"A arte é, por essência, subversiva, ou não seria arte, só ratificaria o que já existe no mundo (...)"
Lorena Reis Publicado em 24/06/2020, às 07h00
Em setembro de 2017, a mostra Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foi censurada pelo Santander Cultural em Porto Alegre após críticas de que, em geral, as obras normalizavam temas como pedofilia, zoofilia e blasfêmia. Na época, o próprio Ministério Público do Rio Grande do Sul concluiu que as obras da Queermuseu não faziam "nenhuma apologia ou incentivo à pedofilia", incentivando que o evento fosse reaberto.
Um mês depois, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, vetou a mostra na cidade, afirmando em vídeo (via BBC News) que um projeto “de pedofilia e zoofilia” não seria aprovado no Museu de Arte do Rio (MAR). Desde então, debates sobre a censura e os possíveis limites da liberdade de expressão se intensificaram cada vez mais em todo o país.
Dois anos depois, em setembro de 2019, Crivella publicou no Twitter (sim, quase um déjá vú) uma ordem para censurar a HQ Vingadores - A Cruzada das Crianças da Bienal do Livro, pois, segundo ele, trazia “conteúdo sexual” explícito para menores de idade. Os quadrinhos, contudo, mostravam dois rapazes se beijando, completamente vestidos. Em nota (via Folha de S.Paulo) a equipe da Bienal afirmou que vivemos numa democracia: “Este é um festival plural, onde todos são bem-vindos e estão representados”.
ES-GO-TA-DA!
— Revista Híbrida 🏳️🌈 (@hibridamagazine) September 6, 2019
Censurada pelo prefeito Crivella por conta de um romance gay, a HQ dos Vingadores "Cruzada das Crianças" teve TODAS as unidades da #BienaldoLivro vendidas.
É publicidade gratuita que vocês queriam, amores? pic.twitter.com/b9HTxtbs9A
Ninguém tinha visto o livro lá dos Vingadores na Bienal até os fundamentalistas doidos postarem
— mari mas pra vc é mariana (@marisalles) September 6, 2019
agora já saiu até no jornal e todo mundo tá sabendo
Ninguém faz mais propaganda gay dos que os homofóbicos
No mesmo ano, o filme de estreia de Wagner Moura como diretor, Marighella, um retrato da vida de Carlos Marighella, um dos líderes da guerrilha contra a ditadura militar brasileira, também foi censurado, como Moura disse à revista Marie Claire: “Dediquei muito da minha vida, do meu dinheiro para fazê-lo. Não vê-lo acontecer por ignorância e brutalidade de uma censura é doloroso”.
A produtora O2 Filmes justificou que os trâmites exigidos pela Ancine [Agência Nacional do Cinema] não foram cumpridos a tempo. No entanto, o ator/cineasta explica que esta é uma forma diferente de censura. “[Ela] usa instrumentos burocráticos para dificultar produções das quais o governo discorda. Não tenho a menor dúvida de que Marighella não estreou ainda por questões políticas”.
A Rolling Stone Brasil conversou com Douglas Henrique Antunes Lopes, professor do Curso de Filosofia do Centro Universitário Internacional Uninter (PR) sobre o significado de censura e como ela se manifesta atualmente.
Oriunda do latim “censura”, a palavra já existia na época dos romanos, usada para estabelecer um controle ideológico e moral entre eles. “A censura é, na verdade, uma privação”, explica o professor. “Um modo inescrupuloso e acomodado de fazer com que seus valores predominem, enquanto a vida democrática exige essa possibilidade de convivência com aquele que é diferente de você. E nós ainda estamos aprendendo sobre isso”.
“Toda forma de Estado vai ter algum mecanismo de controle de opinião, enfim, e isso não é necessariamente negativo. É necessário pensar num controle social. No entanto, quando isso é autoritário, e não democrático, você acaba gerando certas ‘aberrações’, como os Estados totalitários. A censura tem um ar de autoritarismo, mas alguns temas precisam de um dado controle, como, por exemplo, quando falamos de apologia ao racismo ou à violência”, ele continua.
Em janeiro deste ano, Pabllo Vittar revelou que o videoclipe da música “Parabéns” foi restrito pois apresentava conteúdos “impróprios” para menores de 18 anos. Nas redes sociais, a cantora desabafou: “Estou lá, segurando um copo de vodca (...) E a gente sabe que vários outros videoclipes mostram conteúdos muito mais explícitos que não foram restritos ou banidos, nem sequer lembrados. Mas atacam a drag queen a torto e a direito”.
“Não à censura seletiva. Preciso da ajuda de vocês”, ela se dirigiu aos fãs. “Não vai ficar assim. Vou recorrer na justiça, usar todos os meios que puder para trazer de volta meu clipe pro YouTube para que todo mundo possa ver. Porque não tem nada lá que não tenha em qualquer outro clipe do país. Não tem nada lá, pelo amor de Deus. Até quando a gente vai viver isso?”. Segundo o portal G1, representantes do YouTube se defenderam, dizendo que o controle não foi feito pelo site, mas pelo usuário que fez upload no vídeo.
Conar, meu amor, todos os vídeos/publicações de bebidas alcoólicas só podem ser vistas para +18?
