O terceiro disco da banda chegou carregado de significâncias e significados dignos de serem apreciados em uma viagem mental
“Tenho mesmo que pensar se quero mesmo que essa dor exploda, morra e renasça.” O trecho do refrão de “Um e Meio”, faixa do Supercolisor (com Tuyo cantando junto), exprime bem duas mensagens. A primeira são os conflitos internos de quem um dia já amou outras pessoas. A segunda, é quase um aviso: Viagem Ao Fim da Noite, disco do qual faz parte, é sobre sentimentos bons e ruins. Reflexões amorosas (e não apenas românticas) de toda a vivência humana. É “a vida no hoje desesperadamente permeada do ontem e do amanhã,” como explicou Ian Fonseca, frontman.
A banda brasileira (pois cada um é de um lugar daqui) Supercolisorapresentou no sábado, 5 de fevereiro, o terceiro disco, Viagem Ao Fim da Noite. Ian Fonseca (voz e piano), Jérôme Gras (baixo), Henrique Meyer (guitarra) e Natan Fonseca (bateria) apresentam ao público 10 faixas carregadas de “temas como desapego, amadurecimento, medo e existencialismo humano.”
Só para avisar: Viagem Ao Fim da Noite é um disco para mastigar, deglutir, digerir. Cada música é cheia de sentimentos e reflexões, e vale ser apreciada por si só. A banda descreveu o álbum “como uma viagem de carro na qual abrimos a janela para respirar a paisagem.” E passamos por campos da dor, mares de ressentimento, montanhas de sorrisos até chegar ao destino.
Também musicalmente, Viagem Ao Fim Da Noiteé uma mistura musical de sentimentos e sensações. É piano, voz, violão, flauta, assobios. Um balé e uma explosão sinfônica. O mix é bem feito, bem equilibrado, de modo a partes isoladas parecerem unidas, e elementos únicos em cada canto serem harmonia ideal.
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O som bem feito não é novidade do Supercolisor, mas, desta vez, a banda tem um adendo: ajuda de Jérôme Gras, arranjador e produtor musical. Montaram, juntos, o disco, com objetivo de “convidar o leitor a ouvir e vivenciar intimamente cada uma das 10 faixas.” É, de fato, o melhor jeito de apreciar.
Para ajudar na viagem introspectiva, a Rolling Stone Brasil estendeu um convite à Supercolisor: uma rodada de comentários faixa-a-faixa de Viagem ao Fim da Noite. Podemos falar e falar sobre o disco, mas Ian Fonseca o fará melhor. Confira:
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Alô, pessoal que acompanha a Rolling Stone! É um prazer poder falar um pouco sobre essas dez faixas que construímos com tanto carinho pro nosso novo disco, Viagem ao Fim da Noite. Mas é certo também não ser tarefa fácil; cada uma delas existe num universo próprio, conectadas nessa jornada-fio-condutor, como se uma travessia de parada em parada traçada por nós para ouvinte. Tento:
Roteiro de filme – página 1: um jovem em amadurecimento começa a entender que o bom da vida são os outros, e como aquilo com tem real significado são tudo que nós fazemos juntos. “Como será viver se nada é melhor que você?” é uma pergunta ambígua e ambivalente: é para o outro, se entendida como um rompante de paixão, e é para si próprio, se entendida como um reconhecimento da própria arrogância.
Uma canção de peito aberto sobre o processo de desapego do controle que a gente achamos ter sobre o percurso das coisas e dos relacionamentos. Reafirma: seja lá o rumo de tudo, duas pessoas que realmente se amam acabam pensando juntas, como sobrepostas, deixando de ser duas unidades distintas pra terem em si, cada um, uma metade indissociável do outro. Aqui Lio e Lay da Tuyo brilham como um diamante, e, apesar de terem sido “convidadas”, a canção parece ser exatamente pra voz delas.
É sobre a diversão doce e constrangedora do primeiro encontro, do primeiro olhar, da primeira dança, da primeira noite... Talvez até já um tanto alterados, ambos. Todas as analogias diabólicas e angelicais da letra ilustram, como em episódios, o inferno e o céu, a tensão e o relaxamento, do jogo da sedução. Destaque pro arranjo de metais escrito pelo Jérôme Gras e executados pelo naipe liderado por Sergio Coelho da big band do Hermeto Pascoal – um luxo!
