Ao completar 70 anos, Wanderléa celebra o passado, reflete sobre tragédias pessoais e faz projeções para o futuro
"Eu me sinto revigorada." Com essa frase, Wanderléa define seu estado de espírito depois da participação na Virada Cultural, no dia 21 de maio, em São Paulo. Na ocasião, ela apresentou no Theatro Municipal a íntegra do cultuado álbum Feito Gente, lançado em 1975. Para a cantora, tirar a poeira do disco foi algo catártico. “Esse LP foi gravado em um momento muito difícil para mim”, explica. “Naquela época, pouca gente dava atenção aos chamados compositores ‘malditos’, como Jorge Mautner, Gonzaguinha e Luiz Melodia, todos incluídos no trabalho.”
A conversa com a Rolling Stone Brasil ocorre dois dias depois do show. Wanderléa está animada com seu atual momento e demonstra uma grande expectativa em relação ao que vem pela frente, especialmente em um período tão simbólico: no dia 5 de junho, ela completa 70 anos, com vigor e mente renovados. “Estou em minha plenitude e repleta de frescor. Eu me defino com uma adolescente que se juntou à alma de uma cigana centenária”, brinca.
Para os mais velhos, naturalmente a cantora será a eterna Ternurinha, ícone da Jovem Guarda, cujo apelido surgiu por causa da música “Ternura”, versão de “Somehow It Got to Be Tomorrow Today”, da norte-americana Pat Woodell. Mas, assim como aconteceu com o amigo e parceiro Erasmo Carlos, ela se renovou, despertando o interesse das novas gerações. Isso vem ocorrendo principalmente por causa da redescoberta dos álbuns que gravou na década de 1970. Quando originalmente lançados, ...Maravilhosa (1972), Feito Gente (1975), Vamos Que Eu Já Vou (1977) e Mais Que a Paixão (1978) não obtiveram a mesma repercussão do bem-sucedido material que ela gravou durante o reinado da Jovem Guarda, já que boa parte do público ainda se identificava com a época em que a artista entoava inocentes canções de rock e baladas doces. O mundo, no entanto, girou juntando elementos de groove, samba-rock, jazz e rock progressivo, esses álbuns posteriormente ganharam um público jovem e diversificado, sempre ávido por novidades.
Na década de 1960, a mineira Wanderléa Charlup Boere Salim se tornou um dos maiores ícones femininos da cultura pop brasileira. A jovem descendente de libaneses aparecia nas capas de revistas de circulação nacional, tinha uma boneca feita à sua imagem e uma linha de roupas. O cabelo loiro e o visual mod londrino que ostentava eram vastamente imitados por garotas adolescentes.
Quando Jovem Guarda estreou, em agosto de 1965, na TV Record, a cantora se viu diante da responsabilidade de comandar um dos programas de maior audiência da televisão brasileira. E fazia isso ao lado de Roberto e Erasmo Carlos, os dois maiores astros da época. Wanderléa não esconde que, com tamanha exposição, havia também muita pressão sobre os ombros dela. “Naquele tempo, todas as mulheres queriam ser Wanderléa”, ela reflete. Crescendo em Governador Valadares, Minas Gerais, em um ambiente conservador, a moça se aventurou a ser cantora no Rio de Janeiro e em São Paulo e deixou as amarras para trás. “Existia uma ditadura familiar naquele tempo. E eu só queria mesmo era ser livre. Acredito que com o meu jeito eu tenha contribuído para a soltura e para a autoestima da mulher brasileira.”
Hoje, Wanderléa se apresenta resgatando os discos cultuados, além de canções mais recentes. Mas ela não deixa de lado a matéria-prima que a consagrou na Jovem Guarda. Hits como “Pare o Casamento” e “Prova de Fogo” ainda garantem a presença dos antigos fãs em seus shows. “Eu enho um compromisso com aqueles que viveram o período e gostam daquelas músicas”, pondera. No entanto, a artista afirma que a roupagem musical não tem nada de nostalgia. “O Lalo Califórnia [marido de Wanderléa] criou novos arranjos para aquelas músicas. Assim, eu canto todos os sucessos e os lados B de uma forma diferente.”