— Efrain Procopio (@ProcopioEfrain) January 22, 2020
E a TV? E a internet com as publicidades?
Não faz sentido tal restrição. @pabllovittar parabéns amor "te dou parabéns, mesmo com censura"...
PARABÉNS SEM CENSURA
Para o professor Douglas Henrique, “toda censura é seletiva, porque mira num determinado conjunto de valores, de ideais que ela reproduz. Os ataques são feitos de forma bastante pontual: arte, educação, ciência, tecnologia, direito; tudo aquilo que nos torna civilizados. Quando isso é colocado sob ameaça, o Estado tem vigilância completa quanto às formas de pensar e de se manifestar do sujeito”.
Retomando uma fala do poeta Paulo Leminski, ele afirma que, nesse sentido, a cultura mostra-se anti-social, pois é revolucionária. “Ela quer propor uma nova sociedade. Ela tem essa capacidade de nos revelar, trazer à tona a forma como a sociedade adoece”, diz.
"A história mostra como as sociedades se defendem de toda novidade. Porque as classes dominantes vêem na estabilidade das formas uma espécie de emblema de seu poder. A experimentação das formas é algo maldito e visto como anti-social. E estão certos, realmente. A inovação é anti-social porque propõe uma nova sociedade".
- Paulo Leminski
Walter de Sousa, vice-coordenador do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) da Universidade de São Paulo (USP), disse à Rolling Stone Brasil que, ao longo dos anos, a censura tradicional tentou criar uma "fórmula" para produzir arte, o que, para ele, é impossível, pois não existe um mundo no qual todos gostem das mesmas coisas e entendem as relações sociais da mesma forma. Por isso, a censura atua como um medidor de poder.
Em contraponto, "a arte é, por essência, subversiva, ou não seria arte, só estaria ratificando o que já existe no mundo. Portanto ela precisa ser subversiva para ser inovadora, alterar a ordem das coisas. E é por isso que há quem se sinta alvejado pela arte, de forma a construir muros sobre ela”. Ainda, “a liberdade de expressão não é um fator político, mas humanitário”, revela Walter, acrescentando que, mesmo sendo um direito universal, ela tem seus limites, pois baseia-se justamente nesse "jogo de forças".
“A própria arte deve estar consciente desse confronto quando discorda, por exemplo, de um movimento cultural racista”, argumenta o professor. “Ela sabe que existe um limite para transitar, ali, dentro da liberdade de expressão. Ela sabe até onde pode ir, mas isso é um limite abstrato, não é palpável. E o artista trabalha justamente para romper esse limite com sua propostar artística, de modo a conquistar uma adesão, um consenso. É assim que os tempos mudaram, a cultura mudou...”
Recentemente, admiradores assíduos da franquia De Volta Para o Futuro se revoltaram ao perceber que a Netflix havia censurado a cena clássica do segundo filme, na qual Marty McFly (Michael J. Fox) folheia a revista erótica Oh La La. Na versão editada, no entanto, o conteúdo da revista não era o mesmo - provavelmente para tornar o filme “mais apropriado” para menores de idade, como observou o NME. Muitas pessoas notaram a censura e se manifestaram contra ela nas redes sociais, dizendo que “se a [Netflix] editou desleixadamente essa amada trilogia, quem sabe outros filmes não foram adulterados sem que ninguém notasse?”
Pouco tempo depois, o roteirista Bob Gale explicou que o corte foi enviado por engano: "A Universal enviou para o streaming uma versão estrangeira que nem eu nem Robert Zemeckis [diretor] sabíamos que existia, para um país que tinha algum problema com a capa de Oh La La", disse ele no Twitter.
Here's the @netflix edit of Back to the Future Part 2.
— Justin Proper 🌈 (@TheJustinProper) May 19, 2020
If they sloppily edited this beloved trilogy, WHO KNOWS what OTHER films they've tampered with without you even noticing? https://t.co/Y1F5Wwy13M pic.twitter.com/Yr9mUItJQx
Da mesma forma, o filme Splash: Uma Sereia em Minha Vida, estrelado por Tom Hanks e Daryl Hannah, foi censurado para "caber" no Disney+, como apontado pelo usuário Allison Pregler no Twitter. Aqui, a cena na qual Hanks e Hannah se beijam na praia foi reeditada para eliminar a nudez.
Disney+ didn't want butts on their platform so they edited Splash with digital fur technology pic.twitter.com/df8XE0G9om
— Allison Pregler 📼 (@AllisonPregler) April 13, 2020
Segundo Walter de Sousa, essas plataformas de streaming - que nasceram, principalmente, nos Estados Unidos - acompanham o mercado norte-americano, ou seja, o fato de remover ou restringir uma cena deve-se à tentativa de ampliar o mercado consumidor daquela produção: “Foi o que aconteceu com a adaptação de 50 Tons de Cinza. Tiraram praticamente todas as cenas polêmicas, que inicialmente atraíram o público, para liberar o filme para maiores de 16 anos. Ou seja, o interesse era no mercado, e não em adaptar o livro fielmente. É o que acontece com as redes de streaming. Elas estão interessadas em conquistar o público.”
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