Um grito existencial desesperado no refrão, mascarado de canção fofa nos verso. Um desabafo do medo humano e natural de ver aquilo mais valioso desmoronar, e uma confissão de um sonho de leveza e espontaneidade (nunca atingidas) impressos na metáfora de um pássaro inocente e seu voltar pra casa. Os assovios na canção são ilustrações dessa intenção, e a sanfona é um dos elementos que situam a vibração da peça num lugar menos aglomerado e mais íntimo, imaginado, menos poluído pela urbanização.
Se "Torto" era sobre a excitação da novidade, "Sempre" é sobre o a sublimação de um amor profundo, quase de um outro tempo – de um prazer real tão intenso que pode vir da mera imaginação do rosto do outro. O título vem, como num loop hipnótico, da vontade da permanência dessa sensação rara na vida, ou seja, amar alguém para além da sua presença física. Nessa, Leo Fressato vem pra implodir o coração com seu timbre lírico e performance teatral.
Sobre a necessidade de se movimentar, seguir em frente, para o mundo girar e as coisas acontecerem: deixar hábitos, pessoas e ideias desconstrutivas pra trás. Vejo nela um cenário árido no qual é necessário reafirmar um mantra interno de que tudo passa, nada muda em vão, é preciso cruzar as fronteiras pra se conhecer de verdade. No final, ao atingir a velocidade de cruzeiro, entramos numa onda dub onde os versos em francês escancaram a qualidade “estrangeira” intrínseca à vontade de se deslocar continuamente.
Cheia de metáforas com fogo (tanto na parte cantada quanto no texto do Victor Meira), pinta um cenário de destruição e renascimento, e, no meio desse caminho, comenta a necessidade da flexibilidade, como uma chama a se deformar, pra que as coisas se acertem. Um tanto inspirada na situação política do país, mais especificamente do ponto de vista interpessoal. A sessão final da canção é um momento particularmente apetitoso pros audiófilos de plantão – um trabalho meticuloso do nosso mixador e masterizador Bruno Giorgi.
Uma bravata quase cômica, certamente bem-humorada, a respeito da estupefação (injusta) que sentimos quando o outro, ao nosso lado, se sente esquecido. Uma reafirmação do amor cotidiano e da necessidade vital de não se levar tão a sério, se a intenção for manter a sanidade. O filme que a acompanha reforça o arrepio desse reencontro tão previsível e ainda assim (ou talvez apenas por isso) tão emocionante.
Aqui a letra é do nosso querido Maurício Pereira, também interpreta dela, mas posso dar uma leitura: passada Torto (o momento do encontro) há uma segunda tortuosidade, um segundo momento, talvez mais importante e mais cheio de nuances do que a festa histérica do primeiro, que é o da compatibilidade a longo prazo. O Maurício tem um jeito de escrever, pra mim, é puro cinema de arte europeu, mas com um brilho mágico de Hollywood na essência e no clímax – incrivelmente poético e cheio de camadas.
A faixa-título do disco tem quase a estrutura de uma narração roteirizada: um personagem sai de casa de manhã e atravessa o dia até chegar ao escuro total, desnorteado com a grandeza das responsabilidades da vida. A cidade é um mausoléu, um labirinto, mas ele viaja “ao fim da noite até ver a luz renascer”. Como letrista, minha antiga verve “maldita” acho que aqui se faz clara, mas minha recém-chegada verve “otimista” talvez anuncie um novo momento.
Penso serum disco a respeito de partir de um lugar e chegar em outro, daí a viagem ao fim da noite, que pode ser entendida de mais formas do que eu me atreveria a listar. Sem querer soar vago ou inconclusivo, não vejo muita opção esclarecedora a não ser descrever o disco como uma grande reflexão a respeito da vida no hoje, desesperadamente permeada do ontem e do amanhã.
Um abração (de máscara) à equipe da Rolling Stone e a todos os leitores. Estamos muito felizes com a recepção já tão calorosa do disco – obrigado por ouvirem! - Ian Fonseca.
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