Para além dos hits e da consagração, a cantora enfrentou perdas e tragédias. Wanderlene, a irmã mais velha dela, morreu vitimada por uma bala perdida quando a futura cantora tinha 10 anos. Até hoje, Wanderléa fica com a voz embargada ao relatar o episódio. Nos anos 1970, Nanato Barbosa, filho do apresentador Abelardo “Chacrinha” Barbosa com quem ela se relacionou por um longo tempo, ficou paraplégico após um acidente. Tempos depois da separação, Wanderléa se casou com o músico chileno Lalo Califórnia. O casal teve três filhos: Leonardo, Jadde e Yasmin. Em 1984, aos 2 anos, Leonardo morreu afogado na piscina da casa. Em 1994, quem partiu foi o irmão da cantora, Bill, que sofria de aids. Ele era estilista, confidente e braço direito dela.
Uma das formas como Wanderléa enfrentou os demônios e afastou a depressão à espreita foi escrever. Na época da morte de Bill, ela começou a colocar no papel tudo o que sentia. A princípio, era apenas um desabafo. “Comecei a escrever como terapia. Eu vivia muitas coisas tensas”, relembra. Com o tempo, ela percebeu que os escritos poderiam servir de base para uma possível autobiografia. Em algumas ocasiões, cogitou o lançamento do livro, mas sempre acabava desistindo. Recentemente assinou um contrato com a Editora Record, que deve colocar a obra no mercado entre o final deste ano e o início de 2017.
“Quando eu imaginava o livro, pensava em certos aspectos da minha vida e me questionava: ‘Será que isso vai interessar a alguém?’”, confessa. Wanderléa aos poucos mudou sua visão e passou a acreditar que revisitar os traumas de maneira franca poderia ser positivo. “A morte do meu filho e do meu irmão me abalou muito. No caso do Bill, aquela foi uma época em que as pessoas ainda estavam tentando entender a aids. Ele ficou dez anos sofrendo com a doença, mas se manteve ativo até o fim, me ajudando com meu figurino e outros aspectos da minha carreira.”
A cantora não se preocupou apenas com o conteúdo das páginas mas também com o formato. “O problema é que eu tinha escrito tudo de um jeito muito solto. Eu precisava de alguém para organizar os capítulos e checar as datas e a cronologia.” Ela chamou o jornalista Renato Vieira para cuidar da edição. “Eu tenho histórias incríveis, mas precisava de ajuda para afinar os detalhes”, comenta. Dentre os causos, está um Natal que Tom Jobim passou na casa dela em Pasadena, na Califórnia, nos anos 1970. Depois de publicado, o livro ainda vai servir para a elaboração de um musical sobre a vida dela.
Apesar de animada com esta vindoura empreitada no campo literatura, ainda é a música que bate mais forte para Wanderléa.
O mais recente trabalho de estúdio é Nova Estação (2013), lançado pela Lua Music. Esse foi mais um disco em que a cantora pôde mostrar sua versatilidade (“Eu comecei como crooner de orquestra cantando jazz, fiz chorinho”, pontua). O repertório tem bossa nova (“Eu e a Brisa”), standards norte-americanos (“My Funny Valentine”) e chorinho (“Choro Chorão”), entre outros gêneros. Um dos fãs do álbum é o amigo Egberto Gismonti, que a produziu no experimental Vamos Que Eu Já Vou. “Um dia ele me ligou dizendo que o CD é trilha sonora dele quando anda de carro pelo bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.”
Algo com que Wanderléa sonha é um dia mostrar seu lado autoral em canções. Enquanto isso não acontece, ela se ocupa com o novo disco, que deve sair este ano pela gravadora Eldorado. O trabalho ainda não tem nome, mas a cantora adianta que será um songbook de faixas escritas por Sueli Costa. O álbum é fruto de um espetáculo que ela fez em 2013 em Belo Horizonte, com várias músicas da autora. O coprodutor de Wanderléa, o jornalista e pesquisador Thiago Marques Luiz, achou que as interpretações dela para canções como “Jura Secreta” e “20 Anos Blues” deveriam ser imortalizadas em disco. “Adoro projetos novos e a Sueli ainda é uma das maiores compositoras do Brasil”, diz a artista. Segundo Wanderléa, o trabalho está quase concluído. “Faltam apenas duas canções. Estar no estúdio é sempre um exercício para mim.” Assim ela segue, definindo-se como uma artista que transita em uma ponte entre o popular e a elite. “O que vier, eu traço”, conclui.