Tomados os devidos cuidados, o evento pode oferecer um momento de reflexão sobre a importância da região central da cidade como local de convivência e, mais importante, de confluência
Ruas tão cheias de história e deixadas de lado 364 dias por ano. O centro velho de São Paulo definha, mesmo que as autoridades tomem atitudes (equivocadas?) para ressuscitá-lo. É completamente desaconselhável perambular pela famosa esquina entre as avenidas Ipiranga e São João durante a noite. Em um dia do ano, contudo, isso é possível.
Você já foi à Virada Cultural? Vale a experiência. Ruas fechadas, gente caminhando nas ruas, não há carros e ônibus. Grupos seguem em busca dos melhores shows e ambulantes vendem cervejas a preços mais justos do que vemos em festivais por aí – mas fique longe do vinho, ou o que quer que seja aquilo, ok?
São poucas as cidades do mundo que recebem, pelo menos uma vez por ano, essa tonelada de cultura em atrações gratuitas em sua região mais histórica. Ano passado, a cantora francesa Nadeah, que foi uma das atrações da Virada, estava ansiosíssima para poder ver e entender o que é a Virada Cultural. “Não temos isso em Paris”, disse ela, realmente curiosa para poder ver de perto o que aquele jornalista lhe contava ao telefone.
A Virada é o evento cultural mais democrático da maior cidade do país. E isso não é pouco, não. Ali, a mistura é intensa: número de zeros do salário, cor, bairrismo, time de futebol, nada diferencia um dos outros. Afinal, a ideia ali é apenas se divertir.
Claro, as questões de segurança são importantíssimas e todo cuidado é pouco quando se está por lá. Mas é o mesmo conceito usado dentro de qualquer grande aglomeração de pessoas, seja ela gratuita ou paga: não deixe o celular no bolso enquanto caminha pela multidão, coloque a mochila para frente, preste atenção em quem está ao seu redor. Qualquer um pode entrar na Virada, bem ou mal intencionado. Vale o bom-senso. Evite grandes muvucas, não se enfie em confusão.
Que outro lugar daria a chance para que o público pudesse se emocionar com um show do novato do soul Charles Bradley, que chorou ao se apresentar em 2012, ou a loucura punk rocker do Suicidal Tendencies às 8h de um domingo, na Avenida São João? Neste ano, a festa tem Lobão, Gal Costa e o retorno do Racionais MC's.
Tomadas as precauções devidas, a Virada não decepciona. É o único evento cultural da cidade que conta com o funcionamento do metrô 24 horas. Pode-se ir e vir na hora que você quiser. Quer assistir a um show de rock? Tem. Pagode? Tem também. Soul, funk, brega, música eletrônica? Tem, tem e tem. É democrática ao extremo. Plural e única, a Virada Cultural unifica tribos, seja de tupinambás ou de tapajós.
Veja como será esquema de transporte público durante a Virada.
Mas é o centro o grande protagonista do evento paulistano. A região, vilã durante todo o ano – com seu trânsito, calor e excesso de gente durante o dia, e sombria e perigosa à noite –, sobrevive e ganha novas cores. É como se aquela boemia de décadas atrás voltasse apenas por uma noite. É uma visão romântica, claro, que tende a esquecer da sujeira das ruas e os incômodos para se usar os banheiros, mas é preciso entender a magia que acontece ali.
A Virada oferece a possibilidade de se observar: olhar para cima, reparar em uma paisagem pela qual passamos todos os dias, mas que não vemos verdadeiramente. Construções imponentes, como o Edifício Martinelli, o reformado e iluminado Theatro Municipal, o Shopping Light, o Prédio da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), o Edifício Itália, todos antigos, lindos e desprezados pelo cotidiano apressado.
É um evento que oferece um momento de reflexão sobre a própria sociedade, que se esquece da característica do centro como um local de convivência e, mais importante, de confluência. O ponto de encontro das zonas sul, norte, leste e oeste.
O centro pode ser tão saboroso e único quando outra região da cidade. Não precisa ser chique ou refinado. Ele só não pode morrer e deixar para trás tanta história. E, por enquanto, a Virada é o seu grande momento, é quando o centro recebe a função de protagonista, 364 dias depois de viver o ostracismo de um mero figurante.