A 18ª edição do evento registrou um encontro geracional da cultura do hip-hop
Nicolle Cabral, de Ribeirão Preto* Publicado em 17/06/2019, às 19h30
Lado a lado, no alto do palco, Emicida, Rael e Mano Brown tinham diante de si 65 mil pessoas. O relógio já se aproximava de 1h45 da manhã de domingo, 16, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Pouco mais de 12 horas de música depois, o festival João Rock encerrava a sua 18ª edição com dos principais três rappers do Brasil.
Como se não fosse emblemático o bastante, subiram ao palco também Djonga e Rincon Sapiência. Ao todo, eram cinco rappers ali, em um dos maiores festivais do Brasil, no horário mais nobre, em uma programação que incluía Pitty, Capital Inicial, Legião Urbana e CPM 22.
Aquela imagem se tornou um retrato dessa edição de maioridade do João Rock e também da direção tomada pela atual música brasileira. "Pretos no topo", como anunciava Djonga, o rapper mineiro, caçula dos cinco e avalanche nas redes sociais, em "O Mundo É Nosso", música lançada, em parceria com o BK', no seu disco de estreia, Heresia, de 2017.
Um novo capítulo da história se fez escrito ali, no Parque Permanente de Exposições de Ribeirão Preto, cidade localizada a pouco mais de 300 Km de São Paulo. Foi a primeira vez um evento dedicado à música nacional desse porte, com transmissão ao vivo para um canal por assinatura (o canal Bis) dedicou tanto espaço para a cultura hip-hop.
Emicida e Rael foram headliners, ou seja, as principais atrações da edição, em show para o qual Mano Brown era anunciado como uma participação especial. Além desse slot do line-up dedicado ao rap, o festival também trouxe Marcelo D2 e dedicou a programação de um palco secundário, o Fortalecendo a Cena, em partes ao rap: passaram por lá, por exemplo, Rincon Sapiência, Djonga, BK’ e Filipe Ret.
A verdade é que, com o tamanho da reunião, tivemos o santuário que o mineiro Djonga profetizou. O verso de "Hat-Trick", em Ladrão, é capaz de traduzir o que se viu e ouviu ali: “E dizem que união de preto é quadrilha / Pra mim é tipo um santuário / Quem pensa diferente: sanatório”.
Foi Rincon Sapiência quem abriu a programação do gênero no festival. O rapper exibiu sua malemolência e deixou o seu recado ao cantar a faixa “Placo” com o verso “Cabeça de nego não é degrau”.
O fim da apresentação do rapper da Zona Leste de São Paulo, contudo, foi interrompido de forma abrupta pela organização do evento e teve o som do seu microfone cortado depois de ter passado alguns minutos a mais do que o estabelecido pela programação. O mesmo aconteceu com o carioca BK'.
Na sequência, Djonga trouxe versos cortantes - para quem se sente atingido por eles. Cantaram, ele e a plateia, debaixo de um sol forte do interior paulista, o verso de ataque, transmitido pela TV ao vivo para todo o País: “fogo nos racistas”. O recado não poderia ser mais claro. O rapper também apresentou canções da sua trupe DV Tribo, do disco O Menino Que Queria Ser Deus (2018) e do seu mais recente projeto, Ladrão (2019).
Quando a noite chegou, o carioca, BK', apresentou a sua turnê Gigantes, a mesma que fez barulho no Lollapalooza 2019, embora na ocasião tenha sido escalado para tocar em uma faixa de horário menos nobre e mais cedo, com as faixas "Novo Poder", "Porcentos", "Titãs" e "Vivos". Também incluiu no setlist o já considerado pela crítica especializada e público um clássico do rap contemporâneo o disco Castelos & Ruínas (2016).
O palco principal do João Rock, no seu encerramento, foi inteiro do Emicida, Rael, e o ilustre convidado da noite Mano Brown, que subiu ao palco para cantar os clássicos "Nego Drama" e "Vida Loka (Part 1)” ao lado dos dois rappers.
Logo no início da apresentação mais esperada da noite, Emicida e Rael subiram ao palco e projetaram ao fundo um trecho do filme Ó, Pai, Ó de Monique Gardenberg, em que o personagem Roque, interpretado por Lázaro Ramos, apresenta um clássico diálogo do cinema com o Boca (Wagner Moura) sobre racismo:
“Eu sou negro sim. Mas por acaso negro não tem olhos? Negro não tem mão, não tem pau, não tem sentimento, não come da mesma comida? Não sofre das mesmas doenças, não precisa dos mesmos remédios? Quando vocês dão porrada na gente, a gente não sangra igual? Quando vocês fazem graça, a gente não ri? Quando vocês dão tiro na gente, a gente não morre também? Então, se em tudo a gente é igual, nisso vamos ser iguais.”
Entre sucessos dos rappers, como “Pantera Negra” (2018) e “Ela me faz” (2013), Emicida comentou a importância do encontro geracional do rap no evento. “A gente fazia isso [rap] quando não tinha nada. Não tinha nenhuma estrutura, não tinha essas caixas, o telão. Só vários meninos e meninas apaixonados pelo poder da transformação que a cultura hip-hop proporciona”, explicou, no palco, diante da multidão.
“A gente tá aqui hoje nesse palco para dar continuidade para um sonho que gente deu a vida inteira para que isso acontecesse, gente igual o Sabotage, gente igual o Chorão, que incentivou o rap pra caralho. Então vamos falar para ecoar nessas caixas gigantes, pra esse mar de gente, obrigado. Obrigado por acreditarem na cultura hip-hop", acrescentou.
