O Milagre de Santa Luzia mostra o Brasil da sanfona em road movie guiado por Dominguinhos
O imaginário popular lhe dá roupagem nordestina, mas ela vai além, muito além do baião pernambucano - pode cair bem com rap paulista e música típica do Japão, por exemplo. Malemolente como o corpo da sanfona é a história desse instrumento, cuja diversidade de sotaques é tema do documentário O Milagre de Santa Luzia, em cartaz a partir desta sexta, 28, nos cinemas de São Paulo e Rio de Janeiro.
"O filme é, na verdade, um road movie com Dominguinhos pelo Brasil que toca sanfona", afirmou Sérgio Roizenblit à reportagem do site da Rolling Stone Brasil. No caso, o instrumentista de Garanhuns - de onde também veio o presidente Lula - serve de cicerone à viagem, levando a sanfona do norte ao sul do país.
A escolha, claro, é óbvia. Mas também estratégica. Pupilo de Luiz Gonzaga, Dominguinhos é "o maior sanfoneiro vivo do país" - você vai ouvir muito essa frase por aí, e não sem razão. Acontece que o músico também funciona como chave-mestra para tudo o que é canto do Brasil. "Abre portas em qualquer lugar", sintetizou o cineasta.
Caso emblemático é o do paraibano Sivuca, outro respeitado acordeonista, morto em 2006. "Ele estava praticamente morrendo, hospitalizado, com câncer. Morreu logo depois. Sem Dominguinhos, querido de todos, esse contato nunca aconteceria", enfatizou Roizenblit. E como "para ele é muito fácil tocar qualquer coisa", de jazz a baião, o guia desta excursão funciona como ótimo coringa, tanto na Música Popular Brasileira como na música popular brasileira (neste terreno, como bem se sabe, as maiúsculas fazem uma baita diferença).
Fica fácil entender por que Dominguinhos nunca deixou de ser a pessoa certa, no lugar certo para guiar o filme - literalmente, já que ele é avesso a aviões e usou, na maioria do tempo, sua caminhonete para atravessar o Brasil. Pelas estradas do país, uma surpresa foi expor a força de redutos menos tradicionais do instrumento. "Não imaginava que teriam tantos músicos bons no Rio Grande do Sul." No vaivém entre um Brasil e outro, todos ligados pela mesma caixa com fole e diapasão cujo som nos deu hinos como "Asa Branca", de Gonzagão, o diretor contabiliza cerca de 30 viagens.
New York fica aqui
A primeira exibição de O Milagre de Santa Luzia aconteceu em novembro, durante o Festival de Brasília. Saiu sem prêmios principais, mas com um trunfo: na mostra, em que nem os vencedores escapam de ser gongados pelo público (sessão sem vaia é bissexta), foi aplaudido. Sem economia nos decibéis. "Por quatro minutos. O momento mais feliz da minha vida!", confessou Roizenblit.
Fazer um filme no Brasil, sabe-se bem, não é bolinho. Só que os maiores fantasmas de documentarista não eram os de praxe - orçamento apertado e burocracia estafante. Dureza mesmo foi topar a toda hora com uma certa senhora esquelética, de capuz preto e foice em mãos. Além de Sivuca, morreram, desde que o projeto engatilhou, em 2001, os bambas Mario Zan e Marines, além de Patativa do Assaré, poeta e compositor popular que ganhou documentário recente de Rosemberg Cariry.
Se a velha geração está bem representada, seus pupilos também têm vez na produção. Roizenblit lembra de quando o paulistano Gabriel Levy, representante da nova geração de acordeonistas, o levou para maratona em várias casas noturnas com o Mawaca, no qual Levy toca.
Outro "aluno" de Luiz Gonzaga rendeu momento daqueles que grudam na memória do espectador. É quando o paraibano Pinto do Acordeon conta a seguinte história: numa certa festa, chega o camarada de peixeira na mão e cara de poucos amigos. Quer porque quer uma música em inglês - para todos em volta, o mesmo que pedir para cantar o hino nacional em marciano. Até que o sanfoneiro toca versão impagável de "New York, New York", de Frank Sinatra. O milagre de Santa Luzia pertence a todo mundo e ao mundo todo.
Confira o depoimento de Pinto do Acordeon abaixo: