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À Sombra da Religião

Vivendo quase isolados, os judeus da Etiópia foram reconhecidos há menos de sete décadas pelos rabinos de Israel, mas sempre conservaram vivos os seculares costumes judaicos na África oriental

Edgardo Martolio Publicado em 11/06/2013, às 14h55 - Atualizado em 25/06/2013, às 13h19

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<b>ÊXODO RELIGIOSO</b> Nas décadas de 80 e 90, o governo de Israel promoveu o resgate de 35 mil judeus da Etiópia para a Terra Santa. Hoje, ainda existem mais de 2 mil deles que aguardam ser chamados no país africano
<b>ÊXODO RELIGIOSO</b> Nas décadas de 80 e 90, o governo de Israel promoveu o resgate de 35 mil judeus da Etiópia para a Terra Santa. Hoje, ainda existem mais de 2 mil deles que aguardam ser chamados no país africano

São tantas pessoas ao redor que a sensação é a de estar em uma festa de Réveillon na praia de Copacabana. Mas estou a 10 mil quilômetros do Brasil, na Etiópia. É sábado de manhã e não para de chover. ? “Senhor, senhor, para você: tenho um cálice da Igreja Copta. Preço muito bom”, diz um homem negro, magro e de estatura mediana, vindo na minha direção como se fôssemos conhecidos de longa data. Ele corre e grita alegremente, falando um italiano enferrujado, como o meu, mas o suficiente para estabelecermos um diálogo. Eu havia acabado de chegar, com o intuito de observar e conhecer o lugar, e não queria comprar nada. Mas, naquele momento em que o rapaz, chamado Shlomo, se apresentou sorridente, com um paletó de linho arruinado pela chuva, intuí que aquele dia mudaria de rumo.

Estamos em Adis Abeba, a capital da Etiópia. Uma década antes, no Caribe, conheci de perto a cultura rastafári, originada precisamente no país africano. A viagem despertou minha curiosidade pelo chamado Chifre da África, a região nordeste do continente, que engloba Somália, Etiópia, Djibouti e Eritreia, e que tanto inf luenciou Bob Marley. De minha mãe herdei o interesse de ver o famoso esqueleto de Lucy, um dos mais antigos vestígios humanos do planeta, no Ethiopian National Museum. Também queria conhecer Abebe Bikila, o atleta que, descalço, ganhou a maratona de Roma nas Olimpíadas de 1960. Mas, até então, não sabia que lá, em território etíope, encontraria o maior mercado a céu aberto do continente africano.

Foi no chamado Merkato que me deparei com os negros judeus da Etiópia – Shlomo era um deles e se orgulhava de suas origens. Eles vieram atrás de mim, querendo vender maravilhas – e, também, “gato por lebre”.

Antes de ir ao Merkato, o conselho era evitar as barracas que pareciam trazidas do Paraguai, ofertando tênis e relógios falsos, e buscar as lojinhas que vendem incensos e temperos, como a famosa pimenta local, a berbere, base do prato nacional mais conhecido, o doro wat, feito de frango.

Ninguém havia falado sobre os rapazes que tentavam vender, entre outras peças encantadoras, acessórios da Igreja Ortodoxa Copta e da Igreja Ortodoxa Etíope. Eles mesmos se apresentavam como “negros judeus”, tentando passar a ideia de “bons comerciantes” – o que efetivamente são, pois comprei até aquilo que não desejava.

Era a época das chuvas em Adis Abeba, o que dificulta bastante a circulação no mercado etíope. Lá, grande parte das ruas é de terra, e as lojas não passam de barracas de feirantes. O curioso é que, turisticamente, a Etiópia é conhecida como “a terra de 13 meses de sol”, o que não é exatamente verdadeiro.