Há quatro décadas, surgia a cultura hip-hop no Brasil. Uma cultura capaz de mexer com a auto-estima do jovem negro que vivia nas periferias da cidade e buscava sua identidade por meio de manifestações artísticas para se expressar em uma sociedade minada pelo racismo.
Um dos pontos de ebulição do rap na cidade de São Paulo, foi a estação de metrô São Bento e a Galeria 24 de Maio. Ali, as primeiras batalhas de rap despontaram com MCs e o break dance. Nessas reuniões, as icônicas figuras dessa cultura, como os integrantes do Racionais MC’s, Thaíde e DJ Hum, estavam presentes.
Ao relembrar da época em que adentram nesse universo e participavam das batalhas, Emicida contou: “Era eu, o Rael, o Criolo, Rashid e Projota segurando uma lâmpada e só”. Rael, depois do discurso, acrescentou: “Você era o melhor na rima”, aponta para Emicida, “Esse cara ganhou 17 batalhas da gente”.
Marcado pela autenticidade, o rap, desde o surgimento, é responsável por retratar a realidade das periferias e o estilo de vida dos jovens negros. Por estarem inseridos em uma sociedade racista e defensora de uma “moral dos bons costumes”, a cultura do hip-hop foi, e de certa forma ainda é, marginalizada no Brasil.
Durante muito tempo, o rap foi considerado - pela parcela branca e de classe média alta da população - um tipo inferior de manifestação cultural, o que fez com que as tentativas de deslegitimar o movimento fossem recorrentes na cena do gênero. Assim, grande parte dos grupos que se juntaram para fazer rap permaneceram na cena independente, afastados da indústria musical mainstream.
Esse cenário se transformou, de certa forma, quando os artistas Marcelo D2, Rael, Emicida e Criolo - todos presentes no line-up da 18ª edição do festival, exceto o último, aliás - tentaram diminuir a distância entre o gênero e a indústria musical, além de fomentar continuação da construção de uma identidade nacional do rap criada inicialmente pelo Racionais MC’s, Sabotage, RZO, MV Bill. Um dos pontos que estimulou a profissionalização do rap, foi a iniciativa do Emicida que, em 2008, fundou a gravadora Laboratório Fantasma.
Hoje, o gênero está “na boca de quem tem preconceito pra caralho”, como disse o rapper mineiro Djonga, na sua estreia no festival João Rock. No seu discurso está a ideia de que depois de muito tempo, enfim, palavras como "ladrão", "jovem" e "negro" não estão relacionadas à violência nos grandes veículos de comunicação, e sim, com a criação de uma identidade cultural, linguagem e espaço no nosso país.
O João Rock então, usou essa desconstrução como um farol e, de certa forma, deu atenção para essa cultura do hip-hop. Mas por que, desta vez, esse momento pode ser considerado histórico? Vamos lá: O João Rock acontece há 18 anos e já recheou os palcos, várias vezes, com os mesmos artistas. Por exemplo, CPM 22, O Rappa e a Pitty já se apresentaram nove vezes cada, a última, inclusive, marca a edição sendo a única mulher do line-up (vamos falar sobre isso mais pra frente) e Capital Inicial e Skank seis vezes cada.
Ou seja, para um festival que apresenta um formato mainstream, com um line-up de artistas de rádio e um público majoritariamente branco, trazer a atenção para uma cultura, que durante anos vem sendo deixada de lado por parte da indústria fonográfica, curadoria de festivais e dos veículos de comunicação, é um passo.
Apesar de ainda estarmos caminhando lentamente com essas mudanças, a indústria fonográfica já apresentou efeitos. No início do ano, Dados dos Produtores Fonográficos Associados (Pro-Música Brasil) apresentaram um crescimento de 15,4% das receitas no setor de música gravada no Brasil entre os anos de 2017 e 2018. Em relação à escala global, a Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) registrou a marca de 9,7% de crescimento, que representa o maior crescimento na indústria da música desde que a IFPI começou a contabilizar esses dados em 1997.
Os dados se devem ao serviço de streaming, que no Brasil, apresentou um aumento de 38% em um ano no faturamento do setor, e atualmente, chega a 69,5% no total. Em uma semana, por exemplo, as faixas do terceiro disco da carreira do Djonga, Ladrão, chegaram a 1 milhão de plays. Ao fazer uma comparação, em relação ao acesso e distribuição desse conteúdo, em 1993, quando o Racionais MC's teve o seu primeiro disco produzido gravadora Zimbabwe Records, ele foi divulgado e distribuído diretamente nos shows do grupo.
Quando falamos em festivais, só em 2019, o Lollapalooza, por exemplo, tentou iluminar o espaço para o hip-hop com Kendrick Lamar, Post Malone, Gabriel o Pensador, BK' e Rashid. O João Rock apostou no mesmo. Embora o público do festival não tenha mudado, existiu uma representatividade que abriu espaço para essa transição acontecer.
Falando em representatividade, outro ponto necessário dar atenção é a falta de mulheres em um line-up com 23 artistas. Apenas a baiana, Pitty, esteve presente nesta edição do festival e a artista, em 2017, já havia anunciado que desejava que no ano seguinte mais mulheres estivessem na programação.
Afinal, apesar da inclusão que o rap proporciona, não significa que o machismo dessa indústria musical não esteja presente e o festival não observar o crescimento exponencial de mulheres fazendo rap foi um descuido. Negra Li, Tássia Reis, Drik Barbosa, Stefanie e Karol Conka vem transformando a cena ao lado dos nomes presentes no evento, e claramente poderiam ter somado esta edição que marcou um novo momento para o gênero no país.
*A repórter viajou a convite da organização do festival
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