Antes cheio de medo, sustos e grito, o cinema de terror agora aposta em algo pé no chão. Esqueça os pulos, mas não roa as unhas
Yolanda Reis Publicado em 05/06/2020, às 07h00 - Atualizado em 07/10/2021, às 21h39
Houve um tempo que crianças (e adultos) iam para a cama apovaradas com algo do outro mundo. Embaladas pelos longos cabelos de Samara (O Chamado, 2002), pulavam a hora da TV durante a noite, ou então evitavam olhar para o lado em viagens de carro, por medo do ver ali, no meio dos campos, um extraterrestre (Sinais, 2002). Mas as crianças (e adultos) de hoje em dia tem mais com o que se preocupar: o próprio mundo.
Se a década de 2000 marcou a ascensão de filmes cheios de demônios, espíritos malignos, alienígenas e fantasia sinistra, os novos anos 20 vêm para virar isso de cabeça para baixo e tratar do terror de um modo mais “pé no chão” - os elementos assustadores vêm do dia a dia, do convívio com os outros. Ou da própria cabeça, muitas vezes.
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A mudança no tom é algo bastante natural - aconteceu no cinema de terror, antes, algo parecido. Quando o gênero começou a existir, nos anos 1920 (com o expressionismo alemão e a “coleção” ), da Universal), a aposta era em monstros. Drácula, Frankestein, Múmia, entre outros. A tendência se esticou para a década seguinte, com a Era de Ouro dos Monstros da Universal. Mas no final dos anos 1930 veio a decadência do estilo, pouco a pouco.
Depois de alguns anos mornos, o cinema do terror ganhou mais força durante a segunda metade dos anos 1940 e durante os anos 1950. Agora, o gênero ganhou um grandíssimo aliado: o suspense. Um dos principais nomes da época - e também dos anos 1960 - foi Alfred Hitchcock. Criava histórias aterrorizantes e eletrizantes - e passava longe de monstrengos, reunindo-se dentro do medo humano mais puro. Roman Polanski, Francis Ford Coppola, George Romero. Todos nomes a brilharem sangue e terror nas telonas dos anos 1960.
Não demorou muito, porém, para o sangue ser a palavra mais importante do cinema. Nos anos 1970 e 1980, abandonam-se as mazelas sociais e chegam violência extrema, banhos vermelhos, um verdadeiro slasher. Assassinos impiedosos que queriam fazer a plateia se encolher ao ver tripas.
Poucas excessões da sanguinolencia eram as adaptações (agora, anualmente “obrigatórias”) de livros de Stephen King. As histórias dele tinham um pouco de violência, um pouco de humanidade, um pouco de sobrenatural (até então, conjunto pouco explorado nas telas). Carrie e O Iluminado pavimentaram o caminho para o terror dos anos 1990: filmes naada exagerados, mas com um mix de elementos com um único objetivo: frio na espinha. É o caso de Pânico (1996), O Sexto Sentido (1999) ou O Silêncio dos Inocentes (1991).
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Os anos 2000, porém, tiveram uma década inicial bastante marcada por um estilo específico: o terror sobrenatural. Foi a época dos espíritos raivosos, corpos na parede buscando vingança, demônios e tabuleiros de ouija, investigações paranormais. E muitos, muitos jumpscare - “terror” e “susto” quase viraram sinônimo. Exemplos mais famosos são O Grito e O Chamado - mas há tantos filmes com enredo tão parecido que ficaríamos auqi para sempre dando exemplos equivalentes.
Mas, quase um século depois do começo do terror nos cinemas, as pessoas cansaram dos sustos. O cinema nos anos 2010 e, agora, 2020, resgatam os espectadores da mesma maneira de antes, tirando os monstros para trazer a realidade. Há uma nova fase no terror - ela não quer fazer você pular da cadeira… Mas você roerá as unhas.
Os anos 1960 foram memoráveis para o terror pelo surgimento, evolução e auge de alguns dos principais nomes do estilo: Alfred Hitchcock (Psicose, Os Pássaros, Disque M Para Matar), Roman Polanski (O Bebê de Rosemary , Repulsion). Até Coppola, conhecido por outros caminhos, arriscou-se no horror à época.
Às vésperas dos anos 2020, o cinema viu surgir outros fortíssimos diretores de terror. São sangue fresco prestes a derramar mais sangue fresco, como descreveu David Fear ao fazer um balanço dos melhores lançamentos de 2019 para a Rolling Stone.
Assim como os célebres e clássicos diretores, os novos nomes de terror deixam para lá monstrengos e criaturas sobrenaturais para apostar em terrores centrados no habitual. O assustador deixa de ser o desconhecido e torna-se algo a ser encontrado ao olhar para fora da janela do quarto, ou em uma viagem com amigos, talvez num pesadelo ao dormir no ônibus no caminho do trabalho. São temores reais, mesmo quando não são.