A precariedade do Merkato a maioria dos turistas, especialmente as mulheres, que são aconselhadas a evitar o local por causa dos roubos. Os mercadores não são simpáticos, a menos que você compre alguma coisa deles. As figuras longilíneas, de lábios carnudos e dentes salientes não distribuem sorrisos. É aí que entram em cena os Beta Israel, como são chamados os judeus de origem etíope. Falantes e carismáticos, eles rapidamente começam a sorrir e, com uma lábia irresistível, vão arrastando os clientes para seus armazéns. Lá, há um espaço reservado, aonde levam apenas os “clientes VIP” (na verdade, todos que abordam), a quem fazem ofertas supostamente “exclusivas”. Uma falcatrua bastante conhecida, mas na qual muitos visitantes já caíram ao menos uma vez.

Entre as intrincadas ruazinhas do Merkato, eles oferecem café e Katikala, um licor destilado típico da Etiópia, e começam a desfilar seus artigos, a maioria ornamentos religiosos realmente cativantes. Parecem objetos extraídos de cofres antigos, desenterrados há 200 anos, a exemplo dos que são mostrados em filmes como Os Caçadores da Arca Perdida.

Eles contam que o ancestral dos Beta Israel viveu entre 2.600 e 3.100 anos atrás, período que coincide com a existência de Aarão, irmão de Moisés. Mas, apenas em 1947, eles foram reconhecidos pelos rabinos de Israel (askenazis e sefarditas). Religiosamente, mantiveram os costumes da época mosaica, período em que viveu Moisés, seguindo os rígidos ensinamentos da Torá, o texto central do judaísmo.

Até 1974, quando foi deposta pelos revolucionários, a família real etíope proclamava-se descendente de Makeda, a rainha de Sabá, e do rei Salomão, de Israel. Melenik, filho do casal, foi o primeiro imperador da Etiópia. Há lendas que sustentam que a rainha de Sabá era negra e os Beta Israel sempre se reconheceram como herdeiros dessa relação entre realezas. Por outro lado, a casta nobre da Etiópia se converteu ao cristianismo no século 4 d.C. Eles, diferentemente dos lembas sul-africanos e outros povos, não seriam oriundos do que hoje é o território de Israel – não seriam judeus que foram para o Chifre da África, e sim negros africanos que adotaram o judaísmo há mais de cinco séculos.

Também existe a hipótese de que os Beta possam descender da tribo perdida de Dã, tendo como ancestrais hebreus que fugiram de Israel para o Egito depois da destruição do Primeiro Templo em 586 a.C., pelos assírios, e acabaram na Etiópia. História e mitos se confundem. É difícil saber onde termina a realidade e onde começa a lenda.

Do grupo que me atende, o alto e magro Inbaram é o único que tenta reforçar essa teoria, a dos Danitas, e relata a viagem de seus antepassados. “Nossos familiares hebreus permaneceram por séculos no Egito, inclusive ajudando Cleópatra na guerra contra Cesar Augustus. A tradição oral é nossa única prova”, ele afirma. “Derrotados nessa guerra, alguns fugiram para o sul da Arábia, daí para o Iêmen e outros para o Sudão, mas pararam aqui, na Etiópia, perto do lago Tana. Somos negros porque descendemos de Abraão, que era negro.”

Continua a chover no Merkato, também chamado por eles de Addis Ketema (ou Cidade Nova, em português). O lugar mais confortável é a tenda onde já bebo meu terceiro café. “O que o mundo deve entender é que ser judeu não é raça. Nossa raça é negra e nossa religião judaica. Portanto, somos, sim, negros judeus”, explica Shlomo. “Há judeus de todas as cores, mas, como a maioria em Israel é branca, muitos acham que só os brancos podem ser judeus. Deus não faz distinção entre os homens por cor ou condição social; todos são iguais perante Seus olhos.”

Inbaram pergunta se conheço alguns lugares bíblicos. O sonho dele é visitar o Mar Vermelho, que Moisés abriu em duas metades, mas ele parece congelar quando descrevo Jericó. “As muralhas...”, sussurra, como quem menciona algo impossível. Segundo o Livro de Josué, a cidade foi amaldiçoada. “Somos judeus, aceitamos a fé judaica, consideramos os ensinamentos do judaísmo – a ética, os costumes, a literatura. Fazemos jejum no Dia do Perdão, acreditamos em um Deus pessoal que supera a nossa compreensão, e cremos que o homem seja feito à imagem de Deus.” Enquanto fala, coloca em minhas mãos um raro e inteligível livrinho da Igreja Copta que, claro, está à venda.

