O gaulês se apresentou no Citibank Hall, em São Paulo, na última terça, 13
Um dos cantores mais populares das décadas de 1960 e 1970, o gaulês Sir Tom Jones ficou marcado como uma encarnação viva do entretenimento típico de Las Vegas de outras eras: exagerado e extravagante. Mas Jones, antes de atingir o sucesso, foi criado em meio ao blues, o R&B, o gospel e a country music. É isso o que ele prefere cantar agora. Aos 76 anos, ainda em ótima condição física e com a potente voz de barítono em perfeito estado, Jones abandonou todo o vocabulário sonoro e visual kitsch que o consagrou. Foi que aconteceu em São Paulo, mais especificamente no Citibank Hall, na noite da última terça, 13. Em apresentação inédita e única no Brasil, o artista, naturalmente, cantou vários de seus grandes hits, mas preferiu dar ênfase ao repertório seus mais recentes (e básicos) trabalhos, como Spirit in the Room (2012) e Long Lost Suitcase (2015), ambos produzidos por Ethan Johns, filho do lendário produtor Glyn Johns.
Jones abriu o show às 21h30 com a demoníaca “Burning Hell”, cover do bluesman John Lee Hooker e que preparou para uma jornada pelas raízes da canção norte-americana que viria dali em diante. Jones cumprimentou a plateia: "Na década de 1970, em Las Vegas, eu sempre andava com meu amigo Elvis Presley. Depois do show, eles nos convidava para ir ao quarto dele e cantávamos gospel. Eu aprendi muitas destas canções com ele". Assim, Jones cantou a tradicional “Run On” e seguiu nessa linha de celebração com a agitada “Hit or Miss” (cover da cantora Odetta). Jones, então, voltou à década de 1970 e interpretou “Mama Told Me (Not To Come”), grande hit do Three Dog Night. A canção de autoria de Randy Newman ganhou um novo clima na voz de Jones. Ele seguiu com a vibração gospel cantando a também tradicional “Didn’t it Rain”. Em seguida, o cantor veio com “Sex Bomb”, faixa dançante e com um sabor modernoso, retirada do álbum Reload (1999), cujo sucesso colocou Jones diante do grande público novamente.
O clima ficou melancólico com “Tomorrow Night”, uma balada country chorosa gravada na década de 1950 pelo guitarrista de blues Lonnie Johnson, mas que se tornou popular pela interpretação de Elvis Presley em uma gravação que ele fez na Sun Records. Jones seguiu com o country gospel “Raise a Ruckus” (que teve uma boa participação por parte do público) e mais uma cover balançada de rhythm and blues, no caso, “Take My Love (I Want To Give It All To You)”, do bluesman Little Willie John.
Quem aguardava impacientemente por um hit foi recompensado quando a impecável banda de Jones começou com os primeiros acordes de “Delilah”, que chegou a primeiro lugar no mundo todo em 1968. Mas a canção, lembrada pela letra passional e fatalista, não foi apresentada da maneira dramática que todos conhecem. Em vez disso, os músicos imprimiram à canção um ritmo cigano, algo a la Gipsy Kings, o que tirou um pouco da intensidade dela.
Jones depois veio com “Soul of a Man”, blues de Blind Willie Johnson, uma canção sinistra sobre mortalidade e paranoia. O cantor apresentou uma interpretação emotiva para “Elvis Presley Blues”. “Esta canção foi escrita pela cantora Gillian Welch. É minha homenagem ao meu amigo Elvis Presley”, falou. Tom Jones foi um dos poucos amigos que o Rei do Rock teve em vida e a presença dele no show palpável, não só através do repertório, mas também pela presença de canções com as raízes delineadas na canção black norte-americana, algo que pulsava nas veias do cantor de Memphis.
Sóbrio e comedido no palco, Jones contemplou a vida, a morte e o poder da canção em “Tower of Song”, do canadense Leonard Cohen. A faixa é declaração final um de um artista que está velho e cujos amigos se foram. Ele fala já fez de tudo, já cantou de tudo, deu ao público o dom que Deus lhe deu e agora se despede. Uma sombra sinistra se pronunciou com “Green Green Grass of Home”, canção country que foi gravada por inúmeros nomes, mas que teve mais sucesso na voz de Jones, em 1966. Relatando os últimos momentos de um condenado à cadeira elétrica, a música deu sequência ao clima lúgubre do show.
A atmosfera deprê foi dissipada com a interpretação jovial para “What’s New Pussycat”, tema do filme Que é Que Há, Gatinha (1965) e de autoria de Burt Bacharach e Hal David. “It’s Not Unusual” (1965), outra assinatura sonora de Jones, foi a seguinte. O arranjo da canção foi na linha do pop francês, com direito até ao uso de um acordeom. E Jones sensualizou com “You Can Leave You Hat On”, outra composição de Randy Newman, mas que ficou consagrada com Joe Cocker.
O rock “If I Only Knew” foi mais uma concessão à música dançante que fez a cabeça de Jones décadas atrás. O cantor encerrou a parte principal da apresentação com “I Wish You Would”, original de Billy Boy Arnold, mas cuja gravação mais lembrada é a feita pelos Yardbirds em 1964. Foi uma versão arrasadora – os guitarristas da banda de Jones incorporaram os espíritos de Jimmy Page e Eric Clapton e o solo de gaita fez com que todos se sentissem no Marquee ou em algum clube mod londrino da metade da década de 1960.
Ainda havia o bis e Jones retornou no modo 007 com a trovejante “Thunderball”, tema de 007 Contra a Chantagem Atômica (1965, época em que o agente era vivido por Sean Connery). Enquanto Jones cantava, o telão ao fundo exibia cenas dos mais 50 anos da franquia James Bond. A próxima foi “Kiss”, de Prince, que Jones gravou originalmente em 1988 com The Art of Noise. Este registro ressuscitou a carreira dele e o cantor, apropriadamente, fez a festa dos fãs paulistas ao executá-la.
O final ficou com "Strange Things Happening Every Day", um spiritual tradicional africano que hoje é lembrado pela interpretação da pioneira do gospel Sister Rosetta Tharpe. Jones e sua afiada banda tocaram a música como um agitado boogie woogie e, nesse momento, o público se dirigiu à beira do palco para dançar e saudar o cantor. Jones apresentou os músicos e agradeceu a calorosa recepção por parte dos paulistas. O show durou uma hora e quarenta minutos. Sim, faltaram vários hits, como “She’s a Lady”, "Help Yourself" e “I´ll Never Fall in Love Again”, mas foi um belo show, não só pelo ineditismo, mas também por mostrar um artista que não tem medo de se arriscar e reinventar.