Jordan Peele talvez seja o maior exemplo da nova fase-década do terror-pé-no-chão. Aos 40 anos, estrelou pouco mais de uma dezena de filmes. Dirigiu dois. Ambos horrores extremamente aclamados: Corra! (2017), mostra a história de um homem negro em viagem para conhecer os pais da namorada. Percebe os empregados negros da casa, e logo entende como todas as pessoas não-brancas do núcleo são prisioneiras. Estreou com impressionante 99% de aprovação no Rotten Tomatoes.
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Seguindo o sucesso, Peele decidiu dirigir outro terror. O mais recente, Nós (2019) mostra uma família na casa de praia. Mas, ao olharem para fora, veem clones de si mesmos parados, esperando, tentando entrar. Você não vai pular de susto - mas sentará na pontinha da cadeira tentando entender o desenrolar bizarro do terror macabro.
Junto de Peele, há Ari Aster. Soma apenas 34 anos, e também tem só dois filmes no catálogo. Mas, assim como o colega de profissão, a dupla já o colocou num patamar de sucesso. Sua estreia foi em 2018, com Hereditário. No longa, uma família se depara com acontecimentos inexplicáveis e surpreendentemente macabros após a morte da figura enigmática que era a mãe da protagonista. Até que o incompreensível se torna assustadoramente visível. No ano seguinte, veio Midsommar, sobre um grupo de antropólogos visitando uma vila sueca onde, no verão, quase não há noite, e as pessoas vivem de modo simples e ritualístico. Até gente começar a sumir.
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Peele e Aster são dois nomes de muitos num padrão de filme (medo por medo, e não pelo terror irreal). Mas há muitos, muitos outros da mesma escola: Richard Shepard (The Perfection e a nova adaptação de Twilight Zone); Robert Eggers (O Farol, A Bruxa) e a brilhante Issa López (Os Tigres Não Têm Medo; Todo Mal) são alguns exemplos da nova onda.
Talvez seja importante adicionar uma nota de rodapé, aqui: embora tenha vindo com força e impressionado, o terror pé no chão não foi a única vertente do medo dos anos 2010, nem da próxima década. No estilo, há várias franquias impressionantes e divertidas (Invocação do Mal, Brinquedo Assassino) e as adaptações bate-ponto de Stephen King (It: A Coisa, Cemitério Maldito, sempre mais um Carrie, Doutor Sono). São filmes divertidos e horripilantes - mas num molde que fica cada dia mais gasto.
Embora Ari Aster tenha sentado duas vezes na cadeira de diretor e feito trabalhos magníficos, sua influência no novo terror vai muito além dos poucos títulos. O cineasta ajudou a levar o estúdio A-24 para praticamente todos os holofotes de Hollywood. A empresa, hoje, é conhecida como “a cara” do terror pé no chão.
O estúdio, formado há apenas oito anos, começou a ganhar relevância em 2015, ao co-produzir o ganhador de Oscar O Quarto de Jack (embora Universal leve a bolada pelo longa). No mesmo ano, produziu Amy, documentário sobre Amy Winehouse. Em 2016, conseguiu outro sucesso com o premiadíssimo Moonlight.
Mas 2016 foi importante por algo além disso. Naquele ano, foi a estreia de A Bruxa. O filme mostra uma família extremamente católica e puritana. Em 1630, são expulsos na comunidade e precisam recomeçar a vida - mas o filho caçula some antes de ser batizado, e a mãe acusa a filha mais velha de ser uma bruxa e tê-lo matado. A história não apela para o horror visual - e sim para a própria história. Foi um sucesso absoluto num meio em que há tempos não se via algo assim.
Nos anos seguintes, A-24 continuou lançando diversos filmes (alguns, como Lady Bird, com ótimas respostas do público e crítica). Mas sua joia tornou-se o terror. Hereditário (2018), Under the Silver Lake (2018), Midsommar (2019), O Farol (2019), In Fabric (2019)... Um currículo de peso. Em comum, toda a questão de explorar os medos mais reais.
A grande aposta do estúdio, que ora distribui, ora produz, são filmes de terror com uma qualidade impecável. Se nas últimas décadas um enredo pouco criativo sustentava-se com sustos e fantasmas de CGI, agora nada menos do que a perfeição é esperada. É impossível assistir Midsommar ou O Farol, por exemplo, e não se impressionar com a beleza dos cenários bem pensados e a maravilhosa fotografia (deste último, em preto e branco) conversando com quem assite.
Diversas produções do estúdio, inclusive, reacenderam uma discussão enterrada por muitos anos: por que terror não concorre ao Oscar? Durante a década de 2000, parecia justo - como O Grito ou Bruxa de Blair concorrerriam se não prezavam qualidade absoluta? Mas, agora, a decisão parece injusta, pois a direção e cuidados artísticos são, sem dúvidas, dignas de um Oscar.
Talvez, com o crescimento irrefreável da nova fase do terror pé no chão, a Academia reavalie um ou dois preceitos antigos. Afinal, esqueça o medo que sempre teve - você não encontrará a Samara no novo terror. Apenas cenas de encher os olhos.
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