Folheio o livro e lhe pergunto o que é pecado para eles. “É uma ofensa contra Deus, pela qual deve ser oferecido um sacrifício expiatório.” Digo que esse é um conceito muito antigo e que, com o passar dos anos, o pecado para os judeus se tornou algo mais terreno. Ele responde afirmando que “a tradição judaica separa os pecados contra os semelhantes e os pecados contra Deus”. E fica sério.

Shlomo volta a intervir. “Hoje, o judaísmo acredita na imortalidade da alma e praticamente não aceita a ideia de que no futuro nos espere o céu ou o inferno”, afirma.

Ele relembra o dia do Bar Mitzvá e conta que, nas festas, recita o Kidush (a bênção que é dita sobre o vinho nessas ocasiões). Shlomo também fala sobre a família dele, do respeito e consideração que tem pelos pais e avós. Diz que ama a mulher e que deseja ter filhos.

Aponto uma contradição: aquele era um sábado e ele não estava dedicado ao mundo íntimo, de paz e serenidade, que o judaísmo sugere para esse dia. Ele retruca, ironicamente, com um ditado tradicional de sua igreja: “Mais do que Israel guarda o sábado, o sábado guarda Israel”. Sábado é o dia que se reserva para repouso espiritual e para um intervalo no cotidiano, lembrando que a necessidade de ganhar a vida não deve tornar as pessoas cegas diante da necessidade de viver. “Mas preciso vender minhas coisas, aos sábados são mais de 50 mil pessoas que visitam o Merkato”, ele argumenta. E completa a justificativa dizendo que, se eu visitasse sua casa, veria que lá há, todos os sábados, “vinhos doces para a bênção, pães trançados, uma toalha de mesa mais alva do que a sua pele, velas acesas, nossa melhor louça e flores em um vaso bonito”.

Apresenta-me, a seguir, uma versão do Primeiro Livro de Enoque (que seria ancestral de Noé) e pinturas brilhantes onde o dourado chama a atenção, como nos quadros de Gregory Fink, o britânico que faz sucesso no Brasil. A arte cristã ortodoxa etíope realmente é única pelas suas reminiscências bizantinas e pela inf luência das tradições hieráticas egípcias.

Por poucos dólares, tentam-me com um jogo de copos sagrados do rito bizantino, um cálice poterion, uma lanceta – faca menor com empunhadura em cruz, usada pelo pastor para cortar o pão –, o famoso asterisco, uma colherinha com a qual se distribui a comunhão, entre outros itens. Há também frascos com água de rosas mais uma vasilha para a crisma, um incensário com correntes e uma jofaina, que é usada para lavar as mãos do bispo.

Quando Shlomo e Naram trazem o último café, mostram uma bela cruz de madeira, um leque de metal usado para ornamentar o altar e dois pequenos candelabros. Não sou consumidor compulsivo, caso contrário compraria tudo sem pestanejar. A razão para eles venderem tantos elementos da Igreja Copta é o fato de ela conservar as práticas judias, como a circuncisão, o regime alimentar da lei mosaica e o domingo sabático. Afirmo que não levarei mais nada e que, se insistirem, devolverei o que já comprei. “O profeta Jeremias exortou seus seguidores a procurarem a prosperidade da terra que habitavam. E que eles, como judeus, sempre sentiram a obrigação de participar plenamente da vida da comunidade. E sua participação é vender”, justifica Shlomo.

Continua a chover e a noite se anuncia. Lá fora, volto a escutar as vozes que rondam o lugar: “Senhor, senhor, preço bom!” Mas sigo em frente. Fui convidado por outro conhecido para jantar carne crua com uísque, uma receita local muito falada: a vaca inteira fica pendurada, você indica qual parte deseja, o cozinheiro faz o corte e o serve junto com um pote de tempero e um copo de uísque. Horrível. Lamentei por ter ido e mais ainda por ter interrompido minha conversa com os judeus do Merkato.