhava - Pedro Baby (guitarra), Bruno Di Lullo (baixo) e Domenico Lancellotti (MPC e bateria acústica) -, ela diz que flashes passaram por sua cabeça, como fotografias, das mais antigas até algumas mais recentes. “É um show que me faz lembrar de várias fases da minha vida, desde o começo”, diz a soteropolitana de 67 anos. “Passamos por várias Gals. Acho que o espetáculo conseguiu fazer isso.”
O show foi dirigido por Caetano e Moreno Veloso, filho do cantor e compositor, também músico. Ainda que, em poucos momentos, a voz de Gal também passeie por outros compositores, como em “Divino Maravilhoso”, uma parceria de Caetano com Gilberto Gil, “Folhetim” (Chico Buarque), “Barato Total” (só de Gil), “Deus é Amor” (Jorge Ben), a citada “Vapor Barato”, “Um Dia de Domingo” (Michael Sullivan e Paulo Massadas) e “Modinha Pra Gabriela” (Dorival Caymmi), é de Caetano a maioria: 16 são dele, individuais e parcerias.
Gal nos faz voltar até 1985, quando foi lançada "Um Dia de Domingo", na qual ela divide os microfones com Tim Maia. A música foi bastante criticada, na época, porque Sullivan e Massadas eram compositores com afinidade mais popular do que aquela que cantora estava acostumada a trabalhar – ainda que seja uma das suas canções mais famosas. “É uma música popular até hoje, na América Latina, em Portugal. E foi uma escolha de Caetano”, conta. A história por trás da canção começou quando eles se encontraram, em um evento da gravadora, nos anos 80. Tim falou, daquele jeitão dele: “Pô, tu canta mesmo, ein? Vamos fazer alguma coisa juntos”. “Ali nasceu a ideia de fazer a música. Gravamos separados, porque quando tentamos fazer juntos, o [produtor ] Liminha começou a fazer uns arranjos e o Tim não gostou e ele foi embora”, lembra ela, rindo.
No show, ela faz as duas vozes, dela e dele, buscando alcançar os graves de Tim. “Foi incorporando essa coisa do Tim Maia, não imito perfeitamente, mas a ideia é trazer uma memória, é uma música que tem muito da história dele, um grande cantor.”
Sempre jovem
Ao vivo, tudo ganhou uma curiosa sonoridade: ao mesmo tempo em que é expansiva e potente, também é bastante concisa, já que são apenas os quatro no palco. Como naquele lançamento de Fa-Tal – Gal Total, Gal também é acompanhada por músicos jovens que absorveram a sonoridade experimental de Recanto para transpô-las no palco. “Foram somente 16 ensaios, o que não é muito, tamanha a integração e harmonia entre a gente”, conta. E, dos três, ela conhecia apenas Pedro, ainda como o filho da Baby, não como músico. A intérprete se derrete em elogios aos três. “Lembro-me de um dia em que Caetano e Moreno se atrasaram e nós chegamos na hora. Fomos trabalhar para não perder tempo. E pegamos a ‘Da Maior Importância’ [faixa que abre o álbum ao vivo]. Começamos a fazer e puf! A música estava pronta”, conta.
Estar ali, próxima da juventude, de uma nova geração, trás “boas energias”, garante ela. “Eu sempre tive uma alma jovem. A minha idade cronológica não combina com a minha idade espiritual. Na cabeça, eu sou mais nova. Eu sempre tive esse ímpeto que é muito natural e nada forçado.” São, afinal de contas, múltiplas Gals, como ela mesma brinca. Múltiplas de fases e múltiplos tempos e espaços diferentes. E, no caso dela, é possível viajar por todas elas com fluência e graça, sem que seja preciso de uma máquina do tempo, mesmo que imaginária. “Maturidade tem coisas boas, mas a juventude é uma delícia”, diz. Questionada sobre a idade interna, Gal se permite alguns segundos pensando. “Tenho 45 anos”. Sorrindo, ela completamenta: “Mas, às vezes, eu tenho 13”.